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Pajé-Onça (2018), de Denilson Baniwa, na marquize do Ibirapuera (Foto: José Moreau)
Postado em 28/06/2021 - 12:10
A constelação da onça
Entre o fascínio e o terror, o imaginário da onça-pintada tem ressonâncias nas cosmogonias indígenas, na ciência e na literatura

A onça-pintada, também conhecida por jaguar, pantera-onça, jaguarapinima, jaguaretê ou canguçu, é o maior felino das Américas. Por estar no topo da cadeia alimentar e precisar de grandes áreas preservadas para sobreviver, esse animal sempre foi importante nas ações de conservação ambiental. Para os cientistas, sua presença indicava que uma região oferecia boas condições para a sobrevivência.

O narrador de Meu Tio o Iauaretê, conto de Guimarães Rosa, se dizendo parente de onça, conta que ela muda muito de lugar de viver, “por o de comer não chegar…”. Quando chega a pecuária, a exploração madeireira, as monoculturas, a mineração e o garimpo ilegal, as onças são “tocadas pra longe”. A regra sempre foi: onde há onça-pintada, há manutenção de flora, fauna, rios e nascentes. Havia.

Obra Somos Amigos da Onça (2018), de Yná Kabez Rodriguez (Foto: Cortesia Instituto Tomie Ohtake)

Um estudo publicado em janeiro por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), que vem monitorando felinos nos últimos seis anos em Paragominas, no nordeste paraense, aponta que as espécies estão se adaptando à degradação ambiental na Amazônia. Esse felino arquetípico de poder, que na cosmogonia dos Yawalapiti, do Alto Xingu, é pai dos gêmeos Sol e Lua – que por sua vez são os pais dos seres humanos –, e é o único animal que não tem medo ou respeito (kawíka) aos humanos, deixou de aferir o grau de preservação das matas e dos biomas.

Quando um arquétipo de destemor tem de se submeter às regras exploratórias para não ser extinto, mudando hábitos para se adaptar ao impacto humano e sobreviver em terras arrasadas, cabe lembrar as cosmogonias, os mitos de criação dos povos e do mundo, que narram a destruição da terra original por cataclismos em forma de incêndios ou dilúvios, decorrentes de crimes, traições ou vinganças. E pensar na capacidade de transmutação atribuída a esse felino nos mitos e em como essa transformação tem sido uma chave da resistência indígena.
São muitas as formas transmutadas que a onça assume ao se relacionar. Existem os gente-onça dos povos Tariano do Alto Rio Negro, o demônio-onça dos Jabuti de Rondônia, o pajé-onça dos Baniwa, a onça-jabuti dos Macuxi… Este texto segue as trilhas de alguns deles, em pegadas deixadas na cultura brasileira por meio da obra dos artistas indígenas.

Terra Indígena (2019), de Denilson Baniwa (Foto: Cortesia do artista)

Resistência e destruição
Assim como as pinturas indígenas encontram ressonâncias com os esquemas de representação científicos de células e ecossistemas, algumas mitologias sobre a onça também encontram paralelos com o pensamento científico. Se a presença de grandes carnívoros implica um ecossistema rico e saudável, para os indígenas, esse animal é um dos mais antigos do mundo, em um estado avançado de compreensão do tempo.

Diferentemente dos grandes felinos de outros biomas, a onça pode correr, subir em árvores e nadar com grande habilidade, podendo capturar presas em todos esses espaços. Essa variedade de recursos, aliada a seus hábitos predominantemente noturnos, permite com que ela ataque inclusive animais perigosos para ela mesma, como jacarés, o que implica, além de força e habilidade, estratégia de caça.

Pintura da série O Ataque do Kanaimé (2011), de Jaider Esbell (Foto: Marcelo Camacho, cortesia do artista)

Esse conjunto de características faz da onça um símbolo de poder e conhecimento. A artista Yná Kabe Rodriguez Olfenza tem usado imagens da onça em analogia à travestilidade: ambas são ameaçadas, vigiadas e vivem processos de transformação em seus corpos. ”Nós também somos felinas”, diz à seLecT. Em sua dissertação de mestrado, Táticas de Resistência: Relatórios da Sobrevivência da Onça, Yná Kabe desenvolve esses paralelos, comentando, inclusive, o hábito das travestis de usarem roupas com estampas de onça. Já no projeto Secretaria para o Desenvolvimento da Primeira Escola de Indisciplina do Brasil, a onça é símbolo de resistências das mais diversas causas, do desmatamento às violências epistemológicas.

Logo desenvolvido para a escola EIB (Primeira
Escola Indisciplinada do Brasil), projeto em processo de Yná Kabez Rodríguez Olfenza (Foto: Cortesia da artista)

Mais que um animal, a onça é uma entidade que empresta ao mundo e aos outros seres a sua força destruidora. Para o bem ou para o mal.
Para os Baniwa, as onças (Dzawi) viram o universo nascer e estão aqui desde o começo. Viram a passagem do tempo e o compreendem de outra maneira, têm acesso a informações privilegiadas e só são precedidas pelo gavião-real (Kamathawa), que sobrevoa o mundo e informa Ñhapirikuli e Amaro, o casal formador do mundo.

Para os Caiapó, em tempos imemoriais, ela era dona do arco, da flecha e do fogo, até ser roubada pelos seres humanos. Privada das armas, passou a caçar com os dentes e, do fogo, restou-lhe o brilho no olhar.

A integração entre animal e humano é um traço saliente das cosmogonias indígenas e, em muitos mitos de criação, há homens com a capacidade de se transformar em onça. No mito Tupinambá, restaurado pelo escritor Alberto Mussa em Meu Destino É Ser Onça, o apocalipse aconteceria quando Sumé, um indígena ancestral, transformado na grande jaguara azul, a onça celeste, devorasse a lua, apagando a luz da noite, extinguindo a humanidade.

Bandeira da SEC-EIB (2020), obra de Olfenza e design gráfico de Félix B. Perini (Foto: Cortesia da artista)

Segundo o artista Jaider Esbell, para os Makuxi a onça é desafio, opressão e coloca a sociedade em alerta e vigilância. Ela é complementar à figura do jabuti: um é força e agressividade, o outro, parcimônia e paciência. E os povos tentam equilibrar-se nivelando essas duas forças. “Eles trabalham juntos para essa reflexão maior: a onça representando, por exemplo, o capitalismo, a globalização, a colonização; e o jabuti trazendo as respostas para aquilo que a gente não alcança por meio da força bruta”, diz o artista. “Essa dicotomia representa como lidar com os ímpetos, a raiva, o rancor, como utilizar a sabedoria para o nosso trabalho de contracolonização”, resume.

Rômulo No 01 Olfenza, Princess Nebulosa Olfenza, Sudan El Toro Olfenza, Zaylee Olfenza e Mother Yná Kabez Rodríguez Olfenza para divulgação do Dia Internacional da
Onça (Foto: Cortesia da artista)

Primordial e sobrenatural

Em entrevista à seLecT, a artista Sãnipã diz que hãkytxy (onça) é um ser que os Apurinã compreendem como uma deusa sobrenatural. “Ela é um pajé e, quando um mēēte Apurinã (pajé) recebe a pedra da onça, ele está preparado para cuidar do povo dele. Se precisar ir no mato buscar remédio, a onça indicará onde tem”, diz. “Os pajés Apurinã sempre conversam com a onça e, quando eles morrem, só morrem para os nossos olhos. Espiritualmente, se ele recebeu a pedra da onça, então onça virará.”

Para os Baniwa, antes de o ser humano existir, havia outros seres em gestação dentro do cosmo, que evoluíram e tomaram conta de outros mundos existentes, fora do mundo físico. O mundo era governado por seres gigantescos que incluíam um tipo de gente – mas não com forma humana – e outros seres que, hoje, entendemos como animais, mas que na época também eram gente. A onça é um desses seres que deixaram esse mundo para que o homem vivesse aqui, mas ela pode ser acessada por meio dos pajés, tradutores desses dois universos.

O pajé Baniwa, quando alcança o mundo das onças primordiais, está formado e recebe o título de Pajé-Onça, que é a formação máxima possível para as formas humanas – para avançar mais, na forma de um gavião-real, seria preciso ser outra coisa (não humana).

Missionary Being Eaten by Jaguar (1907), de Noe Leon (Foto: Reprodução)

Ele torna-se então mais poderoso, pois passou por vários treinamentos e experiências que nenhum outro humano suportaria. O último Pajé-Onça Baniwa, Seu Mandu (Manoel da Silva), faleceu há três anos e ajudou a construir uma escola de pajés, a Malikai Dapana, às margens do Rio Ayari, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Além da preservação de seus conhecimentos e tradições, a escola opera em resistência à entrada violenta do protestantismo na região.

“Entendo o papel do artista como esse de traduzir mundos também, traduzir o ocidental para cá e traduzir o Baniwa para vocês”, diz Denilson Baniwa. “Quando me visto de pajé, estou fazendo essas traduções e me colocando à disposição desse ser ancestral para contar os ciclos de fim de mundo que já existiram e que podem voltar a existir se a gente não tomar cuidado”, completa o artista, sobre a performance Pajé-Onça (2018), em que caminha pela cidade de São Paulo munido de lança, chocalho, cabeça e capa de onça.

Floresta no céu
A voracidade da onça também está nas constelações celestes, onde essa rainha da cadeia alimentar é igualmente temida. Um mito Tupi-Guarani relata que a onça (xivi, em guarani) sempre persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse solar ou do lunar, os indígenas ritualizam para espantar a Onça Celeste, pois o fim do mundo ocorrerá quando ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros.

No céu também estão a anta, a ema, a cobra, o veado, a seriema, o jabuti, o tatu, o tamanduá e outros bichos. Para os Ticuna, a constelação da onça localiza-se próxima ao Escorpião e à cabeça do tamanduá no Triângulo Austral. Eles afirmam que a briga da onça com o tamanduá ocorre durante a estiagem (de julho a agosto, época da vazante), para evitar o eclipse do Sol.

No início do verão, a onça fica sobre o tamanduá e, ao final, este aparece vitorioso sobre ela, antes que ambos os animais deixem a esfera celeste visível para dar lugar à ascensão do jabuti. No céu, a força e a prudência interagem como se estivessem na floresta.