icon-plus
IOCFB (Foto: Breno e Gabriel Laprovitera)
Postado em 14/12/2021 - 6:32
A educação pela várzea
Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand inaugura primeira exposição do novo ciclo da instituição, que passa a ser norteada pelos conceitos diretores de território, natureza e cosmologias

“A floresta amazônica é para mim um tema sagrado, uma espécie de enigma que mais cedo ou mais tarde teria que decifrar. Todas essas minhas telas foram pintadas levando em conta os valores plásticos e os simbólicos”, afirmou Francisco Brennad (1927-2019) em entrevista à Revista Manchete, em 1971. A série Amazônica do artista é um dos principais destaques da mostra Devolver a Terra à Pedra Que Era: 50 Anos da Oficina Brennand, com curadoria de Júlia Rebouças e Julieta González, que celebra o início do programa de exposições do novo Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand (IOCFB).

Em setembro de 2019, três meses antes de morrer, o próprio artista transformou a oficina em instituto sem fins lucrativos, preparando o terreno para uma nova fase na vida de seu ateliê e templo, agora transformado em museu, com o objetivo de preservar e difundir a obra de Brennand, além de se abrir para a produção de outros artistas e para uma atuação institucional mais ampla e permeável ao contexto sociocultural em que se insere, o que envolve pesquisa, programa pedagógico, plano de governança alinhado com os de instituições de ponta, e a continuidade da oficina como espaço de produção.

Devolver a Terra à Pedra Que Era reúne pela primeira vez uma dezena de telas da série Amazônica (1966-1971), que Brennand realizou sem nunca ter ido à floresta do Norte do Brasil. As cobras e tartarugas, peixes e aves representados enrodilham-se em símbolos característicos da paisagem do artista, como o caju, a jaca e a bananeira. “Na exposição temos 13 obras da série, pela primeira vez expostas e reunidas juntas na Oficina Brennand e em Recife, um evento singular. São telas de grandes proporções, que impactam pela sua magnitude, beleza e cor. Para a exposição do cinquentenário, contamos com a generosidade de colecionadores que cederam as obras em empréstimo para a exposição, um verdadeiro presente à Oficina e ao público, pois no nosso acervo permanente só contamos com uma obra da série”, explica Marianna Brennand, sobrinha-neta do artista e presidente do instituto.

Em setembro de 2019, Marianna convidou Lucas Pessôa, que foi diretor financeiro do MASP de 2014 a 2018 e hoje é o diretor-geral do IOCFB, para uma consultoria que propusesse a implementação de uma governança institucional especializada. Em dezembro, Pessôa convidou a curadora Júlia Rebouças para o projeto, que se iniciou com uma chamada pública a pensar coletivamente qual era vocação daquele espaço. Foi preparado um seminário sobre Brennand para ocorrer ao longo de 2020, que se transformou em uma plataforma aberta de escuta da comunidade. “Além da escuta pública, realizamos mais de 30 horas de conversas fechadas com profissionais da área, desde curadores e diretores de museus até a comunidade artística de Recife, como a artista Ana Lira, que inclusive vive aqui no bairro da Várzea”, conta Júlia Rebouças, hoje a diretora artística da Oficina.

Foto: Breno e Gabriel Laprovitera

Marianna Brennand explica a mudança de rumos do IOCFB que se desdobrou da Plataforma Crítica – Oficina Brennand: “Com direção artística de Júlia Rebouças e curadoria de Catarina Duncan, tomou como norte os eixos Natureza, Território e Cosmologias, oriundos da poética de Francisco Brennand, e se desdobrou em um programa de conversas ao vivo, podcasts, ensaios críticos, comissionamento de obras, que se estenderam até este ano de 2021. Uma série de outras programações públicas e educativas também serão desenvolvidas ao longo de 2022, a partir desses eixos. Além disso, vamos ampliar o diálogo com outros artistas, outras linguagens, atrair novos olhares e implantar um programa educativo potente”.

A exposição Devolver a Terra à Pedra Que Era: 50 anos da Oficina Brennand é fundamentada nesses 3 eixos, que irão nortear todas as ações da Oficina. Eles surgiram a partir das temáticas presentes na obra do próprio Brennand. A previsão acerca da programação do museu é de dedicação exclusiva à exibição da obra de Brennand por alguns anos, entretanto já foram anunciados uma intervenção site specific de Ernesto Neto e uma exposição de Louise Bourgeois em diálogo com as esculturas monumentais de Brennand, indicando um processo de “abertura” institucional no caminho de “museu de artista” para museu de arte.

“Francisco Brennand sempre se preocupou com a preservação de sua obra, mas desejava também que a Oficina pudesse sediar outros programas culturais tanto da cena artística pernambucana quanto brasileira. Essa abertura já vem se dando desde o início dessa nova programação, a exemplo da Plataforma Crítica, citada anteriormente, por exemplo, quando convidamos artistas, curadores e críticos para dialogar conosco. A ampliação de parcerias com outras instituições também é parte desse processo. Já iniciamos alguns diálogos com agentes locais e instituições do bairro, firmamos uma importante parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (que fica no bairro da Várzea) e queremos atuar como importante vetor de desenvolvimento local”, conclui Marianna.

Foto: Breno e Gabrie Laprovitera

Outro aspecto relevante é preservar no lugar a vocação primordial de ateliê de artista, um espaço de trabalho, de ofício, daí o nome do museu manter alcunha “Oficina Brennand”. “Nesse sentido”, prossegue, “realizamos esse ano as primeiras residências – cultural e educativa – com atividades virtuais e presenciais voltadas, respectivamente, para agentes das artes (artes visuais, artes cênicas, artes do corpo, música e literatura), sob o comando de Renata Felinto, curadora adjunta de Cosmologias, e educadores, coordenada por Gleyce Kelly Heitor, curadora adjunta de Território. Enquanto a primeira promoveu vivências e intercâmbios criativos entre diferentes agentes profissionais das artes que participam e contribuem com processos de pesquisa, criação, execução, registro, documentação e reflexão acerca das artes em sua trajetória, a segunda teve a finalidade de fundamentar valores como coletividade, colaboração e experimentação enquanto base para a construção de um programa de educação na Oficina Brennand atravessando os eixos território, natureza e cosmologias”.

Júlia Rebouças, nascida em Aracajú, mas que passou a infância e os anos de formação em Recife, conta que sua relação com a obra de Brennand sempre foi a de entender o artista como constitutivo de uma visualidade particular e da identidade nordestina. “É um artista que faz parte da paisagem aqui em Recife, está nos ladrilhos de cerâmica que revestem prédios inteiros, que está na casa das pessoas, em painéis pela cidade, na reitoria da universidade, além das esculturas públicas. Durante meu tempo de estudos na UFPE, vim morar aqui no bairro da Várzea e, portanto, vim inúmeras vezes visitar a oficina, porém entendia essa produção como a de um artista que pertencia a outro tempo”, conta.

“Voltar hoje é me reencontrar conceitualmente com esse artista, é perceber como o coração dele estava fincado na várzea, e a maneira como esse bairro, Pernambuco e o Nordeste informam o mundo da obra de Brennand”, completa, destacando que um dos principais pontos de interesse desse modelo de museu-oficina é a potência de manter os fornos acesos: “Tem um funcionário que está aqui há 65 anos. Existe um saber aqui, do ponto da argamassa, do processo da queima da cerâmica. A ativação do local de trabalho é fundamental no pensamento do instituto”.

Responsável pela organização dos diários de Brennand e diretora de um documentário sobre o tio-avô, Marianna diz que é muito difícil escolher obras preferidas, “mas eu destacaria a série Amazônica, pintada em óleo sobre tela, executada entre os anos de 1966 a 1971. Entre as esculturas, eu destacaria as da série Les Amants, inspirada na obra O Beijo, de Brancusi, O Ovo da Serpente, obra seminal que amplia o caráter simbólico do ovo para tratar de temas universais como a origem do mundo, reprodução e eternidade, e a imponente escultura do Pássaro Rocca, que traz em sua figura totêmica representações da mitologia, de proteção ao ovo primordial, de proteção à vida e à arte, além de ser uma obra presente em coleções de diversos museus no Brasil e no exterior.”