icon-plus
Vista da exposição de Fernanda Gomes na Pinacoteca (Fotos: Romulo Fialdini / Cortesia Pinacoteca de São Paulo)
Postado em 24/02/2020 - 12:44
A nuvem no chão
Fernanda Gomes reorganiza o mundo em campo subjetivo e espaço metafísico
João Paulo Quintella

A página aberta do dicionário começa no verbete Isca e termina no Isolar. O livro está no meio de uma das salas da exposição de Fernanda Gomes na Pinacoteca. Nenhum outro objeto exposto exibe palavras (existem outros livros, mas não abertos). Ali estão apenas a Isca e o Isolamento, Isentos (outra palavra da página) de sua vocação fatalista, a isca de sua obrigação de atrair o outro e o isolamento de sua condição de recusa do mundo.

Todos os objetos atendem a essa destituição de sentido. Estabelecem entre si uma afinidade sem qualquer imperativo, qualquer prenúncio ou qualquer mandato para isso. Fernanda Gomes é o lugar que os une. Na parede de fora da exposição (nenhuma sinalização foi permitida dentro) lê-se apenas seu nome. Muito mais importante do que
qualquer crítica aos vícios institucionais é o fato de que não há título da exposição, mas há um nome e é ele que se estende por todo o resto sob uma visualidade ao mesmo tempo íntima e transparente.

Um real desmontado, sem estruturas, sem elogio ao ataque ou à defesa, baseado em relações intuitivas, aproximações, associações, elaboração e leveza. Um lugar sem competição. Fernanda Gomes está alheia à lógica de projeto e à produção de acontecimentos, agindo por devir e agenciamento. Ao prescindir das relações de poder e da disputa dos signos, sua obra abre caminho para um espaço onde precisão e indefinição atuam como coautores e não
antagonistas. Nenhum de seus trabalhos se quer hegemônico e qualquer hierarquia é refutada em prol da imanência da exposição.

Não há demanda clara, um foco de atenção que pratique uma força gravitacional em nosso corpo na direção de um ou de outro trabalho. A sensação costumeira ao entrar em uma exposição, de procurar o trabalho, procurar o embate com o trabalho, procurar a imagem do trabalho, imediatamente se dissipa. A sensação nas salas de Fernanda Gomes é atmosférica, como experimentar a nuvem no chão.

Uma miragem do cotidiano, com ripas de madeira, arames, papéis e frações de objetos reorganizados por manipulações decisivas da artista. Uma vista meditativa como as pinturas de Agnes Martin e insinuante como os arranjos da poesia de E. E. Cummings. Trabalhos que, como Fernanda Gomes, alcançam livrar-se dos fatos retóricos para se expandir por contiguidade, nunca por convencimento.

Desmantelar o domínio dos signos e sua imposição espacial é resguardar a subjetividade. Este é o exercício de Fernanda Gomes ao reorganizar o mundo a partir do tato, ao encostar uma coisa na outra e perceber uma terceira.