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Cena da performance Aos Vivos (Dervixe) - Debate n. 1, de Nuno Ramos, em que uma bailarina rodopia na dança ritualística dos monges dervixes e os atores com fones de ouvido interpretam o papel dos candidatos a presidente enquanto escutam as falas do debate ao vivo que a Rede Globo transmite (Foto: Mayra Azzi, Divulgação)
Postado em 10/10/2018 - 4:08
A performance eleitoral de Nuno Ramos
Performance explora o áudio, ao vivo, do debate eleitoral dos presenciáveis na Rede Globo de Televisão
Marcos Pedro Rosa

Na quinta-feira, dia 4/10, Nuno Ramos apresentou a performance Aos Vivos no Galpão Folias, em São Paulo. Aconteceu ao mesmo tempo e vinculado ao debate dos presidenciáveis na Rede Globo.

No chão, havia marcas com o nome dos presidenciáveis e do apresentador do debate. As marcações estavam organizadas em círculo e acompanhadas de microfones. Cada ator interpretava aquela pessoa fixada no chão. Eventualmente, os atores giravam por um tempo aleatório, conduzidos por uma buzina ensurdecedora e pelo acender de luzes. O local em que cada um parava era acidental e, por tabela, as personagens que eles deveriam interpretar também. Nos ouvidos de cada um deles estavam os fones de ouvidos que transmitiam, em tempo real, o áudio da programação televisiva e para cada um deles havia um casaco social à disposição, acessório que alguns usavam, outros não.

O debate transmitido pela Rede Globo era então desnaturalizado, o ritual eleitoral atualizado de dois em dois anos assumia novos ares. Ouvimos as falas dos candidatos ou do apresentador, mas a imagem e a performance os traiam. Não havia tom cômico, mas o humor era, em diversos momentos, inevitável: a fala, o gesto e o contexto cindiam a personalidade do político. Ouvíamos suas frases, nós as víamos ser encenadas, mas não era o corpo e a imagem que acostumamos relacionar com essas falas. Os corpos e imagens que acessávamos na performance eram dispensáveis e aleatórios, meros receptáculos de frases e interpretações.  Uma mulher interpretava Haddad, no momento seguinte ela era Marina. Um jovem interpretava Amoedo, no momento seguinte ele era o apresentador da Rede Globo.

Quem era o personagem ali? A performance lançava no imponderável e no campo da encenação aquilo que era evidentemente encenação: a postura dos presidenciáveis diante de uma câmera, dentro de um estúdio televisivo. O debate televisivo era algo aquém da materialidade das pessoas. As fugas desse script soavam a incapacidade do espetáculo em dominar completamente a vida. O microfone que caiu, a acrobacia do apresentador para contornar a queda, a confusão do candidato em se posicionar corretamente na bancada. Tudo era artificial e a fala de Alckmin em prol da educação foi mais hilária do que normalmente seria, pela evidência de se tratar de um político arquetípico, demagógico e puramente imagético. Estávamos diante do espetáculo! E o traíamos, sabíamos sobre ele, ríamos dele, compactuávamos quando nos interessava.

O intervalo comercial era a continuidade do debate político. Os mesmos atores interpretavam os comerciais e vendiam eletrodomésticos, planos de celulares, celebravam a “festa da democracia” e impulsionavam as propostas das marcas comerciais. Nós ríamos, sabíamos do que se tratava, estávamos restituídos da nossa dignidade diante da tragédia.

Três outros elementos compunham a cena. Uma mesa à esquerda, no fundo do palco, com bananas, água, cigarros, pó de arroz e espelho de mão. À direita, na frente, um percursionista e um flautista.

No centro, com saia branca, de óculos escuros, uma bailarina executava a dança ritualística dos monges dervixes; ela dançava sua dança sem fim; girava, distante em seu transe. O transe da fome de Glauber Rocha? O transe do povo, do Carnaval? Dançava absorta, seu olhar indefinível, seu ritmo ao ritmo dos músicos, sua postura alheia aos atores, ela transcendia, mas ritmava todo o debate. Seu giro, o giro da própria roda; seu suor contrastava com o rosto dos atores que saíam de tempos em tempos do círculo para tomar uma água, comer uma banana, fumar um cigarro, se olhar no espelho ou retocar a maquiagem.

A dançarina suava e agia; ela girava seu giro cego, seu transe alucinado enquanto o espetáculo se desenvolvia. Eram ela e os músicos que ritmavam o evento. Uma troca de farpas mais quente, uma colocação mais drástica? Ela girava o mesmo giro e demarcava algo externo ao espetáculo, algo inerte, algo material. O tempo de seu ritmo mantinha-se e flertava com o infinito. De alguma forma, seu ritmo, o passar do tempo, a eterna iminência da indiferenciação cobrava urgência. Quem somos nós? Quem é ela? Quem são aqueles políticos que nos vendem televisores? O tempo passa e a dançarina indicava, no seu suor, ser feita de um corpo perecível. Ela cobrava urgência e denunciava a banalidade repetitiva do espetáculo.

Havia uma falta naquela roda viva, a do fascista que ameaça emergir pela democracia como o ditador da nação. Enquanto outros debatiam, um ator era designado a interpretá-lo diante de um microfone sem marca no chão. Enquanto os outros atores desenvolviam os papéis previstos na TV, ele ocupava-se do descanso, do retoque da maquiagem, da calma. Sua presença ausente demarcava aquilo que o espetáculo deixava evidente. Tratava-se de fantasmagoria e banalidade. Era tudo imagem… Não havia gravidade, apenas o giro inerte, suado e urgente da dançarina. A urgência não se corporificava naqueles atores; ela estava em outra emissora.

Marcos Pedro Rosa é doutorando em História da Arte pela Unicamp.

 

Serviço
Próximas apresentações da série:
Aos Vivos (Antígona) – Debate n. 2 está marcada para 21 de outubro na Casa do Povo, em São Paulo, às 22h.
Aos Vivos (Terra Em Transe) – Debate n.3 está marcada para 26 de outubro no IMS Paulista, em São Paulo, às 21h30.