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Postado em 13/05/2014 - 8:06
A periferia arde
Luciana Pareja Norbiato

Artistas à margem dos grandes centros urbanos buscam transformar a realidade social por meio de uma produção engajada desde o berço

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Legenda: Conhecidos por codinomes, Toddy e Val (à dir.) lideram o OPNI (SP), cuja galeria de grafite a céu aberto é atração na região de São Mateus (foto: Mateus Silva Designer)

A história se repete não importa para que lado: pegar metrô ou trem, chegar ao ponto final (ou quase) e tomar ainda um ônibus, indo novamente até a última parada. O fato de milhões de brasileiros enfrentarem essas viagens urbanas cotidianamente faz pensar em como a localização geográfica muda a perspectiva pela qual cada cidadão vê a si e a vida. Mesmo o poder público se dissolve na distância. Quanto mais afastado o bairro, mais pobreza e menos urbanização. Assim, é natural que a arte produzida nessas regiões seja política desde o berço. Na busca pela transformação do ambiente ao redor e de sua articulação com o Centro, os artistas periféricos são engajados, atuam coletivamente e tentam suprir com beleza e atitude o que falta em ação oficial.

Se no campo da música o recado é mais duro pela via do rap ou se dilui no desejo de reconhecimento apregoado pelo funk, principalmente em sua vertente “ostentação”, as artes em geral e as visuais em particular, encabeçadas pelo grafite, introduzido no Brasil em meados dos anos 1980 com a cultura hip-hop (baseada em DJing, rap e street dance, além do grafite), têm sede de poesia e não fecham a porta ao trânsito de mão dupla. Artistas do centro migram para os extremos em projetos parceiros, seja o JAMAC de Mônica Nador ou o teatro hip-hop do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, ambos de SP; ou as exposições Travessias, realizadas na Favela da Maré (RJ) pelo Observatório de Favelas desde 2011, levando artistas consagrados como Vik Muniz, Ernesto Neto e Raul Mourão (curador da última edição ao lado de Felipe Scovino) para a comunidade. A iniciativa é um desdobramento do programa Imagens do Povo, que começou em 2004 como um curso de fotografia para os jovens locais e gerou uma agência de fotógrafos e um banco de imagens. “O que esses fotógrafos populares fazem é olhar para a favela de pontos não retratados pela mídia tradicional e passamos a entender isso como uma questão fundamental: a disputa por imaginário nas cidades”, diz Gilberto Vieira, 25 anos, produtor da instituição.

A questão do intercâmbio entre Centro e periferia também norteia o Imargem, coletivo do extremo sul da cidade de São Paulo, cujo lema é “arte, convivência e meio ambiente”. Localizado no Grajaú, tem na margem da represa Billings sua sede atual, uma casa recém-ocupada em regime de comodato, e seu início em uma exposição homônima. Encabeçado pelos irmãos Mauro, 33 anos, e Wellington Neri, de 29, o coletivo trabalha com grafite e esculturas-lixeiras, entre outros, para conscientizar a população local de questões como meio ambiente, direitos humanos e trânsito urbano. As intervenções, oficinas e “debatepapos” promovidos trazem especialistas vindos de outras regiões para fazer a ponte do pensamento local com a cidade. “A gente tem a missão de diminuir o isolamento entre Centro e periferia, tentar trazer para os jovens outras referências de cidade, de pertencimento, de circulação. A cidade é de todos, a Billings é de todos, a Paulista é de todos”, diz Mauro, cujos grafites de figuras alongadas e com o jogo de palavras recorrente “ver a cidade” grafado junto podem ser vistos também na região daquela avenida.

Chamados agentes marginais, os vários integrantes do Imargem são educadores, artistas, biólogos, pedagogos. “A gente costuma dizer que faz ‘poesia da margem à centralidade’”, diz o também educador Wellington. A atuação direta com o público é ampliada por meio de projetos em parcerias com a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos. “O cotidiano endurecido faz com que as pessoas não prestem atenção na sujeira que deixam cair no chão, na cor que querem no muro, na quantidade de grades que a cidade tem, no tipo de lugar que têm o direito de acessar, então tentamos insistir, resistir, persistir nessa conscientização”, diz Mauro.

Contingente artístico periférico

Grafiteiro e escultor, ele integra esse contingente artístico periférico, majoritariamente jovem, que vem atraindo visibilidade até no exterior. Mauro Neri esteve na Itália em 2008; outra grafiteira, Soberana Ziza, codinome de Regina Elias da Costa, viajou para Washington e, pelo projeto City Off Hip Hop (2011), para Berlim. “Eu era a única mulher. O lugar mais longe aonde eu tinha ido era Campinas. Minha mãe falava: ‘Lá eles não gostam de negro, hein, cuidado’ (risos). Mas fui super bem recebida, o pessoal foi muito simpático, principalmente os artistas; às vezes, mais simpáticos que os daqui”, diz Regina. Moradora do Jardim Peri, distrito de Cachoerinha, zona norte de São Paulo, ela tem como premissa de seu graffiti a visibilidade das causas afro-brasileiras e da mulher. “Quando quer passar essa mensagem de valorização da mulher, a gente se torna feminista. Não que eu seja anti-homem, mas me encaixo no feminismo que quer fazer pensar”, diz ela.

Além disso, Regina ganha a vida como educadora no Centro Municipal da Criança e do Adolescente de Cachoeirinha, onde dá oficinas de artes que a lembram de seu passado. O papel dos centros culturais na periferia é crucial para o surgimento de artistas regionais: como Ziza, quase todos os entrevistados da matéria iniciaram na arte dentro dessas instituições. Por sua participação no coletivo Literatura Suburbana, Ziza foi convidada a ser curadora e ilustradora da coleção literária Besouro, patrocinada pelo projeto Aprendiz/Comgás e contemplada pelo edital VAI, da prefeitura, cujos dez volumes serão utilizados pela rede municipal de ensino como material didático sobre a cultura afro-indígena. Com a inscrição na categoria de microempreendedor individual, ela agora é microempresária do Estúdio Soberana, dentro do qual cria projetos de design gráfico e grafite e a marca de roupas Soberana, ainda em estágio inicial. “É bom se profissionalizar.”

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Legenda: Ilustração de Soberana Ziza, da região de Cachoeirinha (zona norte de SP), que explora por meio do grafite e do design gráfico imagens engajadas na exaltação às mulheres e ao povo negro (ilustração: Soberana Ziza)

Se a formação universitária influencia na produção desses artistas, o inverso também acontece. Leandro Araujo, 25 anos, nascido na Favela de Vila Santa Inês, na região de São Miguel Paulista (zona leste da capital), começou aos 19 a frequentar as então recém-criadas oficinas de azulejo do Ateliê Azu, foi se envolvendo mais até se tornar sócio no negócio e passar a morar na sede de três andares e a coordenar as oficinas. “Sou o responsável por conversar com os pais das crianças, porque ainda tem muita gente que não compreende o nosso trabalho aqui”, diz.

Contando atualmente com verba da Fundação Fenômenos, do ex-jogador de futebol Ronaldo, o Ateliê Azu surgiu em 2007 pelas mãos do gravador Elcio Gonçalves Torres, 48 anos. Ex-traficante e ex-presidiário nascido na Penha, Elcio encontrou na arte um caminho para colocar no mundo sua inquietação. Abandonou seu estúdio localizado nos Jardins e escolheu a comunidade de Santa Inês pela proximidade com seu bairro de nascença. “O que se convencionou chamar de artista plástico exerce seu ofício no lugar errado. Ele não tem serventia nenhuma na Vila Madalena, em Pinheiros, no Centro, porque lá tudo já está feito. O artista tem função transformadora, até didática, ele opera com as muitas questões da vida e do mundo”, diz. Partindo dessa premissa, instalou o ateliê de pintura de azulejos não só para capacitar a molecada da região, mas para transmitir valores que põe em prática nos mutirões de revitalização de lugares abandonados na favela, como a Praça São José, um entroncamento de ruas antes tomado pelo entulho.

50 mil fogos de artifício

“Eu enxergava o azulejo como um fim, mas descobri que era um meio. Através dele descobri que conseguia fazer o cara refletir sobre o espaço em que vive, que público e privado têm de conversar, fazê-lo entender que público é de todo mundo”, diz Elcio. Caso do vigia Laércio Caraibeira da Silva, 32 anos, morador da comunidade. Nos mutirões e eventos realizados pelo Azu, ele ajuda fazendo tanto a limpeza do local quanto criando mosaicos de função urbanística, que nunca imaginou realizar. “Quando eu consegui fazer o (mural do) Che Guevara, se eu tivesse 50 mil fogos de artifício, eu teria soltado, porque foi quando consegui trabalhar com azulejo da minha forma”, declara.

Urbanismo é o fio condutor das várias premissas que o coletivo OPNI (Objetos Pixadores Não Identificados) trabalha em sua galeria a céu aberto, na região de São Mateus (zona leste de SP). Pelo grafite, os líderes do grupo, Val e Toddy (que preferem ser chamados pelos codinomes), encontraram a sensação de pertencimento que não tinham antes. “Nós éramos adolescentes meio deslocados na sociedade, até que o grafite acolheu a gente”, diz Toddy. Sem ajuda de editais ou verba pública, os líderes do grupo, que inclui videoartistas, músicos e poetas, sentem que as pinturas da sua quebrada criam novas possibilidades de olhar entre a população local. “Quando a gente vê a possibilidade de uma família passear na nossa galeria a céu aberto, do pessoal beber uma cerveja e poder ver alguém fazendo grafite ou vendo o trabalho pronto, curtindo a arte ou mesmo jogando crítica de arte no nosso trabalho, é legal. A gente consegue aflorar esse olhar para a arte na periferia”, explica Val. Nos desenhos, figuram as mulheres, base da comunidade, que criam os filhos no esforço; os barracos traduzidos na vivacidade que a pintura do coletivo transmite; o orgulho negro e, pontualmente, cenas de denúncia de um cotidiano nem sempre feliz.

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Legenda: Leandro Araujo aplica azulejos que fundam praça onde antes era depósito de entulho na Vila Santa Inês (foto: Ateliê Azu/Divulgação)

Denunciar foi o estopim para a criação do Ocupa Alemão, um grupo que conta hoje com sete moradores do Complexo do Alemão (zona norte do Rio) que usam espaços abandonados para intervenções artísticas de cunho político. Partindo de uma manifestação contra abusos cometidos pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Alemão e no Morro do Boréu em 2012, jovens como Thamyra Thâmara de Araújo, 25 anos, e Pamela Souzza, de 24, mobilizaram-se para prestar assistência de direitos humanos na comunidade. “De repente, a demanda ficou muito grande, a gente não tinha como atender tanta gente”, conta Pamela.

A solução encontrada foi a mudança de atuação: em vez de prestar assistência direta, passaram a realizar programações e oficinas culturais de conscientização, desde vivências poéticas até improvisação com máscaras para debater os limites do corpo negro, direitos humanos e inserção social. “A gente tem licença poética para todo tipo de ação, inclusive para reivindicar nossos direitos pela internet”, diz. Não à toa, a página do grupo no Facebook é um forte canal de comunicação – e ativismo – com mais de 2,5 mil curtidas. O barateamento da tecnologia, a difusão da internet e o surgimento das redes sociais são fatores importantes na ampliação do alcance dos coletivos e na criação de uma rede periférica comunicante com o Centro, principalmente para o rap.

“A possibilidade de dividir com rapidez suas músicas é algo mágico”, diz o rapper Criolo, egresso do Grajaú (SP). “Quando comecei, tínhamos de ‘loopar’ a instrumental na fita cassete de quatro em quatro segundos, só para ter uma base para rimar. Depois, para essa fita chegar em outro bairro dependia de quem fosse para lá, pois nem o dinheiro da condução tínhamos. Poderia demorar mais de um mês para levar uma música sua para outras pessoas. Hoje você faz em minutos”, diz ele.

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Legenda: Um dos exemplares do projeto Afeto na Lata (SP), criado pelo articulador Helder Holiveira para circular frases engajadas de poetas e músicos do Grajaú (foto: Thamy Cabral)

Também morador da região e parceiro do Imargem, Helder Holiveira, 46 anos, criou uma forma poética de passar mensagens políticas. Conhecido por todos da região como articulador, inventou por acaso o projeto Afeto na Lata, como forma de presentear um amigo. Nas embalagens vazias das tintas em spray, pinta frases de escritores e músicos da periferia, como Sergio Vaz, organizador do sarau da Cooperifa, uma das iniciativas mais antigas da cena da quebrada, com 12 anos (na região de Parelheiros, sul de SP). Depois as abandona em algum lugar público para que alguém pegue. “É uma forma de fazer circular esse pensamento da periferia de maneira espontânea, sem cobrar” diz Helder, também coordenador do centro cultural da CSN, em Volta Redonda, espaço que ajudou a popularizar. “Não é que não acredite na arte solitária, mas não é comigo, gosto do diálogo e da troca com os outros”, completa.

Sem números oficiais definitivos quanto à quantidade de coletivos atuantes hoje, mas com estimativas que somam milhares, seja na capital paulista ou na fluminense, a expressão artística da periferia é extensa, organizada e engajada. Mas ainda tenta alcançar a grande massa. “Claro que conseguimos falar com um pessoal já meio iniciado, mas nos perguntamos como atingir a massa, o pessoal que não conhece arte”, reflete Mauro Neri. Dessa forma, a democracia da arte se prova pelo bem e pelo mal: seja no Centro, seja na periferia, seu caráter contestatório deve ainda enfrentar a incompreensão do grande público.

*Reportagem publicada originalmente na edição #17