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Capítulo I – da série Mapas Mentais, 1971, de Anna Maria Maiolino (Foto: Reprodução)
Postado em 07/05/2021 - 4:57
A revista presente e o que não cabe nos gêneros
Análise de publicação organizada por Anna Maria Maiolino e Paulo Miyada replica seu formato de correspondências

Paula, querida

Que surpresa boa saber da revista presente! Eu era educador no Instituto Tomie Ohtake, onde também fazia o curso de acompanhamento de artistas, quando conheci Paulo Miyada, um dos proponentes da publicação. Também fiz um curso com o Vitor Cesar, designer, que participou da minha primeira curadoria, no Breu, logo na inauguração do espaço. As frases “Alguém projeta novos espaços no centro da cidade” e “Uma pessoa negocia com a outra para mudar sua percepção” ficaram escritas na entrada e na fachada do galpão na Barra Funda durante muito tempo, antes de seu encerramento em 2020. Anna Maria Maiolino, a outra proponente da revista, conheci de longe quando fui assistente de curadoria no Pivô e ela fazia a coletiva imannam. Paloma Durante, a editora, era educadora na Fundação Ema Klabin quando fiz meu primeiro estágio, ainda no começo da graduação em artes visuais na USP. Com ela também compartilho o fato de morarmos na zona norte de São Paulo — uma outra paisagem e clima que habitam minha imaginação, além de uma proximidade com o mato que muda completamente como penso o mundo.

Uma revista de correspondências põe em evidência esses trânsitos entre as esferas pessoal e profissional que tanto dominam o campo da arte, com a potência dos afetos, mas também com exclusões diversas implícitas nessa dinâmica. E os afetos permeiam a publicação de forma indissociável das reflexões sobre política ou sociabilidade propostas por autores como Ursula Le Guin e Dalton Paula.

Gosto muito desse formato. Correspondências funcionam de modo mais dilatado que as mensagens instantâneas e de maneira menos assertiva que e-mails práticos, abrindo um espaço/tempo necessário em meio à aceleração da vida atual. Também há algo de modesto nesse modo de escrever e cada vez mais me interesso pelos projetos artísticos que não dependem de grandes volumes de capital ou mobilizações para serem realizados. Isso implica uma valorização da posição ética e conceitual que pode reverberar a partir do simples gesto de criar diálogos.

Correspondências incorporam os lapsos temporais entre perguntas e respostas e, do espaço vazio e do desencontro dessa comunicação, pode-se intuir alguma compreensão mútua. Muito do entendimento se dá pela intuição, um assunto também caro à arte. Sensações e pensamentos ganham associações soltas, nem sempre completamente claras no discurso, mas sugeridas no entrechoque entre imagens e parágrafos aparentemente desconexos.

A revista Presente foi uma lufada de ar em meio ao luto que vivemos pelos mortos de Covid-19, pela democracia em colapso, pelo neoliberalismo infiltrado nas veias dos dias, mas também um alívio em relação aos viewing rooms, lives e formatos digitais que exigem muita produção e pouca experiência. O formato de correspondência e o trânsito entre discussões sobre colonialidade, Edouard Glissant, análises de obras e relatos biográficos me fazem pensar nas melhores conversas sobre arte que já tive e que simplesmente não cabem nos gêneros que conhecemos.

Revistas de arte tendem a ter uma existência curta, mas essa, pela forma que permite a diversos interessados, colaborar com o projeto, ganha uma flexibilidade que inspira vida a longo prazo. Para esta primeira edição, a equipe está trabalhando desde o fim de 2020 e a periodicidade será trimestral, que também é a nossa, na seLecT, o que permite o cultivo e o encerramento de ciclos em uma dinâmica ao mesmo tempo ágil e decantada.

Estou na seLecT há pouco mais de dois anos e nós sabemos que revistas são um diálogo. Nem sempre imediato, nem sempre direto. Mas a forma e o tempo em que um assunto é discutido geram uma conversa que virtualmente une as pessoas. Vimos várias vezes o quanto uma provocação reverbera, o quanto uma proposta se materializa ou como uma tensão que estava no ar ganha nome e pode ser compartilhada. “Your silence will not protect you”, escreve Lisette Lagnado evocando Audre Lorde. Nomear sem categorizar, reunir sem homogeneizar, aproximar sem classificar são esforços que também vejo na revista Presente, com esse título altamente generoso e incisivamente político.

Nós também temos escrito bastante juntos e esta é uma experiência que me interessa enquanto campo de pesquisa: a colaboração. Tanto na escrita, quanto na produção e na curadoria. Se tratando de um review sobre uma revista de correspondências, foi natural que durante nossa reunião de pauta com a Nina Rahe e a Nina Lins decidíssemos por replicar o formato de diálogo em nossa própria análise. O que me leva a pensar que crítica de arte pressupõe contato, proximidade e impregnação com o “objeto” e que a prática artística,— seja ela produção, curadoria, crítica—, é sempre coletiva em algum nível.

Tudo isso me dá vontade de terminar com uma pergunta: Por que você decidiu fundar uma revista de arte? Sugiro usarmos o trabalho da Anna Maria Maiolino no qual um grid mapeia os desejos, conflitos e anseios da artista ali pelos anos 1970 como imagem deste post.

Espero que esteja bem.
Um abraço e bom final de semana,

Leandro
30/4/2021

Querido Leandro,

Sim, foi uma ótima ideia nos impregnar do objeto revista presente para escrever juntos esta resenha. Não para nos fundir nele, mas para experimentar os jogos propostos e depois recuar, ganhando algum espaço “entre”, que o olhar crítico também prevê.

Habitamos um campo comum: tendo por foco textos e produções feitos entre duas ou mais pessoas, a presente assume uma condição inerente a toda revista: o fazer coletivo. Nós sabemos que não existe ‘revista solo’ e se o projeto for individual, deixa automaticamente de ser revista. Mas é digna de exclamação a ênfase que Miyada e Maiolino colocam no fazer junto; e que a artista coloca na palavra NÓS, dizendo que esse seria o título de um novo capítulo dos Mapas Mentais (1971). A afirmação é sintomática de um zeitgeist: hoje o pensamento é mais rizomático do que costumava ser; e o cérebro é uma zona coletiva e permanentemente atravessada pela complexidade social. Então, como escreve Anna Maria Maiolino para Tania Rivera, seria natural que aquele tabuleiro, ou grid, fosse substituído hoje por “um campo imaginário branco”, “sem demarcações, sem margens”, se representasse um mapa mental.

Me intriga a ênfase que a palavra NÓS vem ganhando. Nota-se cada vez mais na arte, na filosofia e na política contemporânea uma nostalgia de comunidade. Por isso, fui buscar saber mais sobre nós na pesquisa “A revista livre: política e invenção no periódico de artista”, em processo na ECA USP com a supervisão da professora, artista e amiga Dora Longo Bahia. Seria melhor dizer, em parceria. Também me ocorre pensar por que os vínculos de duração periódica, ou os “acontecimentos continuados no tempo” – como Paulo Miyada se refere ao comportamento da 11ª Bienal de Berlim diante das limitações impostas pela pandemia, e como a própria 34ª Bienal de São Paulo se viu obrigada a transcorrer em 2020 e 2021 – são mais cultivados em determinados tempos históricos.

Independentemente da centralidade que todas as formas de correspondência (especialmente as instantâneas, mas também a epistolar) ganharam com o distanciamento social, eu tendo a pensar que o ato periódico, contínuo e constante é uma demanda que supera nossa condição pandêmica.

A reunião em torno de publicações ou acontecimentos periódicos favorece aquilo que o editor do jornal Iska, o revolucionário Vladimir Lenin, já pontuara em 1901: a organização coletiva. Neste aspecto, o jornal “pode ser equiparado aos andaimes em volta de um edifício em construção, que marcam os contornos entre os construtores, permitindo-lhes distribuir a obra e ver os resultados comuns alcançados pelo seu trabalho organizado”, aponta o autor no texto “Where to begin?” (Iska, nº 4, 1901).

Uma revista nos questiona periodicamente: que edifício estamos construindo? Para Maiolino, trata-se de uma recomposição social em meio ao desmonte cultural. Note, querido Leandro, a importância do sufixo RE, na etimologia da palavra revista (re + vista): fazer revista prevê rever, repetir, reler, repensar. Tudo isso determina o acontecimento continuado no tempo.

Então, acho que isso responde à sua pergunta sobre o que me levou a fazer uma revista de arte. Não foi a vontade de construir o edifício, mas de aperfeiçoar o andaime. Estou na seLecT há pouco mais de dez anos, e constato que esse estrado provisório de tábuas, sustentado por armação de madeira ou metálica, sobre o qual os jornalistas, os críticos, os curadores e os artistas trabalham, não alcança a estrutura, a segurança e a morosidade das instituições culturais. Mas é lugar de transcorrer os dias equilibrando-se sobre a condição paradoxal e abissal entre o provisório e o permanente, entre a leveza e gravidade.

Vida longa à revista presente!

Um beijo,

Paula
4/5/2021

Revista Presente (Foto: Divulgação)