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Postado em 13/02/2015 - 8:38
Adeus a Tomie
Com coral entoando composições de nomes como Villa-Lobos, despedida da artista nipo-brasileira foi marcada pela serenidade típica de seus trabalhos
Luciana Pareja Norbiato

Segundo seus amigos, Tomie Ohtake já estava preparando a própria partida. Desde o fim do ano passado, após uma pneumonia que a deixou com fôlego curto, a artista de 101 anos passou a dizer que já estava na hora de ir embora, que já havia feito e vivido o suficiente.

Embora bastante emocionados pela perda, os presentes no Instituto Tomie Ohtake entre as 8h e 14h da sexta-feira de Carnaval, 13 de fevereiro, velando o corpo da artista delicadamente pousado ao centro do grande átrio, carregavam a certeza de que Tomie Ohtake não só viveu uma vida plena, como vai segue eterna em seu legado artístico. Por ele, fez questão de professar a igualdade com uma obra que desejava ver ao alcance de todos, sem distinção de origem ou classe social. Por isso, tornou-se a representante de uma arte que, antes de se pretender local, espelhava o universo.

A serenidade transmitida por seus quadros e por suas esculturas, localizadas em boa quantidade ao alcance fácil dos olhos do público em espaços urbanos, permeava o adeus à artista. A reportagem de seLecT esteve no velório de Tomie Ohtake, onde captou depoimentos de amigos e familiares sobre a pequena nipo-brasileira de modos delicados, gigante por sua trajetória artística:

Ricardo Ohtake
Filho da artista e diretor geral do Instituto Tomie Ohtake

“Eu acho que as pessoas nascem, crescem, vivem e se vão. No caso de minha mãe, ela vai com uma bagagem muito grande de coisas que realizou. Isso foi algo com que ela sempre se preocupou, em ter uma bagagem bem-feita. Esse papel ela cumpriu bem.
Foi uma pessoa que inventou uma série de coisas nas artes visuais. Quando ela fazia pintura, descobriu novos caminhos. Muitos críticos são preguiçosos e não sabem ver isso.
Ela fez as gravuras no começo com uma intenção bem clara: vender obra para gente pobre, para estudantes, jovens etc. Só depois disso ela começou a fazer um estudo de linguagem mesmo, quer dizer, a pintura e a gravura conversaram. Depois, quando começou a fazer as obras públicas, ela falava que a arte tem que conversar com o público que passa pela rua, sem precisar se deslocar, comprar ingresso, entrar no museu, mas vê a obra diretamente na rua, ou enquanto está sentado no metrô. Era isso que ela achava importante. Ela dizia que para isso acontecer a obra precisa dialogar também com a paisagem urbana, o espaço ao redor. A cada obra nova, ela sempre fazia uma descoberta, uma nova invenção. Eram saltos que ela dava, que, quando são explicados para algumas pessoas, as deixam impressionadas de que tudo isso tenha sido pensado. Mas foi. Muito recentemente, os pesquisadores e futuros curadores daqui descobriram por exemplo que ela, já nos anos 1970, fazia coisas que tinham a ver com arte contemporânea. Esse tipo de coisa alguns críticos não sabem ver, ou não tiveram tempo de estudar. Ela viveu pensando nisso tudo.”

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Coral entoa composições de nomes como Villa-Lobos no velório de Tomie Ohtake, no instituto que leva seu nome [Foto: Luana Ferrari]
Nara Roesler
Galerista que representa a obra de Tomie Ohtake

“Tomie para a gente é imortal. Ela vai estar sempre presente nas conversas. Vamos sentir uma falta física, mas fica tudo o que ela plantou nesses cem anos de vida, não porque foi longeva, mas porque ela era de uma atividade incrível. Eu estou com saudade, porque sendo galerista dela desde 1986, nós ficamos muito amigas. Então hoje eu perdi uma mãe, uma grande amiga, que nunca se contentava com o fácil.”

Paulo Miyada
Integrante da curadoria do Instituto Tomie Ohtake e atual curador adjunto do 34º Panorama da Arte Brasileira do MAM

“Tomie é um exemplo para todo artista, não só pelo trabalho mas pela atitude que ela tinha para com a arte e o modo como ela conseguiu fazer sua vida e seu trabalho se alimentarem. Por mais que seu trabalho não fosse autobiográfico de maneira nenhuma, sua vida seguia junto com sua produção, e também por isso ela nunca se deixou repetir, nunca se deixou sem desafios. Tinha muita certeza, quando fez cem anos, de que estava viva pela família e pelo trabalho, porque ela tinha ainda muito por fazer e de fato fez. Produziu muito depois dos cem anos de idade, com ousadia, colocando desafios para ela mesma. Nos últimos meses, desde dezembro, acho que ela percebeu que tinha feito muita coisa, que não conseguiria trabalhar com a mesma intensidade de que ela gostava tanto, e foi nos preparando, se preparando, disse que podia descansar e que deixava um bom legado. Então acho que fica muito menos desespero e muito mais saudade que a gente já tem, alguns por terem convivido tanto, outros por não terem ainda convivido o suficiente. Vamos sempre nos lembrar dela pela pessoa que ela era e pelos trabalhos que ela deixa em todos nossos museus, coleções, ruas e espaços urbanos.”

Eduardo Suplicy
Político

“Tomie Ohtake deu uma contribuição simplesmente extraordinária como uma japonesa que veio ao Brasil, optou pela cidadania brasileira e deixou um legado fantástico para as artes do país como artista. Tanto como pintora quanto como escultora, sempre fez questão de que suas obras de inestimável talento, que começou a fazer depois dos 39 anos até os 101 anos que viveu, fossem vistas por toda a população. Ela queria que seu trabalho estivesse sempre exposto ao povo para que todos pudessem apreciar suas tão admiradas esculturas, muitas das quais espalhadas pela cidade de São Paulo, inclusive em homenagem às décadas de imigração japonesa por ocasião do aniversário de 80 anos desse fato. Por seu talento, por sua sensibilidade de artista plástica ela também transmitiu, com seu exemplo de vida, valores que proporcionaram que seus filhos Ricardo e Ruy também dessem contribuições tão especiais para São Paulo, a exemplo do Instituto Tomie Ohtake.”

Miguel Chaia
Sociólogo e crítico de arte

“Esse momento da morte da Tomie na verdade representa o ganho muito forte da arte e da cultura brasileiras graças ao que ela produziu. A Tomie teve uma vida intensa, voltada para o mundo, para as questões políticas e sociais, mas também para as questões e para os aspectos da arte. Ela sempre foi muito envolvida com a arte de vanguarda, fosse dança, teatro e artes plásticas. Ela produziu nesses 60 anos de atividade um acervo de pinturas, gravuras, esculturas, cenários de teatro, com uma potência muito grande. De imediato, as cores da Tomie são inesquecíveis. Nascem da luz solar e fazem parte agora da memória brasileira. As formas e toda a maneira como a artista ocupa o espaço da tela. Na obra de Tomie é muito forte o sentido filosófico talvez por uma origem zen-budista. Mas ela é uma pintora que trabalha naquele dial da arte e do conhecimento, da arte e da filosofia. As pinturas dela são filosóficas. Obviamente são arte em si mesmas, mas também criam um mundo próprio em que a entrada é a filosofia, é a contemplação, é a reflexão. São pinturas extremamente silenciosas e cósmicas. Diria até que Tomie, ao se abrir para o mundo, abre-se também para o universo, precisamente por esse sentido filosófico. Ela deixa ganhos incríveis e inestimáveis para a arte e para a cultura brasileiras.”

Carmela Gross
Artista

“O momento é triste, mas as lembranças que eu tenho da Tomie são sempre da maior exuberância. Não só em relação ao trabalho dela, por toda a exuberância de cor e de forma, mas também pela alegria e pela pessoa que ela era, sempre muito alegre, simpática e acolhedora. Ela era extraordinária. O momento fica muito difícil se você parar para pensar, mas essa memória suaviza. Eu conheço a Tomie desde os anos 1960, eu estive na casa dela quando ela morava ainda na Mooca, numa casa muito pequenininha, e eu era estudante de arte e amiga do seu filho, Ricardo. A gente tocava flauta juntos, etc. Fui visitá-la essa única vez (na Mooca) e depois ela se mudou para a casa que o Ruy fez em Indianópolis. Sempre acompanhei muito de perto os acontecimentos, o modo como as coisas foram crescendo. Daquela casa bem pequena para a casa de Indianópolis, onde ficava o ateliê dela, até esse instituto que é um palácio que acolhe os artistas, com projetos tão extraordinários. É muito bonita essa germinação. Acho que ela teve uma vida maravilhosa.”

Emanoel Araújo
Artista e presidente do Museu Afro Brasil

“Tomie foi uma amiga desde os anos 1960. A primeira vez que ela foi à Bahia, veio almoçar em casa e minha cozinheira tinha feito sarapatel. Desde esse tempo eu chamava Tomie de menina. Era uma querida amiga, uma artista exemplar, que teve diferentes fases, cuja obra sempre foi coerente, foi de busca, foi de significados. Fosse a pintura, fosse a escultura, fosse a gravura, ela sempre foi muito ela. Muita gente liga Tomie à questão do Oriente com o Ocidente, mas eu acho que ela soube ser brasileira mesmo, seja porque gostava de comida baiana, seja porque tinha uma cozinheira baiana também, seja porque ela sempre enfrentou os desafios da cidade com sua obra pública. É uma artista, uma amiga que se vai e de quem vou ter seguramente muita saudade, por sua presença delicada. Aí ela era realmente oriental, na delicadeza, nos gestos sempre delicados e gentis. Durante muito tempo, ela frequentou as galerias entre todos os artistas, ela era fazia questão de ser amiga dos artistas de sua geração e mesmo posteriores. Depois evidentemente ela ficou velhinha e já não podia mais estar presente a tudo, mas deixou uma marca indelével em São Paulo. A gente vai ter saudade e sua obra estará sempre presente para podermos nos recordar dela.”

Fernando Lemos
Artista português radicado no Brasil

“Estou muito orgulhoso de ter sido contemporâneo da Tomie porque ela é uma referência integral de tudo o que significou o grande imigrante: pelo acesso à cultura a quem vem de fora, pela grandeza do Brasil para esse povo, por sua conquista de ter conseguido construir uma obra que não é necessariamente só japonesa, é brasileira também.”

Nino Cais
Artista

“Mais do que contemplar a história da Tomie e seu trabalho, penso essa mulher que vive cem anos, vinda de um outro país, com uma experiência de outra cultura. Ela vem, se adapta e consegue se transformar nessa mulher que é de fato uma artista muito singular. Eu acho que ela é exemplar porque seu trabalho é expansivo, vai tomando todos os espaços, tem um movimento que acolhe o corpo, que acolhe o espectador. E por outro lado é uma pessoa tão delicada… Eu tive o prazer de estar próximo dela algumas vezes, ela era tão introspectiva. Embora sorridente, falante, era uma pessoa tímida. Ela conseguiu fazer sua obra criar essa força e esse tamanho no corpo de uma mulher delicada, e acho que essa é a potência da Tomie: essa figura da artista e a dimensão de sua obra.”

Cássio Vasconcellos
Fotógrafo

“O trabalho da Tomie é maravilhoso, marcou muito, principalmente a paisagem de São Paulo. Me lembro que na década de 1980 tinha a fachada de um prédio inteiro com uma pintura dela, isso é tão bacana para a cidade. Como também a escultura em frente ao Centro Cultural (São Paulo), na avenida 23 de maio. Tomie criou marcos na cidade que sempre foram presentes na vida do paulistano e é muito bacana vivenciar isso.”

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