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BEARDING ALONG (2016), da série THE BEARD PICTURES, de Gilbert & George (Foto: Gilbert & George, Cortesia White Cube)
Postado em 08/03/2018 - 5:55
Amor e arte em tempos pós-modernos
Duos artísticos, envolvidos tanto amorosamente quanto profissionalmente, trazem à tona reflexões sobre gênero
Luana Fortes

Enquanto a homossexualidade era descriminalizada na Inglaterra em 1967, o italiano Gilbert Proesch conhecia o inglês George Passmore, com quem decidiu passar o resto de sua vida. Os dois eram estudantes da escola de artes St. Martins e não tardariam a perceber que sua produção artística deveria ser feita em dupla. Gilbert & George, como ficaram conhecidos, são um dos mais emblemáticos duos que a arte contemporânea já viu. Trabalham e vivem juntos há 50 anos e conseguiram provocar reações críticas diversas vezes, seja pelas suas obras, seja por suas declarações polêmicas.

“Nós queremos que a nossa arte traga o intolerante de dentro do liberal e, inversamente, o liberal do intolerante”, disseram em 2014. Com esse mote, seus trabalhos e opiniões enfrentam desde os mais puritanos até os moderninhos de plantão. Em sua mais recente série, denominada THE BEARD PICTURES (em maiúsculas, como fazem questão), a imagem sempre presente da dupla aparece em contextos absurdos, colorida e, simbolicamente, barbada. Com um mundo endoidecido na retaguarda, Gilbert & George aparecem nas montagens fotográficas com extensas barbas, cada vez revestidas por uma textura diferente – espuma de cerveja, folhas e flores, entre outras. A barba faz referência a estereótipos religiosos ou mesmo à juventude hipster/cool que não abdica dos cabelos faciais em favor da moda –, algo que jamais admitiriam.

BEARDOUT (2016), da série THE BEARD PICTURES, de Gilbert & George (Foto: Gilbert & George, Cortesia White Cube)

 

Fora isso, outro elemento também frequente na série é o arame farpado. O duo surpreende-se com o quanto se gasta atualmente em mecanismos de segurança. O arame, que antes enxergavam apenas em cercas de fazendas, agora tomou conta das cidades, impedindo pessoas de entrar ou sair de ambientes exclusivos.

Gilbert & George não costumam visitar exposições de arte – deixaram de frequentar a cena artística em 1979. Eles acham importante confrontar-se com o mundo, não com a arte. Não vão ao cinema ou ao teatro com frequência – apenas abriram uma exceção para a ópera sobre eles mesmos, The Naked Shit Songs (2017). Mas assistem ao jornal. E, como afirmam, nas notícias só enxergam arame farpado e pessoas barbadas. Na série THE BEARD PICTURES (2015-2016), assim como em toda a sua obra, a dupla responde àquilo que vivencia. Começaram como esculturas vivas e borraram os limites que separam arte e vida. E, atualmente, mesmo em montagens fotográficas, seguem borrando fronteiras, apesar de mergulhados em cenários absurdos.

MINT BEARDS (2015), da série THE BEARD PICTURES, de Gilbert & George (Foto: Gilbert & George, Cortesia White Cube)

 

MEDIAPLASTIC No. 7 Giornale Dell’Arte (1991), de EVA & ADELE, pintura realizada com referência à capa da revista italiana Giornale Dell’Arte (Foto: Cortesia Nicole Gnesa Galerie, Munich)

Gêmeas hermafroditas do futuro
Se Gilbert & George se abstêm da cena artística, o absoluto contrário acontece com EVA & ADELE (também elas fazem questão do uso de letras maiúsculas). Quem compareceu às principais aberturas de grandes exposições ou feiras de arte dos últimos 20 anos com certeza encontrou duas pessoas bastante singulares que roubaram a atenção. Oficialmente participando, ou não, elas não saem despercebidas de eventos.

EVA & ADELE afirmam haver se conhecido no futuro. Elas encontraram-se em uma máquina do tempo, quando viajavam para a Grécia Antiga em busca de hermafroditas na origem da cultura europeia. Aterrissaram sua espaçonave em Berlim, logo antes de o Muro ser derrubado, em 1989. E, desde então, aparecem em público vestidas com a mesma roupa e maquiagem. Ambas são carecas e estão sempre com um sorriso no rosto. EVA, considerada legalmente mulher desde 2011, nasceu em corpo masculino. “É muito importante mostrar a felicidade da autoidentidade de gênero e mostrar nossa própria invenção e nossa própria ficção”, disseram à seLecT. “Nosso sorriso é uma obra de arte” é uma de suas frases de efeito, junto de “Onde estamos é um museu”.

A performance Hochzeit Metropolis (1991), em que se apresentaram como duas noivas, marca o início da produção do duo austro-germânico EVA & ADELE. Daí em diante, as “gêmeas” nunca mais foram vistas fora de suas personas. “Nunca deixamos de estar em uma performance artística, nem em nossos sonhos”, contam. O trabalho do duo é perpétuo e vitalício, informam.

MEDIAPLASTIC No 9 HÖRZU (1992), de EVA & ADELE, pintura realizada com referência à capa da revista alemã Hörzu (Foto: Cortesia Nicole Gnesa Galerie, Munich)

 

Como desdobramento de suas aparições, deixam-se fotografar e depois coletam os resultados divulgados na mídia e nas redes sociais.

AUTOPOLAROID, 28.08.1992, Berlin, fotografia usada por EVA & ADELE na produção de sua logomarca (Foto: EVA & ADELE and VG Bild-Kunst, Bonn 2018)

Realizaram uma série de pinturas, intitulada MEDIAPLASTIC, que tem como referência capas de veículos de notícias em que apareceram. “Induzidas pela enorme disseminação da nossa imagem na mídia ou em espaços privados, e da aparição de nossos sorrisos, nós exibimos ‘ser diferente’ como uma história de sucesso!”, afirmam à seLecT. É dessa forma que contribuem para debates sobre sexualidade e gênero. Não se encaixam em caixinhas reconhecíveis e isso lhes confere satisfação. A mensagem que resigna no público é de que delimitações apenas servem para controlar e limitar, como a própria palavra delimitação indica.

EVA & ADELE nunca estiveram no Brasil, mas afirmaram com entusiasmo que aguardam convites e propostas para que isso mude. Alguém se habilita?

Uma história de amor
Outro duo que extinguiu as linhas entre arte e vida, assim como desafiou entendimentos sobre gênero, foi Zackary Drucker e Rhys Ernst. Enquanto representações de pessoas trans normalmente vêm carregadas de drama e espetáculo, a obra Relationship (2008-2014), exibida pela primeira vez na Bienal do Whitney em 2014, traz fotos banais de uma vida a dois. Esse é o diferencial do trabalho.

Em 2008, Zackary e Rhys estavam ambos no começo de suas respectivas transições de gênero. Zackary, que nasceu homem, identificou-se com o gênero feminino, enquanto Rhys, que nasceu mulher, viu-se no masculino. Faziam, portanto, um processo inverso do outro. Eles se conheceram logo quando passaram a tomar hormônios e desataram em um romance.

 

O registro fotográfico era despretensioso e espontâneo. Como um diário visual, a dupla se fotografava mutuamente, registrando seu processo de transição. Não publicavam as imagens em redes sociais – na época, o Facebook e o Instagram ainda não haviam atingido seus auges. Apenas por acaso, mostraram as fotografias para Stuart Corner, um dos curadores da Bienal do Whitney da época e, sem querer querendo, imagens pessoais tornaram-se obras de arte. Dois anos depois, inclusive, o diário ganhou forma de publicação pela editora Prestel. Mas a atenção que a série ganhou nas mídias focava na questão trans, enquanto o título do trabalho indicava algo distinto. Relationship – em português, relacionamento – acompanha o cotidiano de duas pessoas apaixonadas que, somente por acaso, estavam no meio do processo de transição de gênero. E coisas como uma injeção de hormônio nos glúteos fazia parte do dia a dia de Zackary e Rhys. Era inevitável que isso aparecesse nas imagens. De qualquer modo, o trabalho abriu portas para diálogos sobre transexualidade e sobre o amor nos tempos pós-modernos.

Com seus trabalhos, Zackary Drucker e Rhys Ernst, EVA & ADELE e Gilbert & George provocam discussões necessárias. Trabalham para borrar limites, complicar significados e adicionar camadas a circunstâncias que não são simples. Como afirmaram Zackary e Rhys, em entrevista para Hugh Ryan, diretor-fundador do Museu Pop-Up de História Queer, “nós não facilitamos, porque de outra forma não seria interessante”.