icon-plus
Frame de Ao Rés do Chão (2018), de Tiago Sant'Ana (Foto) Cortesia do artista)
Postado em 28/08/2020 - 3:31
Ao Rés do Chão, de Tiago Sant’Ana
Obra do artista baiano discute masculinidade negra ao tensionar questões históricas e experiências homoeróticas

O vídeo Ao Rés do Chão (2018), do artista baiano Tiago Sant’Ana, começa com uma tela preta e a narração do seguinte trecho do livro Visions du Brésil (1864), de Louis Albert Gaffre: “No dia seguinte ao decreto da libertação, negros e negras deixaram apressadamente os lugares onde tinham vivido por um longo tempo nas humilhações da escravidão e, das fazendas e sítios, afluíram em direção às cidades próximas. A maior parte desses cidadãos livres tinham pequenas economias. Ora, seu primeiro ato foi correr às lojas de calçados. A escravidão, com efeito, não lhes dava o direito de se calçar. Parecia claro como, um dia, essas bravas gentes queriam equiparar os seus senhores de ontem, usando, como eles, botas e borzeguins. O primeiro gesto da liberdade foi, então, aprisionar os pés nas fôrmas escolhidas – e, por consequência, mais ou menos adaptadas. Digo mais ou menos, mas a verdade da história me obriga a dizer muito menos do que mais. Porque os bons pés dos bons negros, pouco acostumados a estar estreitados, protestaram com estardalhaço e foi o suficiente para que se visse o espetáculo mais inesperado como primeiro efeito da libertação. Negros e negras, em todas as cidades para as quais se dirigiam, passavam felizes e orgulhosos, com a postura altiva, descalços. Mas todos levando um par de sapatos – por vezes à mão, como um porta-jóias valioso; ou por outras a tiracolo, como as bolsas vacilantes da última moda mundana”.

Como se vê, Sant’Ana recorre a materiais de arquivo e às narrativas oficiais sobre o debate racial no Brasil para colocar em perspectiva essas experiências com o presente. Nas cenas seguintes do vídeo, pés e pernas de homens negros vão ocupando o plano em silêncio, tensionando enquadramentos em diversas formas de ocupação. As imagens estáticas – no limite temporal entre a fotografia e o vídeo –, assim como o preenchimento de todo o quadro, com vistas frontais, diagonais, planos fixos ou em movimento, também apontam para a dimensão autorreflexiva do trabalho sobre sua própria linguagem. São questões que, em relação ao debate racial, discutem experiências de visibilidade e invisibilidade, dinâmicas de ser visto apenas como objeto ou sujeito da história. 

Signo de liberdade e mobilidade
As pernas, como signos de mobilidade, podem ser incorporadas nessa discussão sobre a liberdade do povo negro. Já os sapatos guardam uma narrativa peculiar, já que, como nos lembra a narração inicial do vídeo, escravizados não podiam usar sapatos e, quando recém-libertos, adquiriam os calçados que nem sempre conseguiam usar, ostentando-os nos ombros como signo de liberdade que nem sempre se realizava. Em um dos frames, inclusive, os sapatos, de diversas épocas, são apresentados por braços que se inserem no espaço de uma porta entreaberta. 

Em contexto diverso, o pintor norte-americano Philip Guston também usou as pernas e os sapatos como tema de seus trabalhos. Esses signos, diferentemente da obra de Sant’Ana, são usados na construção de blocos monolíticos em que o emaranhado de pernas e sapatos remetem não só à ausência de movimentos, como às diversas violências daquela sociedade. Há ainda um poema de Drummond, no qual as pernas pretas, brancas, de tantas cores, são justamente o signo da mobilidade na cidade moderna. 

A mistura de tempos e marcas – esses símbolos de status social e também de colonização subjetiva – levam à pergunta: Quais seriam os signos de liberdade impostos, mas não realizados, para a população negra hoje? 

Masculinidades negras
Ao Rés do Chão – que significa o pavimento térreo de uma casa ao nível da rua – foi gravado no Museu de Arte da Bahia, imprimindo no vídeo, assim, a atmosfera do passado colonial presente na arquitetura e na história do museu – a construção foi finalizada com os restos de outros casarões, uma emulação ao passado formada por ruínas. O prédio que hoje abriga o museu foi o palacete de José Cerqueira Lima, um dos maiores escravocratas da Bahia. 

Tendo como personagens apenas homens negros de peito nu, o vídeo desconstrói o imaginário de tipologias das imagens cientificistas do século 19 e cria tensões homoeróticas ao reunir esses corpos que, aos poucos, revelam-se para o espectador.  “Meu trabalho é muito sobre a masculinidade negra e disso é inevitável surgirem tensões homoeróticas”, diz Sant’Ana à seLecT. “Por muito tempo, fomos objeto de representação. Agora devemos falar por nós mesmos.”

Em sua dissertação de mestrado, o antropólogo Hélio Menezes discute as disputas em torno da expressão “arte afro-brasileira” e seus usos ao longo da história da arte e da cultura no Brasil. Em geral ligadas a um sentido religioso em seus símbolos, formas e sentidos, as disputas em torno do que seria uma arte afro-brasileira incluem o pertencimento ou não de autores a esse grupo étnico, bem como a tensão em discutir ou não esses temas. Evidentemente Tiago Sant’ana está alinhado e inserido nesse debate, problematizando identidades, histórias e a própria linguagem.