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Postado em 30/09/2011 - 5:27
Arte reciclóide
Juliana Monachesi

Henrique Oliveira, Felipe Barbosa, Franklin Cassaro e Mônica Tinoco propõem refleção sobre uma sociedade entulhada de consumismo

Henrique Oliveira 02mex

Nuvem (2008), instalação de Henrique Oliveira com colchões e travesseiros descartados após o furacão Katrina, apresentada no Contemporary Arts Center, em New Orleans

O que os artistas do século 21 mais fazem desde que o maneirismo pós-moderno ficou para trás, nos anos 1990, é repensar a apropriação, a colagem, a coleção e o arquivo. Tomemos emprestado o neologismo recicloide, do artista carioca Franklin Cassaro, para tratar da criação contemporânea que tem como modus operandi a reutilização cíclica de matéria-prima, tanto material quanto simbolicamente.

Também poderíamos adotar a máxima da crítica Jori Finkel, da revista ArtNews, que cunhou a expressão “geração Merzbau”, em referência à obra maior de Kurt Schwitters, para designar artistas que despontaram na virada do milênio e vêm se dedicando ao reaproveitamento de materiais.

Muitas vezes a opção por trabalhar com o lixo, seja ele industrial, caseiro ou da sociedade de consumo, coincide com uma atitude política. Foi emblemática a escolha de materiais de Henrique Oliveira, quando convidado para participar de uma exposição em New Orleans (EUA), três anos depois do desastre provocado pelo furacão Katrina. 

Em vez de criar uma instalação com tapumes, sua marca registrada, Oliveira decidiu utilizar restos de colchões, travesseiros e cobertores que a avassaladora tempestade deixou pelo caminho. A obra Nuvem, de 2008, foi exibida suspensa, na entrada do Contemporary Arts Center, espelhando a problemática maior da cidade: a falta de moradia.

Massimiliano Gioni, curador-chefe do New Museum, de Nova York, e um dos observadores mais lúcidos da arte contemporânea, destacou que a arte deste século recupera a tradição da assemblage e a agilidade da colagem para “anexar o mundo inteiro ao seu corpo”, reunindo material encontrado, objetos, imagens de segunda mão ou, para dizer claramente, lixo. 

“É uma arte de contingência que traça nova linhagem na qual o pauperismo da arte povera é redescoberto, mas sintonizado a uma sociedade que está longe da pobreza. O trabalho de muitos artistas no início deste século retrata uma sociedade que está sufocando tão dramaticamente sob o peso do lixo tóxico que é forçada a transformar o lixo em uma forma de arte”, escreveu Gioni.

Uma sociedade rica é o que transparece na obra de Felipe Barbosa. Ele faz colagem e apropriação, construindo suas esculturas pelo agrupamento de objetos idênticos ou semelhantes: um bicho de pelúcia recoberto de bombinhas coloridas, uma mesa de bilhar com pernas de bolas, figuras geométricas compostas de esquadros ou guarda-chuvas meticulosamente encaixados, enormes animais de plástico feitos de pequenos bichos infláveis. “Quando utilizo materiais ou objetos comuns, estou interessado na carga de significados que eles já carregam. Procuro alterá-los o mínimo possível, para que fique clara sua origem e para que o espectador possa emprestar à leitura da obra o seu conhecimento prévio sobre aquele material”, diz Felipe Barbosa.

Trata-se de uma inversão radical da prática apropriacionista. Em vez de deslocar o sentido dos materiais para a esfera da arte, Barbosa evidencia a natureza banal deles. “Algumas pessoas se dizem satisfeitas porque eu reutilizo coisas, diminuindo o descarte no já sobrecarregado meio ambiente, mas a minha motivação não é essa.” 

Em série exposta na Galeria Baró, em julho, em São Paulo, o princípio construtivo de não camuflar os materiais mostra-se mais depurado. As obras são feitas com cédulas de real picotadas. O artista conta que decidiu fazer uma instalação em que todos os elementos fossem compostos de uma massa de dinheiro. “Seria algo como o dinheiro se materializando em tudo. Para isso, procurei o Banco Central, pois era importante ter notas verdadeiras. As cédulas são fruto de roubos a banco. Apesar do volume pequeno em material, os valores são impressionantes. Segundo o Banco Central, eles já me deram mais de R$ 3 milhões! Em notas picadas, infelizmente”, comenta rindo.

Outras reciclagens

Franklin Cassaro fez a opção de utilizar materiais pouco convencionais no universo da escultura, como jornal, tampas de metal, borracha e papel-alumínio. “Comecei a trabalhar com o meu lixo pessoal para dar mais uma chance de vida para materiais tão ou até mais interessantes do que os vendidos em lojas especializadas em materiais para escultura. Chamo isso de Outraciclagem Escultórica.” 

Há mais de dez anos o artista desenvolve uma investigação sobre os desdobramentos possíveis do neoconcretismo, a que ele dá o nome de bioconcretismo. Tão afeito às metáforas biológicas, Cassaro não considera o preconceito com arte ecológica um problema. “Tenho um trabalho chamado Cardume, em que dezenas de sacolas plásticas transparentes ficam voando soltas numa sala, estimuladas por circuladores de ar. Agora estou pensando em usar sacolas plásticas de supermercado, pois logo elas entrarão em extinção. Geralmente, arte é desperdício e tento desperdiçar pouco para realizar o meu trabalho”, afirma. 

Na última exposição individual que fez na Galeria Artur Fidalgo, no Rio de Janeiro, Cassaro apresentou seres híbridos, meio mitológicos, meio mutantes, para desconstruir paradigmas que vão da robótica à engenharia genética. “A Inclusão Robótica Social e a Outraciclagem Escultórica foram misturadas à toy art para que eu pudesse expressar algumas questões pessoais com um toque de humor”, explica. 

Mulher Mantis (2011), por exemplo, integra uma série de recicloides fêmeas que devoram ou representam ameaça ao macho assim que a cópula termina e a reprodução da espécie está assegurada, como acontece com os mantis (o inseto louva-a-deus, em francês). “No momento, estou trabalhando também na ideia de um bonsai bioconcreto, misturando alumínio colorido das embalagens de bombom com gesso ortodôntico cor-de-rosa”, antecipa Cassaro.

Para a artista paulistana Monica Tinoco, é impossível criar uma nova imagem partindo do zero. “Cada imagem é ressignificação ou recombinação de imagens preexistentes na memória ou no imaginário, seja pessoal ou coletivo. Em geral, produzimos imagens para um uso específico, seja para eternizar, relembrar ou reviver, seja para vender um produto, ideia ou serviço. As imagens boas nós colocamos em porta-retratos, álbuns, publicações e no Facebook. O que fazemos com todas as outras que não ficaram boas?”

O reaproveitamento criativo de material analógico descartado por fotógrafos profissionais é o que embasa uma série de fotografias que Tinoco vem desenvolvendo há três anos. “Separo as imagens por temas e assuntos: moda, arquitetura, retrato, paisagem. Dentro de cada tema, faço subdivisões. Utilizo fotografias impressas, negativos fotográficos e slides. Seleciono os elementos que me interessam na imagem contida nesses objetos e recorto.Reúno e reorganizo isso de maneira aparentemente aleatória, mas até formalista, porque me preocupo com forma e cor”, explica.

As colagens realizadas a partir de negativos e slides têm de passar por novos processos fotográficos para serem apreendidas no que a artista chama de “visualidade máxima”. Impressão cromogênica em negativo (C-print e fotograma) ou impressão em positivo Cibacrome são as soluções analógicas por que passam as colagens em sua última etapa de mediação. A obra final é uma espécie de metafotografia, porque as imagens iniciais são processadas de várias maneiras e o conteúdo inicial sofre inúmeros processos de abstração. O resultado é uma imagem construída e ficcional, que dá nova significação ao termo criatividade.

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