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Biojoias da Sereias da Penha, de João Pessoa (PB), que conta com direção artística de Ronaldo Fraga (Foto: Dayse Euzebio/Sereias da Penha)
Postado em 21/07/2016 - 6:10
Artesanal profissional
Em busca de aprimoramento e difusão, artesanato nacional ganha estatuto de design e centro de excelência no Rio de Janeiro
Luciana Pareja Norbiato

Anexado à definição de artesanato o Houaiss trazia o sentido figurado “diz-se das coisas feitas sem muita sofisticação; rústico”. Mas, hoje, a acepção depreciativa desapareceu desse dicionário. Artesanato é apenas “a arte e a técnica do trabalho manual não industrializado, realizado por artesão, e que escapa à produção em série; tem finalidade a um tempo utilitária e artística”. Esse é um claro sintoma de um movimento que começou nos anos 1980, sob a influência das mostras etnográficas de Lina Bo Bardi (saiba mais) e o ativismo pró-artesania do designer Aloísio Magalhães entre 1960 e 1970. Essa trilha mostra agora seus frutos: a busca dos designers pelas matrizes da manufatura tradicional e específica de cada região. É a percepção de que artesanato também é design, e dos melhores, num movimento de imbricação das duas áreas que vai da otimização da produção até a criação artística de peças únicas.

“É o processo de desconstrução de uma mentalidade colonizada”, diz a pesquisadora Adélia Borges à seLecT. “As primeiras escolas de design surgidas no Brasil tinham professores alemães, vindos da Bauhaus, e isso condicionou o pensamento nacional na preferência pelo industrial.” Pesquisadora de design reconhecida mundialmente, Adélia Borges é uma das maiores defensoras do artesanato como campo autônomo desse setor.

Salas da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)
Sala da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)

 

Por essa razão, foi convidada, junto ao designer Jair de Souza, para fazer a curadoria da exposição inaugural do Centro de Referência do Artesanato Brasileiro (Crab), um projeto ambicioso do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). O órgão é o oásis dos projetos de artesanato em meio à secura de recursos privados e públicos. Pelas iniciativas de financiamento e capacitação propostas pelo Sebrae há 20 anos ininterruptos, tradições manufatureiras isoladas regionalmente ganham pontes concretas para o território mundial. O Crab busca potencializar essa vocação, num cenário de agentes cada vez mais organizados em cooperativas, unindo expertises.

“Queríamos criar um lugar que se tornasse cartão-postal internacional do artesanato nacional. O Rio de Janeiro é um lugar perfeito, graças ao trânsito intenso de turistas de outros países”, diz Heliana Marinho, coordenadora do Crab. Além de servir como vitrine, a iniciativa aberta em março último quer ser também um centro de capacitação, visando a comercialização. Para incrementar as vendas, tem uma loja atrelada às mostras. Origem Vegetal, com curadoria de Borges e Souza, fica em cartaz até 24 de setembro nos três prédios históricos localizados na Praça Tiradentes, restaurados ao custo de R$ 40 milhões. Os produtos do espaço comercial do Crab serão os mesmos que cada mostra vai exibir ao público. “No século 21, o artesanato passa a ter outro valor, porque se percebe sua exclusividade e seu respeito pelo meio ambiente”, diz Marinho.

Sala da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)
Sala da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)

 

Nessa primeira curadoria, o eixo que liga os artefatos em exibição é sua matéria-prima vegetal. Pela bela expografia passeiam trabalhos de comunidades indígenas (como tupinambás, apurinãs e xavantes) até trabalhos mais autorais, como os do biojoalheiro Antonio Rabelo e da dupla Rodrigo Ambrósio e Rona Silva, habitués da Design Week de Milão. Além das exposições e da loja, o restaurante do Crab, ainda em fase de instalação, terá residências de chefs de cozinha, a fim de desenvolver cardápios especiais, ressaltando o caráter experimental do projeto. Um banco de dados dos artesãos-designers mapeados no País também está nos planos, além de uma midiateca, um auditório e salas de aula.

Das escamas às sereias
A compreensão do artesanato como manufatura de luxo, mesmo ainda encontrando resistência, vem gerando um movimento no sentido contrário, o de formação de designers-artesãos espontâneos. São pessoas que nunca fizeram trabalhos manuais, mas aprendem técnicas e tomam gosto pela coisa – como é comum na Europa, onde o artesanato é tido como técnica ensinada em cursos superiores.

Hoje há designers consagrados que trabalham em sistema colaborativo, criando um nicho de produção que se aproveita da matéria-prima local para gerar empregos e renda com sustentabilidade. É o chamado design social. Entre seus adeptos figuram nomes como Mana Bernardes e seus acessórios em garrafas PET, Heloísa Crocco, com artefatos de inspiração indígena, e um de seus mais notórios promotores, o design de moda Ronaldo Fraga. “Sinto que tenho um compromisso civil como designer de romper a barreira do preconceito que ainda existe entre o design industrial e o feito à mão. Essa elite que vai para Miami comprar bolsas Louis Vuitton produzidas em série na China não consegue entender que a artesania é exclusiva, única”, diz Fraga à seLecT.

Salas da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)
Sala da exposição Origem Vegetal, que inaugurou o Centro de Referência do Artesanato (Crab), iniciativa ambiciosa do Sebrae no Centro do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Sebrae-RJ)

 

O estilista costuma desenvolver um projeto por ano ligado a artesanato, e na coleção verão 2016 foi buscar na Penha de João Pessoa (PB) o diferencial de tramas e acessórios delicados, feitos de escamas de camurupim tricotadas com fios de cobre, inox, ouro, prata e linha de pesca. De quebra, botou 30 artesãs na passarela, caracterizadas com rabos de sereia e os seios de fora, uma divertida transgressão para um grupo com idades entre 18 e 85 anos.

“Quando descobrimos que íamos todas para a SPFW, ficamos naquela excitação. Tinha mulher no grupo que nunca tinha viajado de avião. Chegamos lá como anônimas e, depois do desfile, todo mundo veio cumprimentar e dizer que nossas peças são lindas. Foi uma emoção muito grande. Ronaldo Fraga nos emprestou seu nome e confiou no nosso trabalho, sem ele não teríamos o mesmo reconhecimento”, diz Joseane Izidro, 32, que segue na cooperativa, batizada pelo estilista de Sereias da Penha. O projeto surgiu pela iniciativa do Instituto Federal de Educação da Paraíba (IFPB), Prefeitura Municipal de João Pessoa e Sebrae-PB como uma série de oficinas de capacitação para mulheres da região e, sob a direção artística de Fraga, deu tão certo que hoje se sustenta com a venda dos produtos. “Temos a loja física e vendemos via internet para todo o País (pelo site www.sereiasdapenha.wordpress.com), mas estamos em processo de desenvolvimento de nossa loja virtual”, conta Izidro.