Haira haira / Haira haira / Haira haira. Uma tela branca de 12 x 3 metros começa a ser pintada com as figuras contidas na letra do canto de Isaías Sales, artista de nome indígena Ibã Huni Kuin. Na imagem, indígenas com cestos coletores nas costas andam em fila sobre um grande jacaré. Eles usam cocares com penas azuis, vermelhas e amarelas. As copas das árvores, em azul cobalto, se destacam em meio ao laranja dos troncos e o amarelo do céu.
As cores vibrantes da tela são enquadradas por uma moldura pintada com tinta preta, que destaca a obra na parede branca de 30 metros do Salão Monumental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Kapewẽ Pukenibu (2022) é a ponte jacaré, mito dos Huni Kuin que simboliza a travessia em busca do novo. O quadro, pintado ao longo de dez dias pelos integrantes do Movimento de Artistas Huni Kuin (MAHKU), integra a exposição Nakoada: Estratégias Para a Arte Moderna, em cartaz até novembro.

Equipe do MAM Rio desenrola tela Kapewẽ Kupenibu, do Movimento de Artistas Hani Kuin (MAHKU) [Foto: Fábio Souza/MAM Rio]
Novíssimo Edgard, Zahy Guajajara e Cinthia Marcelle completam o time de artistas convidados para dialogar com uma seleção de cerca de 120 obras de nomes do acervo do museu, como Tarsila do Amaral, Djanira, Volpi, Heitor dos Prazeres e Flávio de Carvalho. O ponto de partida é o centenário da Semana de Arte Moderna.
O projeto é uma parceria entre Beatriz Lemos, curadora adjunta do MAM Rio, e Denilson Baniwa, primeiro artista convidado para essa função. É a sexta vez que ele atua como curador, mas a primeira no espaço institucional de um museu – uma posição com potencial de ser “muito legal, mas também muito perigosa”, considera.
“Podem criticar isso, que não é o que esperavam de mim. Pessoas que acham que, por ser indígena, vou fazer uma exposição de arte indígena ou trazer uma crítica combativa contra o modernismo”, diz Baniwa à seLecT. “Se alguém esperava que Denilson Baniwa, uma pessoa indígena, fosse colocar fogo nos modernistas, sinto muito.”

Denilson Baniwa na véspera da abertura de Nakoada, ao fundo grafismo da tela Kapewẽ Kupenibu do MAHKU [Foto: Fabio Souza/MAM Rio]
Vencedor de duas edições do Prêmio Pipa (categoria online em 2019 e principal em 2021), Baniwa tem uma atuação marcada pelo enfrentamento. Mário de Andrade foi seu alvo em ReAntropofagia (2019). “Aqui jaz o simulacro de Macunaíma”, diz a anotação em um pedaço de papel pintado na tela, delicadamente posicionada em um cesto de palha, juntamente com um livro e uma cabeça degolada – que presume-se ser do escritor modernista pelos óculos de aros redondos.
Essa foi a resposta de Baniwa às discussões sobre o legado modernista para a arte indígena contemporânea, elaborada em parceria com o artista Jaider Esbell (1979-2021), que trabalha o retorno de Makunaimã, mito Macuxi que inspirou o escritor paulistano. Foi também uma mostra de mesmo nome – ReAntropofagia –, curadoria de Baniwa no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, em 2019, que se destacou como a primeira exposição em solo brasileiro curada por um artista indígena, contando apenas com expoentes indígenas entre os participantes.
Para o artista-curador, esse trabalho representa o ápice de um processo de “enfrentamento bélico” às instituições de arte, levado a cabo juntamente com Esbell, a quem conheceu no Goethe-Institut São Paulo em 2017, no primeiro encontro brasileiro de artistas indígenas contemporâneos.

Betatriz Lemos e Denilson Baniwa apresentam a exposição para a equipe do museu na véspera da abertura [Foto: Fábio Souza/MAM Rio]
Na edição seguinte, o evento teve uma presença indígena recorde: nove artistas, cinco deles brasileiros. Foi um marco de projeção para a arte indígena contemporânea, mas também o início de um processo de luto. Figura central para essa geração de artistas, Jaider Esbell se encantou no dia 2 de novembro, enquanto suas obras ainda estavam expostas no Pavilhão do Ibirapuera.
“Ser beligerante para mim foi funcional, teve sua importância até certo período. Mas quando o Jaider morre, você vê que a gente tem um poder e uma força que não é a mesma medida com quem nos roubou”, reflete Baniwa. Ele identifica o inimigo a ser combatido com algo impalpável, uma estrutura colonial. Para enfrentá-la, adota a estratégia nakoada, que encara a ofensa como um desafio à resposta, mas entende que o poder do ofensor é superior, “não pode ser encarado de frente”.
ORIGENS
Todos vão dançando / Com animação /Todos num só ritmo / Todos dando a mão. Antes de sair de sua casa em Niterói (RJ), na véspera da abertura de Nakoada, o artista colocou na vitrola Dance Enquanto é Tempo, parceria de Tim Maia com Paulo Ricardo. Postou também nas redes, para ele mesmo acreditar, que “vai dar tudo certo” ao final do percurso de um ano e meio de trabalho.
No MAM, último dia de montagem, Baniwa e Lemos param diante da Bilha (1994) pote de cerâmica de forma arredondada do povo Marubo. Decidem mudar a posição do objeto, voltando sua boca para o céu. O objetivo é reverenciar e agradecer, parte de um ritual instaurado entre eles durante a curadoria.

Boneca Karajá, do acervo do Museu do Índio [Foto: Fabio Souza/MAM Rio]
Além do nome do objeto e do artista, ano de realização e técnica utilizada, as legendas das peças trazem o nome do povo indígena e o tronco linguístico. A dimensão das legendas é maior em relação às demais, variando entre 240 e 280 mm.
DISPUTAS
Quando o dia se encaminha para o final, o desafio é encaixar as legendas do tamanho menor (120 x 120 mm) em uma vitrine com cartas, catálogos e fotos de artistas que estiveram no museu ao longo de sua história. Portinari, Tarsila do Amaral, Maria Martins, Djanira da Motta e Silva e Heitor dos Prazeres disputam o espaço de 2 x 0,80 m. Um deles terá que ficar de fora.

Vitrine com fotos, documentos e catálogos do acervo do MAM fechada na véspera da abertura [Foto: Fábio Souza/MAM Rio]
Em cerca de 20 minutos, a vitrine é fechada. Todos num só ritmo / todos dando as mãos – canta mentalmente Baniwa que, além de Lemos, está acompanhado também pela pesquisadora Moema Bacelar, a arquiteta Juliana Godoy e a designer Mariana Boghossian.
Foi dessa conversa entre curadoria, design e arquitetura, que nasceu a expografia de Nakoada, em formato de cobra. Em seu interior, são deglutidas as obras do acervo modernista. Na parte de fora do corpo serpenteante, estão os trabalhos contemporâneos e os acervos indígenas.
Uma exceção é Maria Martins. A escultura O impossível (1947), em que duas figuras se dissolvem em uma aproximação ambígua que traz elementos de encontro e afastamento, direciona o público de volta para dentro da cobra, ao encontro de Pata Ewa’n – o coração do mundo (2016), de Jaider Esbell. Nela, um cavalo marinho, ser mítico ligado às narrativas de origem do povo Macuxi, ocupa o centro. No interior azul de sua barriga nadam pequenos peixes, enquanto de sua boca se desprende um pássaro rumo ao exterior amarelo.
Forma de homenagem pensada pela curadoria, a tela dialoga com obras que também remetem à figura desse animal: O Urutu (1928), de Tarsila do Amaral, e A Cobra Grande Manda para Sua Filha a Noz de Tucumã (1921), de Vicente do Rego Monteiro. “Estão no mesmo patamar, no mesmo caminho, como se estivessem reverenciando Jaider, dando destaque para a obra”, aponta Lemos. “E contando três momentos de origem”, completa Baniwa.
Já é sexta-feira, dia de vernissage, a tensão dá lugar ao clima de festa. Andaimes são retirados, o barulho das furadeiras cede à discotecagem da área externa, que entra no Salão Monumental do MAM Rio pelas grandes janelas de vidro.
Todos vão dançando, com animação. Haira haira / Haira haira / Haira haira.
SERVIÇO
Nakoada: Estratégias para a Arte Moderna
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Av. Infante Dom Henrique, 85
Até 27/11
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Leandro Melito integrou a terceira turma do Laboratório de Escrita Editorial da seLecT, na plataforma Zait.