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Fachada do complexo ex-Rotaprint onde a 11a Bienal de Berlim iniciou seus programas (Foto: Mathias Voelzke)
Postado em 21/02/2020 - 6:24
Bienal processual: pistas de uma discussão em andamento
Coletivo curatorial temporário aborda 11ª Bienal de Berlim com bagagens sureñas e evocando experiências de Flávio de Carvalho
Daniela Labra

A Bienal de Berlim é conhecida como a mais experimental e de orçamento mais modesto entre as megaexposições em capitais mundiais ricas. Seu projeto, fundado em 1998 por Eberhard Mayntz e Klaus Biesenbach, é organizado desde 2004 no Instituto KW de arte contemporânea. O evento apresenta-se como espaço para o exame dos movimentos artísticos-culturais atuais e o conselho diretivo costuma escolher propostas curatoriais que arrisquem no formato e na visualidade, comprometidas com discursos políticos e históricos.

Para 2020, a 11ª Bienal tem projeto de María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Augustín Pérez Rubio, um coletivo temporário íbero-americano, branco, transgeracional e feminino, que une expertises sem ocultar a autoria das vozes que o conformam. Entre o grupo há conhecimentos em produção editorial, gestão institucional, catalogação de acervos, coordenação de plataformas pedagógicas, escrita historiográfica, crítica, docência e muitas exposições.

Lançando uma proposta processual inusitada para um grande evento internacional, o corpo curatorial trabalha alternando-se, por ora, em dois espaços: o Instituto KW, onde ficam os escritórios, e no complexo Ex-Rotaprint, um parque gráfico dos anos 1950 ocupado, desde 2004, por iniciativas criativas e sociais no bairro de Wedding. Ali o grupo começou os programas públicos numa espécie de soft opening de uma Bienal estendida em três momentos sequenciais: exp. 1, exp. 2 e exp. 3, desenvolvidos entre setembro de 2019 e maio de 2020, antes da mostra conclusiva, que será aberta em junho de 2020. As exp(eriências) evocam ações do controverso e inquieto modernista Flávio de Carvalho (1899–1973), sendo a primeira delas, já finalizada, chamada Os Ossos do Mundo. Este é também o título do diário de viagem do artista e arquiteto na Europa, nos anos 1930, lido curatorialmente como uma etnografia reversa do Velho Mundo. “Os Ossos do Mundo é um ponto de partida inicial consciente da crueza do tempo e das suas promessas quebradas. Ao mesmo tempo, é um alegre reconhecimento da vida que ocorre em meio, contra e apesar dos estados gerais de fratura à nossa volta. Daqui nós nos movemos”, diz o texto curatorial de apresentação.

Oficina de manual durante a 11a Bienal de Berlim (Foto: Mathias Voelzke)

Exposição-escola
No espaço-workshop processual da exp.1, obras em suportes precários foram instaladas. Uma programação pública de oficinas manuais, ações teatrais, palestras, performances, poesia, encontros e visitas guiadas juntava adultos e menores, estrangeiros, alemães, moradores do bairro ou não. Na chegada, o visitante encontrava um ambiente escolar de mesas com livros didáticos recortados e material à disposição, como tesouras, lápis de cor e cola, além de um quadro-negro, uma estante com mais livros e uma rádio antiga que transmitia vozes infantis entrevistando berlinenses nas ruas sobre a cidade após a Queda do Muro. A instalação-oficina, desenvolvida e ativada com crianças, foi conduzida pelo coletivo Die Remise, que investiga em Berlim políticas de imigração alemãs e transformações na sociedade desde a Segunda Guerra Mundial.

Após esse preâmbulo, havia a sala maior com a exposição de originais ou reproduções de artistas-pacientes psiquiátricos, livros infantis sobre prisão política, fotografias e impressos de Flávio de Carvalho, pôsteres do Museo de la Solidariedad chileno, imagens de ativistas vivos e mortos, de corpos queer, uma fotografia do sobrevivente Meteorito de Bendegó entre as cinzas do Museu Nacional no Rio de Janeiro, vídeos de cenas teatrais e outros. Eis as pistas de uma discussão em andamento acerca de necessidades de existência, linguagens silenciadas, poéticas da resiliência, práticas de cuidados, escutas e indagações diante da onda de violência planetária.

No entanto, mais do que representar um estado de indagação, o grupo, residindo temporariamente em Berlim, a vive de fato. À parte a infraestrutura institucional, eles se lançam ao risco e ao erro, estimulando a convivência entre comunidades numa curadoria do relacional e da transferência de saberes, de dinâmica um tanto performática. A exp. 1 foi “uma tentativa de se agarrar à beleza complicada da vida quando o fogo já eclodiu”, e observa os escombros do projeto modernista colonial menos como um fracasso e mais como uma possibilidade de reconstrução – daí talvez a relevante participação infantil na primeira etapa. Em novembro, a exp.2 trouxe a baiana Virginia de Medeiros em residência artística por três meses. Com ideias, desejos e perguntas, ela veio sem um projeto ou roteiro definido para uma imersão na cidade, nas suas histórias e comunidades. O processo como pesquisa ganhará forma na 4ª e última experiência curatorial.

Instalação com materiais precários na 11a Bienal de Berlim, incluindo a fotografia New Look de Flávio de Carvalho (Foto: Mathias Voelzke)

Relações sustentáveis
Tendo como uma das premissas a elaboração de relações sustentáveis e o que aprender com elas, parte desta Bienal processual funda-se em modelos de conhecimento em rede, comuns nas situações de coletividade e adversidade econômica. As decisões artísticas e de conteúdo são aprovadas por unanimidade na equipe, entre trocas e escutas sobre vidas e movimentos de gentrificação que atingem a cidade e com os quais, involuntariamente, o evento colabora.

Na chave da escuta e transformação deu-se a participação da poetisa, pintora e escritora chilena Cecilia Vicuña, com uma leitura performática política. Artista e ativista, desenvolveu nos anos 1970 o projeto Artistas por la Democracia, que consistia em ações públicas solidárias contra o autoritarismo dos regimes militares na América Latina. Na sua performance em Berlim, falou emocionada do esquecimento da noção de solidariedade hoje e de sua importância para o resgate da empatia, fundamental à restauração das políticas humanitárias em crise.

Caderno de desenhos (2019) de Cecilia Vicuña realizado durante a Bienal de Berlim (Foto: Bienal de Berlim)

O site da 11ª Bienal de Berlim é mais uma plataforma de pesquisa partilhada, e algumas referências dão o tom das discussões em curso: Maternidades Subversivas, da feminista, teórica pós-pornô e mãe María Llopis; Género y Colonialidad en Busca de Claves de Lectura y de un Vocabulario Estratégico Descolonial, da antropóloga feminista argentina-brasileira Rita Segato; Expresiones de la Locura: El Arte de los Enfermos Mentales, do psiquiatra alemão Hans Prinzhorn, pioneiro no estudo da arte de pacientes psiquiátricos; Touching Feeling. Affect, Pedagogy, Performativity, da acadêmica americana em estudos de gênero, teoria queer e teoria crítica Eve Kosofsky Sedgwick, entre outros materiais.

A equipe de curadoria traz identidades e bagagens sureñas, com atuações na Europa e em cenários culturais potentes e adversos no Sul. A abordagem crítica e prática, de certa forma, indica como a precariedade endêmica, que faz escola com o improviso, o acaso e orçamentos imprevisíveis, pode configurar uma expertise para sobreviver a tempos que exalam a exaustão do capitalismo. Muito conteúdo ainda será gerado até a última experiência do projeto, em junho de 2020, quando diferentes espaços na cidade serão ocupados por uma programação dinâmica e inclusiva, ao que parece. Contudo, a inauguração oficial da Bienal também poderá ser lida como um grand finale, encerrando uma obra curatorial coletiva, processual e aberta.

Apresentação teatral durante a fase de pesquisas da Bienal de Berlim (Foto: Mathias Voelzke)