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Lastros Imiscíveis (2020), de Lais Myrrha (Foto: Cortesia da artista)
Postado em 06/05/2020 - 7:04
Boletos vencidos
Iniciativas emergenciais sob o impacto da Covid-19 expõem limitações do circuito e desafiam a lógica do mercado
Nina Rahe

Antes mesmo do isolamento social ser tomado como medida em grande parte do país, o artista Traplev publicou em sua conta no Instagram um “diário do colapso”. “Como se acostumar que as instituições que nos contratavam para oficinas e exposições estarão fechadas por tempo indeterminado? Se a entrada de dinheiro antes era precária, agora sumiram as opções para os não assalariados”, ele argumentava no texto publicado em 18/3, poucos dias após o fechamento das principais galerias e instituições de arte.

A solução encontrada por Traplev diante da situação – em comum acordo com sua galeria, a Sé, em São Paulo – foi oferecer trabalhos para venda direta pela metade do valor de mercado. Com a comercialização de duas séries (um conjunto de Almofadas Pedagógicas e dois retratos do trabalho Diário Brazil), o artista pretende se sustentar pelos próximos três meses. 

Retratos da Série Diário Brazil (2016-em processo), de Traplev (Foto: Cortesia do artista)

A iniciativa emergencial de Traplev, em um momento que, segundo ele, as galerias não estão dando conta, mostra, em certa medida, o colapso de um sistema que já não atendia grande parte dos artistas. 

Há um ano, em maio de 2019, por conta da sua segunda indicação ao Pipa, Daniel Jablonski apareceu no vídeo produzido pelo prêmio com uma enorme faixa ao fundo: “O boleto sempre vence”. Embora o conteúdo se detivesse na explicação de seu trabalho como artista – e sua fala não apresentasse qualquer menção à faixa –, Jablonski divulgou na ocasião, em sua página no Facebook, o vídeo acompanhado de uma explicação: É a segunda vez que editam a mesma resposta que dei à pergunta “Qual seu sonho como artista?”. Sua resposta, no caso, era bastante simples: “Conseguir pagar as contas como artista.” 

Na opinião de Jablonski, o mercado tem lugar apenas para poucos cujas obras valem muito. Além disso, a arte é tratada como algo sagrado, transcendente, e falar em dinheiro desqualifica a criação artística, ainda que todo o sistema de arte seja econômico. “A gente ganha capital simbólico, distinção social, uma espécie de aura, mas isso em troca de um retorno financeiro que nunca virá. Se você fala em remuneração, é quase como se estivesse profanando a obra”,  diz à seLecT. 

Mas se até o ano passado havia uma resistência em encarar o fazer artístico como um trabalho regido pelas mesmas normas que atendem trabalhadores de outros campos, o impacto econômico causado pela pandemia de Covid-19 colocou no centro da discussão o fato de que os artistas também precisam pagar as contas para sobreviver. Essa constatação, que enterra de uma vez qualquer resquício da ideia do artista como um sujeito excêntrico e solitário, que se situa à margem do mundo laboral, aparece agora na base de uma série de iniciativas que desafiam a lógica do mercado de arte e evidenciam o fato de que o sistema – na forma em que está estabelecido – não dá conta de todas as classes de artistas. 

Sem mediação
Construir uma trajetória operando nos limites desse circuito, no entanto, já era uma realidade comum no cotidiano de artistas que, mesmo pré-pandemia, não viam a absorção da sua prática pelo mercado de arte. Sem galeria até este ano, quando passou a ser representado pela Estação, Moises Patricio, por exemplo, só conseguiu continuar sua pesquisa e produção por conta da rede de colaboração que construiu nas redes sociais. Para o artista do Jardim Elba, na Zona Leste de São Paulo, a quarentena sempre foi uma condição da periferia. “A falta, o medo, a reinvenção são lugares que o negro sempre viveu. É um corpo já acostumado a ser restringido, limitado. Por isso nunca tive problema em compartilhar as dificuldades dos meus processos de deslocamento”, ele diz. Com a venda (direta, sem mediação de galerias) de imagens da série Aceita? a R$ 500 cada, nos últimos quatro anos, Patricio participou da Bienal de Dakar, em 2016, e de duas residências artísticas em Nova York, entre 2018 e 2019. 

Fotografia da série Aceita (2020), de Moisés Patrício (Foto: Cortesia do artista)

Numa trajetória no sentido oposto, o artista Arthur Scovino abdicou da representação de seu trabalho pela galeria Triângulo, após ter vendido apenas uma obra durante cerca de um ano e meio. “Conversei com vários artistas e todos me diziam que vendiam pouco. Se eu tivesse outra fonte de renda, permaneceria na galeria, mas percebi que não servia para mim, que não tenho dinheiro para nada”. Desde que transformou seu apartamento em uma mistura de ateliê e galeria, em 2019, Scovino recebeu visitas programadas, realizou exposições e performances, contextos nos quais sua obra passou a ser comercializada pela metade do valor praticado na casa antiga, o equivalente ao que ele ganharia com a representação. O artista também começou a desenvolver trabalhos para serem vendidos a preços mais acessíveis, como as fotografias da obra São Jorge Elevador, no valor de R$ 300 cada. 

Fotografia da série …Renovar O Homem Usando Borboletas (2012-2014), de Arthur Scovino (Foto: Cortesia do artista)

Com a quarentena, a impossibilidade de receber o público e uma reserva financeira suficiente para três meses, Scovino recorreu ao Instagram com a ideia de vender fotografias da série Renovar o Homem Usando Borboletas para serem impressas em casa. Com a observação de que o projeto não se tratava de colecionismo, mas da colaboração para manter o ateliê, ele advertia que cada um poderia oferecer o mínimo que pudesse. Desde o anúncio do projeto, em 26/4, o artista recebeu ofertas que variaram de R$ 50 a $ 800 e vendeu cerca de 20 exemplares. “Nunca quis competir com galerias e feiras, mas apostar que seria possível criar um vínculo direto com os colecionadores”, diz. “Por que eu tenho que fazer uma tiragem de três em um valor alto se posso fazer algo que ultrapasse esse pensamento comercial, que fuja do colecionismo e entre apenas como investimento no trabalho do artista?”, questiona.

Tempo de partilha
O que mudou com a Covid-19 é que, o que eram casos isolados, agora são uma condição coletiva. Os preços das obras, também, antes ocultos, passarem a ser divulgados. Na iniciativa Quarantine, trabalhos de 45 artistas são vendidos no valor de R$ 5 mil e o lucro será dividido igualmente entre todos os participantes, como Lenora de Barros e Yuri Firmeza. A compra às cegas, sem que se possa ver o trabalho escolhido, também tem como objetivo criar um pacto entre o artista e o colecionador, que se torna, neste caso, também produtor da obra. A ele caberá, de acordo com a proposta enviada por e-mail, imprimir ou montar o trabalho. Pensar em peças produzidas e adquiridas nas condições da quarentena foi, ainda, uma maneira de não competir com as galerias. “Não há sobrevivência de um dos agentes sem pensar nos outros”, explica a artista Lais Myrrha, uma das coordenadoras do projeto. 

Procuro-me (fragmentos), de Lenora de Barros (Foto: Divulgação)

Na outra ponta, Jaqueline Martins lançou o projeto Four Flags, para o qual 32 artistas criaram uma edição de cinco bandeiras que serão expostas na fachada da galeria e cujo lucro será revertido integralmente para os autores. No valor de R$ 800, quase todas as peças já foram vendidas. Na opinião da galerista, apesar de ser um projeto provisório e que nasceu da urgência do momento atual, seria muito saudável que a transparência em relação aos preços se mantivesse após a pandemia. “Também acho que a prática de aplicar valores mais acessíveis seria benéfica, embora a gestão econômica de uma galeria, com as feiras e os impostos altíssimos, além do aluguel e da folha de pagamentos, torne isso difícil do ponto de vista prático”, explica.

O projeto Four Flags, na Galeria Jaqueline Martins (Foto: Divulgação)

Jaqueline Martins também participa de uma iniciativa inédita com outras galerias. Um grupo de Whatsapp, que começou com seis participantes, reúne agora representantes de cerca de 30 espaços de pequeno e médio porte para discutir ações em comum. Embora não tenha relação direta, é evidente que a vontade de união, já antiga, ganhou força após o cancelamento da SP-Arte e o comunicado da feira de que não ressarcirá integralmente o valor investido pelos galeristas. A negociação do caso está sendo conduzida por duas entidades de classe, a Abact, Associação Brasileira de Arte Contemporânea, e a Agab, Associação de Galerias de Arte do Brasil.

Obra de André Parente no projeto Four Flags (Foto: Divulgação)

Diante desse cenário de crise, a primeira ideia orquestrada pelo novo grupo foi intitulada p.art.ilha e contou com a adesão de 17 galerias, como a Casa Nova Arte e Cultura, a Janaina Torres e o Desapê. Entre as participantes, durante o mês de maio, a cada peça adquirida, o comprador ganhará crédito de igual valor para investir em obras de outros nomes do mesmo espaço. O lucro entre os dois artistas, desse modo, será partilhado, e a ideia é que os galeristas doem parte do faturamento para cinco instituições com foco no atendimento de artistas e minorias em situação de vulnerabilidade social.

Disfarça e chora (2020), de Mulambo (Foto: Divulgação)

A galeria Portas VilaSeca, que está no grupo mas preferiu não aderir à ação de estreia, lança ainda nesta semana o programa Arte+Care, que irá comercializar trabalhos inéditos dos artistas representados no valor de R$ 900 a R$ 2 mil, doando 15% de seu lucro a projetos sociais. O artista Pedro Victor Brandão participa do projeto ao lado de Mano Penalva e Ayrson Heráclito. Com tantas iniciativas novas, ele avalia que o maior problema do sistema das artes era sua opacidade. “Essa opacidade era vista como valor, mas, na verdade, é um erro”, o artista argumenta. “Nesse momento em que galerias e museus estão cortando funcionários, as feiras retendo parte do valor investido, é como se as situações entre todas as pontas se tornassem, enfim, transparentes”.