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Postado em 15/06/2013 - 2:17
Breve ensaio sobre um goleiro cuja “trave caiu”
Antonio Carlos Prado

A estrela, a sina e o temperamento de Bruno Fernandes das Dores de Souza, o goleiro Bruno. Líder do Flamengo na conquista do hexa, em 2009, o “Paredão Rubro-Negro”, ainda por cima, fazia balançar a rede do adversário

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Legenda: Bruno começou no Atlético Mineiro e passou pelo Corinthians. Briguento e explosivo, virou ídolo no Flamengo, mas o terceiro tempo de sua carreira começou atrás das grades. (Foto: Alexandre Guzanshe/Fotoarena/Folhapress)

Há uma imensurável distância no quesito fama entre jogar nos mais diversos estádios do mundo vestindo a camisa da seleção brasileira e atuar no acanhado time mineiro do Boa Esporte. Na mesma linha de raciocínio, é claro que é melhor estar em uma equipe, ainda que pequena e sem expressão nacional, do que ser goleiro peladeiro no pátio de uma cadeia. Ocorre, porém, que tanto na Seleção quanto em qualquer outro time – e até mesmo em penitenciárias – dá para jogar o chamado “futebol arte” ou aquele que é denominado “futebol de resultado”.

Naldário Ramos saiu neste início de 2013 de um presídio paulista. Jogava futebol três vezes por semana na prisão, isso ao longo de sete anos, e gostava de ser goleiro. “Tem jogo que dá pra caprichar e fazer bonito, tem jogo que só interessa arrancar o resultado”, disse ele a SeLecT. Já que Naldário era goleiro no “xilindró”, vale indagá-lo sobre o goleiro Bruno Fernandes, preso desde 2010 em Minas Gerais, onde nasceu, pelo sequestro, assassinato, vilipêndio e ocultação de cadáver da ex-modelo Eliza Samudio, com quem teve um filho, mas não quis assumir a paternidade – foi condenado em júri popular, no início de março, a 22 anos e três meses de prisão. Ele passou dois anos negando reiteradamente a participação no crime e só quando percebeu que jamais seria absolvido é que decidiu fazer uma confissão-enrolação em conta-gotas, na esperança de receber homeopaticamente a redução de pena. O truque não funcionou. Perdeu.

O ex-detento Naldário anima-se ao responder, sentado juntamente com o repórter da SeLect em um banco do Terminal Rodoviário do Tietê: “Quer saber sobre o goleiro Bruno, né? Olha, a sua absolvição seria igual ao futebol arte, só que no tribunal é jogada pelos advogados, mas eles terem proposto que Bruno ficasse preso em casa se fosse contratado pelo Boa Esporte é apelar demais para conseguir o menos ruim: isso é o futebol de resultado no campo da Justiça”. E como você, Naldário, define o Bruno no futebol? “Ele jogava com arte quando dava, e jogava feio, mas eficiente, quando era preciso. No caso da Eliza, é como se tivesse tentado o futebol de resultado, o futebol força, mas vacilou, né? Perdeu.”

Odel Antun é um dos mais conceituados advogados criminais do Brasil e integra, segundo os meios jurídicos, uma das melhores bancas de advocacia da América do Sul, comandada pelo também penalista Roberto Podval – na qual o futebol é assunto do dia a dia. Além do Direito, outra paixão de Odel é a culinária, porque ambos “exigem arte”. O que isso tem a ver com futebol? Explica-se: se um processo nas mãos desse escritório é processo ganho, já houve tempo em que chutes contra as traves guarnecidas por Odel significavam a bola em suas mãos, defendida. Se Odel não fosse advogado, seria goleiro, função que só abandonou devido ao deslocamento que certa vez sofreu no ombro direito – ele chegou a ter contrato assinado com a Portuguesa de Desportos, a Lusa do Canindé. Corintiano 24 horas por dia, e todos os dias, Odel viu algumas vezes Bruno desmanchar os seus sonhos de vitória, como em 2010, em uma histórica partida entre o seu Corinthians e o Flamengo. Bruno jogava em sua carreira o “futebol arte” ou o “futebol de resultado”? A resposta vem com a amplitude de um tiro de meta que atravessa o meio do campo: “Bruno não jogou tempo suficiente em alto nível para se dizer se chegaria à solidez” – em outras palavras, se chegaria à Seleção Brasileira.

Na verdade, é mais difícil para um goleiro, comparando-se a um atacante, demonstrar a sua arte. Enquanto um jogador de linha pode perder um ou dois gols, e depois marcar numa terceira tentativa, para o goleiro o pressuposto é que ele não deixe “passar” uma única bola. “O atacante pode falhar, a torcida esquece, mas o goleiro, se errar, fica marcado”, diz a palmeirense e administradora de empresas Nandra Macário, fanática por futebol e casada com… adivinhe… um homem que nas horas de divertimento é goleiro. Outra diferença a se levar em conta é que o próprio “futebol arte” foi mudando com o tempo, enquanto a função do goleiro, seja o futebol que for (“futebol força”, “futebol arte”, “futebol de resultado”), é sempre a mesma – cata a bola, meu nego, do jeito que der para catar. 

O “futebol arte” já foi muito mais drible e jogada de efeito do que é atualmente. Por exemplo, nos tempos de Garrincha na ponta- direita zoando os adversários que ele indistintamente chamava de “João” ou nos tempos do centroavante Pagão e seus passes de calcanhar na famosa linha dos “P” do time do Santos (Pagão, Pelé e Pepe), driblava-se ainda mais, bem mais, do que Neymar dribla nos dias de hoje. Não se fala, aqui, da qualidade dos dribles, mas sim da quantidade deles. E mesmo Neymar, se cotejado ao “futebol arte” europeu, joga completamente diferente: tome-se o estilo espanhol como espelho e tem-se o mais puro “futebol arte” de passes, de lances coletivos e de velocidade. Todos têm sua graça, porque o futebol traz graça e alegria em si, e isso se vê até nas transmissões, sobretudo as radiofônicas. Em uma seleção de locutores houve craques que deixaram a sua arte, como Edson Leite (“gol de Friaça, quase vem abaixo o Maracanã”, no fatídico 2 a 1 para o Uruguai em 1950), Geraldo José de Almeida (“mata no peito, baixa na terra, ponta de bota…”), Fiori Giglioti (“balão subindo, descendo, cabeça na bola aliviando…”) e Osmar Santos (“é fogo no boné do guarda, pimba na gorduchinha…”).

É impossível não citar o compositor Ary Barroso, ele mesmo, o compositor da clássica Aquarela do Brasil. Foi locutor de futebol e era flamenguista, o mesmo time que Bruno iria defender décadas depois, quando fez sua carreira desabar e foi parar atrás das grades. Pois bem, quando o Flamengo jogava contra o Fluminense (os famosos Fla-Flu de um tempo em que o País era bem mais delicado), Ary Barroso, microfone na mão, virava o rosto para não assistir ao Fluminense atacando, e dizia no ar: “Eu não quero nem ver”. É assim mesmo, como o leitor entendeu: quem estava ouvindo a transmissão de Ary ficava sem a narração dos ataques do Fluminense, só ouvia a das investidas do Flamengo, que era a sua equipe do coração. A arte sempre esteve, assim, dentro e fora do campo, e muda com o tempo e o lugar nos quais se joga futebol.

Goleiro tem de ter sorte, certo? Disso ninguém duvida, e Bruno a teve – afinal, poucos favelados, como ele foi na infância e adolescência em Belo Horizonte, chegam à glória e à fama que Bruno chegou. Em 2005, ele estreou pelo Atlético Mineiro somente porque o goleiro titular, Danrlei, estava suspenso e o goleiro reserva, Diego, fora convocado para a Seleção Sub-20. No ano seguinte foi para o Corinthians, mas nem sequer atuou porque brigou com Deus e o mundo – o temperamento explosivo é um de seus traços de personalidade. De novo a sorte lhe foi madrinha quando o Flamengo o contratou e o goleiro titular se contundiu. Bruno então fixou-se na posição e nesse ponto vale destacar seus méritos: reflexo excelente, boa colocação e, acima de tudo, perfeita saída para fazer as defesas, o chamado “tempo da bola” – tanto que uma de suas virtudes era a de ser exímio “pegador de pênaltis”, como diz Nandra. Segundo ela, o “tempo de saída” é o que impede o goleiro de “caçar borboleta”, ou seja, encontrar somente o ar e não a bola com as mãos. “Eu gostava do Bruno, ele tinha o fator sorte e reflexo, sem dúvida alguma era um forte candidato à Seleção Brasileira”, diz ela. 

Compartilha dessa opinião o jornalista são-paulino João de Andrade Neto, do site “Conversa Fiada”. “Bruno era cogitado para a Seleção”, diz ele. Mais: Bruno, na opinião de João de Andrade, era um legítimo representante do “futebol arte”, definição que “tem como um de seus fundamentos o bom uso dos pés”. Na linhagem de Rogério Ceni na habilidade do chute, o fato é que Bruno também chegou a marcar gols cobrando faltas pelo Flamengo. Nada mal para quem, aos 28 anos e com 1,90 metro de altura, não deixava balançar a sua rede, mas fazia balançar a rede do adversário. Nada mal para quem ganhou o apelido de “Paredão Rubro-Negro”. Agora, no entanto, tudo isso entra em um terceiro tempo e ele terá de arquivar as glórias na própria alma, que se tornou um estádio vazio e sem refletores. E Bruno não terá mais de se preocupar em agarrar bola molhada e escorregadia porque, em dias de chuva, não há “futebol arte” ou “futebol força” em nenhuma cadeia do Brasil.

*Antônio Carlos Prado é editor-executivo da revista IstoÉ. Aos 4 anos viu na televisão o filme Eu Quero Viver, sobre a história real de Barbara Graham, executada em San Quentin. Formou uma inabalável convicção contra a pena de morte, ainda mais inabalável atualmente.

*Publicado originalmente na edição impressa #11.