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Postado em 29/11/2012 - 2:52
Cãosciência
Nina Gazire

Pesquisas indicam que os cães sabem muito mais sobre como nos condicionar do que nós achamos que sabemos sobre a sua linguagem

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Ilustração: Lucas rampazzo

A maioria dos pesquisadores coincide que a convivência entre cães e homens teve início há perto de 15 mil anos. Essa amizade, que teria sido travada no começo do período paleolítico, fez com que, além dos primatas, os cães se tornassem o grupo mais estudado pelos centros de psicologia cognitiva do mundo. Hoje se sabe que um cão bem treinado é capaz de compreender nada menos que 165 palavras diferentes, segundo estudos realizados pelo doutor Stanley Corey, do Centro de Psicologia Animal da Universidade de British Columbia, no Canadá.

Segundo o mesmo estudo, os cães também podem resolver problemas complexos, o que atribui à espécie capacidade mental próxima da de uma criança de 2 anos. No livro How Dogs Think: Understanding the Canine Mind, ainda não publicado em língua portuguesa, o doutor Corey descreve seus mais de 40 anos comandando pesquisas sobre a cognição canina. Em uma delas, ele analisou as respostas de mais de 200 juízes de provas de trabalho do American Kennel Club. A pesquisa resultou na criação de três categorias para distinguir a inteligência canina: instintiva, adaptativa a trabalho e obediência. De acordo com os critérios usados pelo doutor Corey, a raça Border Collie seria a mais inteligente, seguida por Poodle e Pastor Alemão.

Mas definir a capacidade da inteligência canina ligando-a apenas à raça é uma estratégia controversa que gera debates acalorados. Pesquisadores da Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA), realizam pesquisas ligadas à aprendizagem de cães e garantem que qualquer cachorro é capaz de apreender níveis aprofundados de linguagem. As pesquisas revelam que, na grande maioria das vezes, estamos enganados quando achamos que os cães trabalham no mesmo nível de comunicação que os seres humanos. “Quando chegamos em casa e um cão vem nos receber dando lambidas, muitas vezes pensamos que são como beijos de boas-vindas, ou que sinalizam um amor incondicional, quando, na verdade, a lambida pode ser um jeito de seu cão dizer que está com fome”, explica o doutor em psicologia Brian Hare, do Centro de Estudos de Cognição Canina da Universidade de Duke, em entrevista por e-mail à seLecT.

Hare e outros cientistas estão realizando experimentos para determinar o que comportamentos caninos – como o referido “beijo” – realmente significam. Em alguns casos, a pesquisa sugere que os nossos animais de estimação estão nos manipulando para conseguir o que querem. “O que diferencia os cães dos lobos é a característica da neotenia: eles sofreram mutações genéticas para parecerem sempre mais dóceis do que realmente são”, completa Hare. O estudo quer provar que talvez os cães saibam muito mais sobre como nos condicionar do que nós achamos que sabemos sobre sua linguagem.

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Foto: Rusten Hogness

A bióloga e professora de História da Consciência da Universidade da Califórnia, Donna Haraway, declara em seu texto The Companion Species Manifesto: Dogs, People and Significant Otherness, escrito em 2003 e sem tradução para o português, que durante séculos os cães foram usados erroneamente como medida para o surgimento da cultura na civilização humana. No manifesto, Haraway afirma que a espécie canina foi a primeira a ser domesticada pelo homem.

A aproximação dos primeiros cachorros dos aglomerados humanos certamente não se deu só porque restos de comida eram deixados para trás, mas também porque esses homens primitivos necessitaram da sua presença. “Flexibilidade e oportunismo nomeiam o jogo de ambas as espécies, que, na realidade, modelaram uma a outra ao longo de uma história que diz respeito a uma coevolução”, escreve Donna Haraway no documento produzido por ela, considerado um marco nos  estudos sobre consciência animal.

Este ano, na Documenta de Kassel, o texto ganhou uma forma artística na obra do dinamarquês Tue Greenfort. O projeto The Worldly House, uma casa localizada no Karlsaue Park, reúne em arquivo livros, textos e trabalhos artísticos que abordam as relações sociais entre humanos e outras espécies, inclusive cães. No espaço, atividades como provas de agility – prova de obstáculos para cachorros –, comidas e brinquedos deram lugar a um ambiente de convivência entre espécies e onde as alteridades podiam entrar em harmonia.

Novas espécies

Acirrando o debate sobre alteridade, o artista pernambucano Edson Barrus se apropria do cão como alegoria para ilustrar uma sociedade que ainda se apoia na teoria da evolução natural para justificar a ideia de pureza genética. Na obra Cão Mulato, de 2010 e ainda em andamento, Barrus criou um programa de computador que simula geneticamente a criação de uma raça canina que seria sempre mestiça.

A ideia surgiu quando o artista foi alvo de preconceito racial em uma viagem à Alemanha. “Foi um maneira que escolhi de responder ao preconceito. Usei meu conhecimento de melhoramento animal e cheguei a esse projeto. Criei um modelo teórico no qual crio uma raça canina que sempre será mestiça e que não permite que outro a nomeie ou categorize com padrões.É o inverso do que os criadores de cães fazem. Se fizéssemos com humanos o que fazemos com cães, isso seria politicamente incorreto”, diz Barrus. 

Cãomulato

Esquema do projeto GFP K-9, de Eduardo Kac, que propõe a modificação genética de um cão com uma proteína verde fluorescente

Grande parte dos criadores defende com unhas e dentes o não cruzamento entre diferentes raças e a esterilização para “cães de raça indeterminada” – os famosos vira-lata. Há mais de 400 anos a criação de raças assistida pela reprodução controlada é outra prática que serve para falsamente conservar a repetição de certos padrões genéticos e reproduzir a ideia de pureza de raças caninas. “A ideia é uma falácia, o conceito de raça parte do pressuposto de pureza, quando na verdade é apenas a repetição de certos padrões genéticos.Pensei o projeto para discutir a questão da clonagem, do controle reprodutivo, da promessa que toda a ciência faz da possibilidade de se desenhar um filho, e de ter um design ideal na hora de se criar um humano”, desabafa o artista, que, assim como todos os humanos, compartilha 82% de seus genes com a espécie canina. 

Em suma, em parte, nós também somos cães, assim como os cães são humanos. Em outra direção, pensando a emergência de novas afetividades no contexto tecnocientífico, está o brasileiro Eduardo Kac, que também participou do projeto de Greenfort, na Documenta de Kassel. Em 1998, no artigo Manifest on Transgenic Art, Kac propôs o projeto GFP K-9, que modificaria geneticamente um cão com a proteína GFP – Proteína Verde Fluorescente presente em certas algas marinhas. O cão brilharia quando colocado sob luz fosforescente, em determinadas condições de temperatura. Ao idealizar esse trabalho, que em sua época não foi realizado devido a limitações tecnológicas, Kac buscava não apenas criar uma nova espécie transgênica, mas investigar os sentimentos surgidos quando esse novo ser híbrido passasse a conviver em seu cotidiano.

Matéria publicada na edição 08, outubro de 2012