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O díptico Nubes/ Disappearing Jaguar (2018) marca o retorno de Cecilia Vicuña à pintura e trata sobre os incêndios criminosos na Floresta Amazônica (Foto: Cortesia da Artista, Lehman Maupin, Nova York, Hong Kong e Seul)
Postado em 19/02/2020 - 2:56
Cecilia Vicuña: o céu escuro na construção de um futuro iluminado
Ao articular poesia, pintura e ritual, a artista chilena resgata saberes indígenas sobre o poder da união e da realidade comunal
Luana Fortes

Com apenas 7 anos, Cecilia Vicuña fazia seminários no bosque, reunindo crianças em rodas de conversas. “O que eu ensinava, eu não tenho ideia”, conta à seLecT. Sua prática artística compreende trabalhos de artes visuais, poesia e performance, áreas que se embaralham para a constituição de uma obra heterogênea e sensível.

Ação site-specific Quipu Vivo, de Cecilia Vicuña, realizada em Nova York, em 2006 (Foto: Tara Hart, Cortesia da Artista, Lehman Maupin, Nova York, Hong Kong e Seul)

À artista importa reconectar o indivíduo com o coletivo. “A principal violência dos colonizadores europeus foi a destruição da visão de si que tinham os povos originários da América. E essa visão segue tendo uma força espiritual, social e política imensa, porque está baseada na concepção do indivíduo como capaz de ser parte de um todo, ao mesmo tempo que é absolutamente único”, diz Vicuña.

Uma das vertentes de sua obra reside na elaboração de rituais-performances, para os quais não programa nada, com o objetivo de permitir que algo genuíno aconteça. Às vezes usa lã, às vezes pedras ou somente o silêncio para produzir uma experiência de comunhão entre os presentes. “Quem está lá e sente aquilo não esquece mais, porque é uma experiência pela qual sinto que as pessoas têm fome. Elas não têm somente fome de água limpa, de comida não contaminada. Existe fome de sentir”, diz.

Vicuña reconheceu essa mesma potência do coletivo nos protestos que ocorreram em cidades do Chile em outubro de 2019. “O que se vê nessas manifestações é uma explosão de gozo, de felicidade, como uma plenitude humana que se gera ao se reconhecer como uma unidade.” A artista também se impressionou ao olhar para a mobilização social e perceber que os manifestantes compartilham de sua visão sobre a linguagem como arma, apostando no poder transformador das palavras em bandeiras, bordados e estandartes. Prova da atualidade de sua pesquisa iniciada nos anos 1960 é o lançamento no Brasil de PALAVRARmais (Editora Medusa, 2018), escrito há 52 anos. O livro trata as palavras como criaturas que têm a capacidade de afetar as coisas vivas.

Em 1973, exilada em Londres, após o golpe do general Augusto Pinochet, Vicuña compôs o livro Palabrarma, acrônimo que une palavra a arma. “As línguas, a composição interna e a energia das palavras são verdadeiramente armas por excelência, no sentido de oferecer a possibilidade de mostrar a verdade”, diz a artista.

Basuritas, quipoemas e pinturas
Aos 18 anos, fez seu primeiro objeto chamado basurita – que, em português, é um diminutivo da palavra lixo. A série de trabalhos, em processo até hoje, é composta de pequenos objetos frágeis, feitos de fragmentos de coisas despretensiosas coletadas por aí. As Basuritas (1966-2019) enquadram-se no conceito Arte Precária, que a artista criou para não usar termos colonizados já existentes. O termo reconfigura a noção de precariedade a partir de uma valorização daquilo que é efêmero, que pode ser perdido, mas que testemunha mudanças.

Outro formato que se repete em sua produção, desde os anos 1960, são os Quipoemas, que junta as palavras quipu e poema. Quipus são conjuntos de cordões usados pelos Incas para comunicação. A partir de relações de cor e número de nós em cada fio eram transmitidas mensagens. Na obra de Vicuña, são recorrentes quipus de lã que, além de evocar essa memória, abordam de forma crítica a perda de sistemas de comunicação ancestrais. “O valor tão importante das culturas indígenas que ainda estão vivas é que elas não perderam a tecnologia de acesso a diferentes dimensões do ser. A proteção da selva, dos rios e da natureza é fundamental. Mas tão fundamental quanto isso é defender as dimensões da imaginação”, diz a artista mestiça, nascida em Santiago.

Tanto as Basuritas como os Quipoemas são recorrentemente usados nas performances da artista. Uma linguagem que não persistiu ao longo de sua trajetória foi a pintura. Vicuña decidiu abandonar a prática pictórica nos anos 1970. “Minha pintura foi muito perseguida e odiada. A maior parte das telas foi destruída. Os militares destruíram minhas pinturas, meus parentes e amigos destruíram minhas pinturas. Todos que tinham uma pintura minha colocaram no lixo, porque acreditavam que ela não valia nada”, conta.

Leopardo de Nieve (1969), pintura de Cecilia Vicuña (Foto: Cortesia da Artista, Lehman Maupin, Nova York, Hong Kong e Seul)

Foi pelo olhar de dois curadores brasileiros que as pinturas de Cecília Vicuña foram absorvidas pela cena artística internacional – as que sobreviveram, evidentemente. Em 2014, Adriano Pedrosa e Rodrigo Moura reuniram trabalhos de mais de cem artistas em diversos espaços culturais do Rio de Janeiro, com a exposição Artevida. Foi a partir dessa exposição, que contou com ampla participação de Cecilia Vicuña, que a obra pictórica da artista foi retomada, tendo sido exibida na documenta 14, em Atenas, em 2017. As pinturas foram então adquiridas por importantes museus, como MoMA, Guggenheim e Tate. “Foi realmente o olhar desses dois curadores que colocou valor às minhas pinturas. A única parte da minha obra que havia sido suprimida está voltando com uma força tremenda”, diz.

Por coincidência, poucos anos antes dessa legitimação, Vicuña voltava a pintar silenciosamente, pois o processo da perda dos antigos trabalhos foi muito doloroso a ela. “A primeira pintura nova que fiz, ano passado, neste novo ciclo de renascimento do óleo foi sobre o desaparecimento da Floresta Amazônica pelos incêndios provocados, que me parecem o crime máximo contra o futuro do planeta.”

Até 24 de fevereiro de 2020, Cecilia Vicuña exibe a mostra Minga Del Cielo Oscuro no Centro Cultural da Espanha, em Santiago, no Chile. A exposição promove o encontro de saberes entre artistas e cientistas para pensar sobre a presença do céu escuro na construção de um futuro iluminado, em que sabedoria ancestral e ciência brilhem por igual. Minga, em quéchua (idioma inca), significa convocar um trabalho coletivo para um propósito comum.