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Still do filme The New Dead End #17 Summer School of Slow Orientation in Zapatism (2017), realizado pelos integrantes do Chto Delat quando participaram da Escola Zapatista, em Chiapas, México (Fotos: Cortesia dos Artistas)
Postado em 04/12/2019 - 10:00
Chto Delat: arte engajada
Trabalho do Chto Delat, coletivo de arte, política e ativismo, expressa poética permeável ao contexto social com os quais se relaciona
Ada Maria Hennel, de Berlim

Chto Delat, cuja tradução literal para o português é “O que fazer”, faz referência ao título do texto publicado por Vladimir Lenin, em 1902, que por sua vez foi inspirado em romance de mesmo nome, escrito por outro revolucionário russo, o filósofo Nikolai Tchernichévski, em 1863. O romance que dá origem a essa cadeia de citações, aborda a criação de pequenas cooperativas baseadas em comunidades de camponeses russos e direcionadas para a produção industrial.

Chto Delat, o coletivo, foi fundado em 2003 por artistas, críticos, filósofos e escritores de São Petersburgo, Moscou e Níjni Novgorod, com o objetivo de fundir teoria política, arte e ativismo. Seus membros são Tsaplya Olga Egorova, Nina Gasteva, Nikolay Oleynikov, Gluklya Natalia Pershina, Alexey Penzin, David Riff, Alexander Skidan, Oxana Timofeeva e Dmitry Vilensky. Sua produção interdisciplinar conjuga e abrange diversas vertentes: teoria, instalação, escultura, vídeo, performance, publicações, conferências, ações públicas e educação – em 2003, eles fundaram a School of Engaged Art (Escola de Arte Engajada). Os projetos do coletivo são acompanhados por um jornal publicado em inglês e russo.

Os intensos debates de seu grupo editorial se materializam em ensaios teóricos, projetos artísticos, traduções, questionários, diálogos e histórias em quadrinhos. Cada edição é distribuída gratuitamente em seminários, exposições, fóruns sociais e está disponível no site do coletivo.

Movendo-se em rotas coletivas, o Chto Delat atua no contexto do legado sociopolítico da Rússia Soviética e numa democracia cada vez mais desbastada, que tem acompanhado a neoliberalização no país desde os anos 1990. Em seu trabalho, eles transmitem a situação complexa da Rússia atual sob a ditadura de Vladimir Putin, ao mesmo tempo que criam aparatos para a dissidência em um regime onde a oposição é enfrentada com repressão. No campo da produção teórica e cultural, o coletivo explora como poderia ser a democracia e o socialismo no bloco oriental. Eles executam experimentos cujo objetivo é encontrar novas formas de organização sociopolítica, principalmente como um coletivo de arte. 

A intenção da plataforma é mostrar que as relações sociais e políticas são construções temporárias e, portanto, mutáveis. “Os artistas-proletários estão em toda parte, mas a questão é quando eles serão transformados em uma nova classe que poderia moldar uma nova visão emancipatória do futuro e deixar de ser um simples exército de servidores para a hiperburguesia”, diz Dmitry Vilensky à seLecT.

Seguindo as linhas de pensamento de Félix Guattari, o coletivo argumenta que a estética continua sendo um componente vital do potencial artístico para impactar tanto a sociedade quanto seus indivíduos. Três trabalhos desenvolvidos a partir de vivências em residências artísticas e outros deslocamentos constituem-se como exemplos de um corpo de trabalho que expressa uma poética permeável ao contexto social com o qual se relaciona.

Porto seguro para artistas perseguidos
O filme It Hasn’t Happened to Us Yet. Safe Haven (2016) foi criado pelo Chto Delat em cooperação com um programa de residências da Artists at Risk (AR) – instituição na interseção dos direitos humanos e das artes, dedicada a mapear o campo de praticantes de arte visual perseguidos, facilitando uma saída segura dos seus países de origem, hospedando-os em “AR-Safe Haven Residencies” e curando projetos relacionados. AR-Safe Haven é uma rede de residências formada em cidades pequenas e agradáveis ​​da Europa, capacitadas para acolher artistas, autores e músicos que vivem em países onde a liberdade e a dignidade humana estão em perigo.

Dirigido por Tsaplya Olga Egorova, o filme prevê uma situação imaginária em que cinco pessoas chegam a um porto seguro em busca de abrigo. A videoinstalação em dois canais conta a história fictícia de cinco artistas que escapam da guerra, fugindo para uma ilha remota. Em planos-sequência documentais, os habitantes da ilha explicam em entrevistas o que move sua solidariedade aos artistas refugiados e quais as condições para a integração social. Porém, gradualmente, percebe-se que a esperança dos artistas de superar os conflitos do mundo – e suas próprias disputas – refugiados em um exílio pacífico era uma ilusão.

Distopia política
Produzido a convite de Charles Esche, diretor do Van Abbemuseum em Eindhoven, na Holanda, o filme Museum Songspiel: The Netherlands 20XX (2011) integra a série Songspiels, que faz referência às obras de Bertolt Brecht e Kurt Weill e se referem a temas sociais e políticos concretos.

O roteiro tem como pano de fundo um cenário imaginário da política holandesa no ano 20XX, onde todos os imigrantes foram banidos do país. O museu parece ser a única instituição da qual um reminiscente grupo de imigrantes ilegais espera receber ajuda para escapar da deportação. A situação, que lembra um zoológico (humano), onde pessoas são isoladas atrás de paredes de vidro, é finalmente resolvida quando o diretor do museu diz a um jornalista que o museu nunca pretendeu esconder os imigrantes das autoridades, e que eles foram contratados como atores para uma performance.

O filme estabelece relações entre política racista, o movimento anti-imigração e a política cultural holandesa, enquanto trata de imaginar seus efeitos num futuro próximo, com base na tradução da situação russa: uma política de segurança nacional e eliminação pelo Estado de tudo que, de acordo com os movimentos conservadores, não faz parte dos incentivos de mercado.

O que parecia um pesadelo ontem (em 2011, quando o filme foi realizado), está se tornando realidade. O partido holandês de extrema-direita Fórum para Democracia (FvD) ampliou consideravelmente a sua votação nas últimas eleições, no início deste ano, conquistando a segunda maioria no Senado.

Orientação comunitária zapatista
Em 2016, os integrantes do Chto Delat foram convidados a participar da Escola Zapatista, em Chiapas, no México, e o filme The New Dead End #17 Summer School of Slow Orientation in Zapatism (2017) é decorrente dessa pesquisa realizada na comunidade caracol Oventik. Os caracoles são organizações das comunidades autônomas Zapatistas.

Dezessete participantes da escola de verão de orientação Zapatista viveram por duas semanas numa casa de campo para vivenciar e estudar o comunitarismo Zapatista. O trabalho resultante da experiência é um vídeo em três canais sobre um pedaço de terra presenteado pela Rússia para uma embaixada Zapatista, como gesto comemorativo do centenário da revolução bolchevique.

Em uma das telas, o personagem Durito (trata-se de um besouro da simbologia Zapatista criado pelo Subcomandante Marcos – nome de batalha de Rafael Guillen, idealizador e líder do grupo armado Exército Zapatista de Libertação Nacional) estrela uma apresentação de marionetes. Em outra, vemos membros do coletivo e alunos de sua School of Engaged Art em uma dacha (casa de campo russa), compartilhando suas experiências em Chiapas e testando, através da performance, uma prática artística auto-organizada politicamente, inspirada pela autonomia indígena Zapatista.

O trabalho foi mostrado no Museu Universitário de Arte Contemporânea, na Cidade do México, no contexto da primeira exposição individual do coletivo no país, Chto Delat: Cuando Pensamos que Teníamos Todas las Respuestas la Vida Cambió las Preguntas” (2017-2018). Os Zapatistas parecem representar para o Chto Delat um ideal de ética organizacional com o potencial de renovar formas europeias de construção comunitária. O grupo declara ter-se inspirado no ideal de compartilhamento da vida rural dos camponeses do sudeste mexicano e nos estudos que eles realizaram visando explorar as possibilidades de transformação da sociedade neoliberal.