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Em Neuro Memento Mori: meditations on death, a artista Jane Prophet anima uma escultura de seu próprio busto com diversos padrões de projeção mapeada (Fotos: Gabriel Menotti)
Postado em 20/06/2016 - 2:35
Ciborgues da contrarrevolução
Simpósio Internacional de Artes Eletrônicas, em Hong Kong, confronta história política chinesa para falar da "nova geopolítica da fabricação artística"
Gabriel Menotti

O 22º Simpósio Internacional de Artes Eletrônicas (ISEA, a sigla em inglês) aconteceu em Hong Kong, no dia 16 de maio. Foi nessa mesma data que, há exatos cinquenta anos, Mao Tsé-Tung fez circular um memorando no qual acusava seus adversários no Partido Comunista de serem agentes infiltrados. Esse foi o gatilho para a Revolução Cultural Chinesa, que culminou com a derrota da oposição moderada e o recrudescimento do regime no país, sob o controle do ditador.

O tema do ISEA desse ano é grafado como Cultural R>Evolution; o sinal matemático interrompendo a palavra como uma contrabarra poderia ser de um poema de gosto duvidoso, divorciando-a do sentido consagrado ao incitar uma segunda leitura. Embora não haja nesse trocadilho nenhuma crítica explícita, é difícil supor que o simpósio tenha optado por fazer um elogio à história. Afinal, estamos em Hong Kong, cidade que desde meados do século 19 esteve fora do controle do governo chinês. A cidade só deixou de ser colônia britânica em 1997 e, mesmo depois de incorporada à República Popular da China, ainda possui o status de região administrativa especial, gozando de relativa autonomia social, política e cultural em relação ao resto do país. A Revolução Cultural não chegou aqui.

Em Hong Kong, seria mais pertinente – e até inevitável – falar de outra revolução, mais recente, menos consumada, ainda fresca na memória dos habitantes. Das manifestações que há dois anos ocuparam as ruas da cidade e, na falta de atenção que nos é própria, teimamos em compreendê-la como uma breve “primavera asiática”. O nome que emergiu das redes sociais e ganhou reconhecimento entre seus participantes foi Revolução dos Guarda-Chuvas, em alusão ao objeto que carregavam para se defender do gás lacrimogêneo atirado pela polícia. O movimento havia sido organizado em protesto contra as restrições impostas pelo governo chinês às próximas eleições em Hong Kong, a ocorrer no ano que vem. Nesse sentido, foi uma pequena contrarrevolução para fazer frente àquela outra, histórica, há décadas procrastinada por razões administrativas.

Os participantes do ISEA acoplam seus smartphones em Google Cardboards distribuídos pela organização do evento para experimentar a performance em realidade virtual Awkward Consequence, de Christian Clark, Tobias Klein e Tomas Laurenzo.
Os participantes do ISEA acoplam seus smartphones em Google Cardboards distribuídos pela organização do evento para experimentar a performance em realidade virtual Awkward Consequence, de Christian Clark, Tobias Klein e Tomas Laurenzo

Na medida em que sutilmente trazia à tona esse entroncamento de reviravoltas geopolíticas – algumas tão atuais, outras tão arraigadas –, o ISEA possibilitava aproximá-las ainda mais do difuso campo da “arte eletrônica”. A programação transbordava de painéis acadêmicos, apresentações de artistas, workshops, exposições e palestras – distribuídos ao longo de sete dias por diversos lugares da cidade, articulando tópicos como “a nova geopolítica da fabricação (artística)” e “sem-massa: e-ocupação líquida”. Mas, malgrado o otimismo que o sinal de “maior” utilizado no tema do simpósio pudesse expressar, grande parte do discurso corrente não celebrava a tecnologia mais do que comemorava revoluções.

O destaque à ideia de “evolução”, que em outros tempos talvez acendesse esperanças de superar nossa inadequações por meio da novidade, não deixava de ser ambíguo. Adequar-se, na China ao redor, é ser incorporado a um sistema cuja ilustração mais dramática são as linhas de montagem das empreiteiras que sujeitam seus trabalhadores a condições de vida sub-humanas para viabilizar a produção em massa das gadgets “disruptivas” projetadas no Vale do Silício. Performances como Foxconn Frequency (no. 2) – for one visibly Chinese performer e Drone Pilot v0.4, apresentadas durante o evento, encenam essa existência precária ao colocar os artistas agindo mecanicamente. Na primeira, cria-se uma situação insustentável, onde a pianista está fadada a fracassar repetidas vezes, lutando com a máquina ao tentar executar as sequências de notas musicais que lhe são solicitadas. Na outra, o orador emula trejeitos de aplicativos text-to-speech, transformando deficiências tecnológicas em marcas expressivas de uma linguagem que nos é cada vez mais familiar e até reconfortante. Ambas chamam a nossa atenção para os ciborgues que existem: não somos nós que superamos nossa condição mortal, mas os amálgamas corporativos que nos absorveram como peças funcionais, intercambiáveis.

No discurso que proferiu no penúltimo dia da programação acadêmica, o professor Benjamin Bratton (da Universidade de San Diego) colocou o ser humano em perspectiva ao enumerar as diversas camadas que compõem aquilo que chama de Stack, a estrutura computacional de escala planetária em que estamos imersos. O usuário está lá, encapsulado pela interface, pelo endereçamento, pela cidade, e por outros estratos ainda mais sedimentados de protocolos interdependentes. Não é um modelo em que despontamos como mestres de nossas invenções, senhores de nosso destino. Pelo contrário, parecemos enrascados, presos num emaranhado de sistemas que determina até mesmo forças físicas, econômicas e sociais que julgávamos fundamentais. Diante dessa realidade, o fato de a tecnologia – como as revoluções – ser capaz de tanto emancipar quanto subjulgar o ser humano talvez seja um efeito colateral irrelevante. De que mudanças ainda somos capazes?

Gabriel Menotti é curador independente e professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)