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Postado em 27/04/2015 - 5:11
Cidades imaginárias
Gustavo Fioratti

Complexos urbanos idealizados por pintores, escritores, cineastas: como a poética pode contaminar a realidade e também ser contaminada por ela

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Legenda: Inspirada no projeto Metrópole Fluvial, desenvolvido por Alexandre Delijaicov na FAU-USP, fotografias de Gabriel Rinaldi modificadas pelo fotodesigner Fujocka mostram como seria São Paulo com seu sistema hídrico recuperado (foto: Gabriel Rinaldi [foto], Fujocka [arte] / Editora Trip)

À parte suas idiossincrasias, Wheel, 17 e Zaíra são cidades que compartilham algo em comum: elas não existem. Ou melhor, existem, mas em um plano que não é este onde repousam São Paulo, Tóquio ou Piracicaba.

Espelhamentos de uma época ou frutos de poéticas decalcadas nas realidades urbanas, essas três cidades fictícias exemplificam um tema que se espraiou por campos de expressão diversos. Filmes de Hollywood têm cidades inventadas. Quadrinhos, videogames, obras literárias e as artes visuais também.

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Legenda: Detalhe da escultura em madeira Cityscape, do escritório americano McNnabb Studio (foto: McNnabb Studio)

City Wheel, uma roda cujos raios são prédios, pertence às City Series, conjunto de peças geométricas criadas desde 2011 pelo norte-americano James McNabb, a partir de aglomerações de edifícios-miniaturas em madeira. City 17 foi criada pela Valve, empresa especializada em videogames, para o jogo Half Life 2; e Zaíra é uma das 55 cidades descritas pelo escritor italiano Italo Calvino em seu livro As Cidades Invisíveis (1972), um clássico da literatura fantástica. Podemos acrescentar a essas até mesmo a escura e perigosa Gotham City, cujos becos são cenários para as aventuras de Batman. Ela foi criada nos anos 1940, 15 anos após a estreia do filme Metrópolis (1927), do austríaco Fritz Lang. Haverá mais exemplos, no decorrer deste texto, de cidades e metrópoles imaginárias que poderiam formar uma coleção de retratos da passagem do século 20 para o 21. Pertencessem ao catálogo de um gênero – ao lado de paisagens, naturezas-mortas, retratos, obras conceituais –, as imagens de cidades que não existem comprimem a identidade de uma era.

Nelas há temas recorrentes e que “permanecem inescapáveis”, diz à seLecT Darran Anderson, escritor irlandês que está finalizando o livro Imaginary Cities, a ser lançado em maio (no Brasil, a opção será adquiri-lo pelo site Amazon). Ao falar sobre seu trabalho, o autor identifica nessa opção temática “o desejo de construir Babéis e derrotar Deus, a tecnologia como expansão dos sentidos humanos, os espaços em branco preenchidos nos mapas com sonhos e pesadelos, o horror das distopias, o memento mori lembrando que tudo um dia estará em ruínas e, à parte tudo isso, nosso desejo de que tudo permaneça para sempre”.

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Legenda: What Says the Flowers, desenho do americano Benjamin Sacks (foto: Reprodução)

O marco inicial do livro de Anderson é As Cidades Invisíveis, de Calvino, com sua série de lugares fantásticos descritos em diálogos fictícios pelo protagonista Marco Polo a Kublai Khan, imperador que pretende erguer o reino perfeito. O processo de transferir ideias para o papel e erguer construções tridimensionais é “mais poético do que consideramos”, diz Anderson. “Pegue o Taj Mahal ou o Cristo Redentor. Não há outra razão para que qualquer uma dessas estruturas exista senão como algo que foi antes sonhado por alguém. E, ainda assim, temos a impressão de que aquilo nos foi dado por Deus.”

Cidades que existem

Ao considerar que o desenvolvimento das cidades (aquelas que de fato existem) mantém relação íntima com a imaginação e as artes, o autor defende que essas mesmas cidades podem, e provavelmente vão, a partir de agora, passar por um gradual processo de reinvenção. “Existe certa liberdade na tarefa de dedicar-se ao hipotético, algo que nos permite discernir o que é daquilo que poderia ser”, diz Anderson.

A literatura do século 20 teria ela própria nos influenciado a um sistema em colapso. “Aldous Huxley, George Orwell, Yevgeny Zamyatin e companhia nos precaveram contra certas tendências que poderiam levar ao totalitarismo. Mas uma coisa que não previram foi uma era em que nos tornamos paralisados pelo cinismo e pela apatia, uma desconfiança em parte introjetada pela própria literatura distópica. Em uma era que se recusa a acreditar em qualquer utopia, o niilismo e os oportunistas prosperam.”

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Legenda: Edifício Guarita, maquete de Marcio Kogan e Isay Weinfeld, integrou a 25a Bienal de São Paulo, Iconografias Metropolitanas (foto: Reprodução)

Para o arquiteto e urbanista Alexandre Delijaicov, da FAU-USP, problemas urbanos também podem surgir de imaginários específicos, aqueles que derivam das deturpações estimuladas, por exemplo, pela lógica do mercado. “O desastre urbano que estamos vivendo agora foi armado por um imaginário que se dedicou à tarefa de iludir e enganar”, cita em depoimento à seLecT, em contraponto ao que chama de “utopia concreta”.

Delijaicov é um dos coordenadores do grupo de estudos Metrópole Fluvial. Com o objetivo de estudar, fomentar e difundir a cultura de projetos de arquitetura de infraestruturas de cidades fluviais, o grupo passou a imaginar uma São Paulo reconfigurada a partir da valorização de seu sistema hídrico, hoje poluído, canalizado ou estancado por paredões rodoviários. Uma utopia concreta.

A palavra “utopia” também deu norte ao professor de história da arte Hans Ulrich Reck em texto para o catálogo da 25ª Bienal de Arte de São Paulo. A mostra era composta de 12 módulos dedicados ao tema Iconografias Metropolitanas (2002), e no 12º módulo construiu-se coletivamente uma metrópole imaginária. Reck passa pela ideia de que “em meio a ruínas a utopia faz sentido”, referindo-se ao paradoxo de almejar o perfeito no futuro.

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Legenda: La sortie de l’Opéra en l’An 2000 (1902), ilustração de Albert Robida comentada por
Darran Anderson no livro Imaginary Cities (foto: Reprodução)

Nas cidades criadas pelo desenhista americano Benjamin Sack, as questões éticas e comportamentais infiltram-se por território paralelo, pelo estético puro. Em seus detalhados organismos urbanos, as formas geométricas funcionam como células. “Cidades, de uma maneira bem simples, são compostas de pontos, linhas, quadrados, cubos, círculos, triângulos, cilindros. Eu retrato a evolução de algo simples para algo complexo, e também a força que direciona esse trajeto a fazer uma ligação entre história, física e artes”, diz Sack.

Neste caso, a memória do artista exerce o papel de catalisar reações provocadas pelo encontro de culturas e tempos. Os resultados são vistas aéreas, ou “birdviews”, que assumem a perspectiva de um pássaro. Se imergíssemos nesses quadrados, cilindros e triângulos, em um voo rasante pelos espaços vazios desenhados entre eles, encontraríamos outros complexos em escala humana, como os retratados pela série fotográfica Imaginary Towns, do italiano Francesco Romoli. “Luzes que iluminam ruínas, melancolia, uma mistura de memória intuitiva e resignação. Meus personagens encaram tudo isso quase como heróis que precisam lidar com a solidão das cidades”, diz Romoli.

E então o imaginário complexo de outra criatura monstruosa, aos poucos, vai se formando em pleno século 21. Delijaicov lembra que as cidades, e desta vez ele fala das que existem de fato, são elas próprias “obras coletivas e, portanto, abertas”. Podem ser consideradas, conclui, a maior expressão artística já criada pelo homem. Com imaginários que se combinam. Ou que se destroem.

*Artigo publicado originalmente na edição #23