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Postado em 05/01/2015 - 5:36
Cine massa
Luciana Pareja Norbiato

Estratégias de realização, difusão e financiamento do cinema pernambucano em especial, e do Nordeste em geral, estão por trás do boom de visão crítica e experimental que invade as telas

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Legenda: Cena de Ventos de Agosto (2014), em que o diretor Gabriel Mascaro também atua no papel de um documentarista pesquisador do vento (foto: Beto Figueiroa / cortesia Gabriel Mascaro)

O cinema do Nordeste vai muito bem, obrigado. Encabeçado por Pernambuco, traz em seu rastro as cenas de Ceará, Bahia e Paraíba. Equipara-se aos poucos ao eixo Rio-São Paulo quanto à infraestrutura e gira por um universo estético mais instigante que no Sudeste, aglutinado em grande parte no modelo mainstream.

Já é possível finalizar filmes no Recife, graças ao laboratório criado no Porto Digital, centro de tecnologia pioneiro. O estado também já conta com câmeras de 35 mm e com formação universitária: desde 2008, a Federal de Pernambuco oferece o curso de Cinema e Audiovisual.

As conquistas que se acumulam na atualidade (tanto quanto as premiações) devem-se ao pioneirismo da chamada primeira geração: Lírio Ferreira e Paulo Caldas, diretores de Baile Perfumado (1996) – marco inicial do movimento – Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz (egresso da capital cearense), Adelina Pontual e Hilton Lacerda, entre outros.

Nos anos 1990, a cena pernambucana inexistia. Sem verba e infra, num cenário incipiente mesmo em RJ e SP, a turma teve de inventar o cinema local. “Todo mundo juntava forças, era um participando do filme do outro, porque era algo novo, na raça. Foi bem na retomada do cinema nacional”, conta Cecília Araújo, ex-mulher de Cláudio Assis e continuísta de todos os seus filmes, incluindo o inédito Big Jato, baseado em livro “semiautobiográfico” do jornalista Xico Sá. “Uma das características do cinema de Pernambuco é a coletividade; é bem família do cinema, todos se ajudam.”

Isso integra a comunidade cinematográfica do Nordeste entre si e no País. “É muito bom ver a qualificação artística e técnica proliferando em todo o Brasil. As parcerias agora surgem mais por interesse de troca do que por dependência”, explica Gabriel Mascaro, realizador da nova geração pernambucana. “Há cerca de seis anos a troca entre os pernambucanos e os cearenses tem sido amplificada. Meu último filme (Ventos de Agosto, que estreou em novembro último) foi montado por Ricardo Pretti, da Alumbramento (coletivo cearense de videoinstalações e filmes). Outro filme meu foi fotografado por Ivo Lopes, também da Alumbramento.”

Do edital à lei

A primeira geração do atual cinema pernambucano formou-se em torno da estética do mangue, de modernizar a tradição. Isso trouxe uma visualidade e uma temática particulares, que destacaram a produção na cena nacional.

Com a visibilidade, foi natural que o poder público, aqui em nível estadual, promovesse uma linha de incentivo direta à produção, em parte cedendo à pressão do setor, em parte para capitalizar em proveito próprio a boa imagem. Criado em 2003, o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) ganhou, em 2007, divisão por áreas, uma das quais audiovisual, dentro do governo de Eduardo Campos. Contemplando várias frentes dessa produção, o segmento dispõe de longe da maior verba (R$ 11,5 milhões) entre todas as áreas, como circo, artesanato e fotografia, entre outras. Por exemplo, Patrimônio – o segundo colocado – tem verba total de R$ 2,42 milhões.

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Legenda: No alto, Cláudio Assis e Cecília Araújo durante filmagens de Febre do Rato (2012); abaixo, a atriz Dandara de Morais como a protagonista de Ventos de Agosto, (2014), dirigido por Gabriel Mascaro (fotos: no alto, cortesia Cecília Araújo; abaixo, cortesia Gabriel Mascaro)

A outra grande diferença do Funcultura Audiovisual é que, desde 2013, tornou-se lei, enquanto as outras áreas estão à mercê das mudanças de gestão, pois são editais com vigência anual. Essa mudança de status saiu da caneta de Campos, numa articulação que incluiu um jantar na casa do governador em 28 de agosto de 2013.

“Sem ingenuidades, ele (Funcultura Audiovisual) foi usado, sim, pelo então governador (Eduardo Campos) para capitalizar imagem em cima de uma demanda real e urgente do setor, que seria transformar em lei uma política pública bem-sucedida feita em conjunto com os realizadores”, disse Gabriel Mascaro, um dos participantes do jantar, que também contou com a presença de Hilton Lacerda, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Kátia Mesel, Camilo Cavalcante, Daniel Aragão, Marcelo Lordello, Marcelo Gomes, Gabriel Mascaro, Adelina Pontual, Kleber Mendonça Filho, Emilie Lesclaux, Isabela Cribari, Chico Ribeiro e Paulo Caldas. A pressão surtiu efeito e, dois meses depois, o canal de incentivo foi efetivado como lei, enquanto as outras artes não tiveram a mesma sorte.

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Legenda: Colagem de Edmundo Desnoes, que ofereceu seu romance Te Sigo para ser filmado por Cecília Araújo; projeto será rodado no começo de 2015 (foto: cortesia Cecília Araújo)

Ainda assim, a lei é o diferencial do cinema pernambucano em relação ao resto do País. “O edital, na forma como está, foi fruto de uma mobilização sem precedentes, em que todas as entidades e associações ligadas ao audiovisual em Pernambuco praticamente redigiram uma lei que protege o audiovisual com aportes financeiros contínuos e soberania do júri para decidir com liberdade ideológica. No momento, esta é uma grande diferença do que é produzido em Pernambuco em relação aos outros estados. Realizadores que jamais imaginariam ter acesso a fundos estão conseguindo fazer filmes ousados, pesquisas de risco e com grande vigor crítico com total liberdade”, explica Mascaro.

Assim, a situação da nova geração de cineastas de Pernambuco, caso de Mascaro, Marcelo Pedroso e Kleber Mendonça, entre outros, é muito mais estruturada que da primeira turma. Cecília Araújo é um exemplo. Seu primeiro longa de ficção na direção, Te Sigo, foi contemplado pelo Funcultura para a filmagem e será rodado no início de 2015. “O bom é que é possível inscrever um mesmo projeto em várias etapas, como filmagem e depois finalização”, ela explica. O filme é a terceira parte da trilogia do escritor cubano Edmundo Desnoes, que virou cult entre cinéfilos, antecedida por Memórias do Subdesenvolvimento (1968) e Memórias do Desenvolvimento (2010). O próprio escritor viverá seu alter ego na película, contracenando com a atriz cubana Annia Bu. É a história da filha de um escritor cubano que vem atrás do pai no interior de Pernambuco. “Estou muito feliz por abordar essa temática da América Latina, de ampliar os temas recorrentes no nosso cinema”, diz a cineasta.

*Reportagem publicada originalmente na edição #21