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Postado em 07/11/2012 - 5:08
Cinema-sombra
JM

Laura Lima se apossa da Fundação Eva Klabin para realizar um filme com 100 horas de duração

Laura_lima

Legenda: Detalhe de Cinema Shadow (2012), intervenção em caneta sobre reprodução da pintura Madona, Menino e Dois Anjos, de Jan Provost (c. 1510), obra da coleção de Eva Klabin (Foto: Divulgação)

O Projeto Respiração, que acontece desde 2004 na Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Marcio Doctors, é muito provavelmente a plataforma expositiva mais experimental e desafiadora das artes visuais no Brasil em anos recentes. Em intervenções recentes, Carlito Carvalhosa, Maria Nepomuceno e Enrica Bernardelli transfiguraram o local de maneiras insuspeitas (confira na galeria acima).

A partir do dia 13 deste mês, Laura Lima ocupa os tradicionais espaços da casa para filmar três horas diárias em plano seqüência a partir de indicações de um roteiro para seus convidados e equipe técnica, criando uma atmosfera particular e a sugestão de uma narrativa possível. O público não terá acesso à filmagem in loco, mas vai poder acompanhar a transmissão ao vivo no auditório da Fundação Eva Klabin. A ação será transmitida simultaneamente para uma sala de cinema da Caixa Cultural. Para a artista, o público deve ir ao cinema, como para uma exposição de arte.

Sem pré-gravação e edição, Cinema Shadow/Segundo construirá por fim um filme de 100 horas, projeto único da artista. Cinema Shadow/Segundo tem a colaboração do dramaturgo e roteirista Emanuel Aragão, do músico Domenico Lancelotti, câmeras de Paulo Camacho e figurino de Bruna Lobo. Leia a seguir o ensaio do curador sobre o projeto de Laura Lima.

(Fleshimage) ou Carnimagem, por Marcio Doctors

Não podemos ter nem cerimônia nem inocência para entrarmos em contato com a obra de Laura Lima. Ela é crua. Crua como a carne dos corpos vivos com que trabalha. Como na série Homem=Carne / Mulher=Carne, que se desdobra ao longo de sua obra, desde 1995. Gesto de equivalência que busca um espaço real, como nos mostra Lisette Lagnado (1). Ou Vaca na Praia, seu primeiro trabalho público, realizado nas praias do Arpoador e Diabo, no Rio de Janeiro. Ou ainda a presença recorrente dos corpos em várias outras situações que se apresentam nus, seminus, vestidos ou maquiados, silenciados como vida carne, reforçando-os na sua crueza (pureza) como matéria suporte da sua obra (2). Há nessa “equação” uma irredutibilidade que a afasta radicalmente de qualquer apreensão de representação tradicional. A carne viva que ali está é matéria reconhecível e familiar do mundo, disponível para articulações absurdas (absurdas?…), ou não seria ela, na sua sem cerimônia ou na sua não inocência, o limite irredutível da impossibilidade da representação e da mimese?

(…)

Laura Lima esvazia a representação como ilusão ou mimetismo para substituí-la por uma rede de conteúdo e expressão, criando coerência de articulações capazes de nos colocar frente a frente com o mistério do mundo, sem cerimônia ou inocência, indicando-nos: eis aí o caos! O caos é o caldo que nos alimenta e irrompe como força desagregadora que a ação/arte agrega como maneira de nos manter aliados à potência geradora do universo, como o ponto de contração que necessitamos para nos aproximar da radicalidade do real, que se apresenta sem dissimulações ou causalidades, como descolamentos contínuos. A crueza do corpo e da representação não ilusionista é a semente que compõe a imagem do mundo para a artista e é, de fato, o material com que trabalha e que lhe permite uma ação de caráter nômade da imagem, implícita nas suas criações. Não se trata de ser no exterior da imagem (como queriam os renascentistas) ou de ser no seu interior (como queriam os modernistas) ou de romper a barreira arte/vida (como queriam os artistas dos anos 1960/ 1970), mas de ser na imagem, como agente cúmplice do seu devir, como se o olhar não nos pertencesse, mas como se nós pertencêssemos ao olhar da imagem (6).

O agenciamento do paradoxo que estabelece através de sua obra nos permite pensar a história da arte fora do registro da mimese; como uma história da não representação. Isso aparentemente pode não ter nada de novo. Afinal desde o impressionismo, a arte deixou de seguir os cânones da representação naturalista clássica. Mas a contribuição da obra de Laura Lima para essa questão é que a representação passa a ser um problema dos historiadores e não dos artistas. Historicamente o artista nunca representou nada de fato. Sua prática sempre foi a de desterritorializar para reterritorializar sentidos. Esse é o movimento interno da arte que permite a cada artista não representar, mas reproduzir o mundo ao reordenar a matéria e seus fluxos, criando estilos singulares, que depois os historiadores agrupam, definindo estilos de épocas. Em outras palavras, a única coisa que o artista faz é “representar”, mas representar não como substituição a algo preexistente, mas como recriação contínua das forças da criação. Mergulha no caos para evidenciar o mistério como processo contínuo de reterritorialização.

A maneira como Laura Lima articula essa questão é de uma sabedoria visual que requalifica o problema da representação, recolocando-o em outra dimensão. Não se trata de abstrair o visível para se aproximar das potências dissociativas da representação do real, que permitiram maior aproximação das forças imateriais e intangíveis como parte da expressão plástica, tal como fizeram os modernos clássicos ao filtrarem a experiência do conceito kantiano do sublime. Justiça seja feita, apesar de ingênua e moral, a estética kantiana reafirma a certeza da arte como sensação. O que Laura faz é reafirmar o repúdio à representação clássica historicista (por verossimilhança), ou afastar-se da representação moderna historicista (por abstração), buscando estabelecer blocos de sensações (7)  como campo de irredutibilidade do real na arte. Por isso mesmo é que seu golpe é preciso e contundente porque nos apresenta a crueza do real. Em outras palavras, como não quer a possibilidade da dissimulação implícita na mimese, afirma a crueza da matéria e evidencia que o que a arte sempre fez de fato foi identificar-se com as forças de criação do cosmos sem misturar-se com ele, mas articulando a sua potência criativa, que é o mistério que experimentamos diante do caos. Busca explicitar o campo do indiferenciado, criando um ponto de constrição pela contundência expressiva e pela contração do sentido e vice-versa, eliminado tudo que é desnecessário, tudo que vem carregado de significação.

(…)

Quando começamos a conversar sobre a intervenção que ela gostaria de fazer na 16ª edição do Projeto Respiração e ela contou que seria algo como o Cinema Shadow, apresentada nas Olimpíadas deste ano em Londres no projeto Rio Ocupation London, a imagem que me veio de imediato foi a de saturação do momento. Fiquei surpreso quando ela me disse que o título seria Segundo. Surpreso pelo duplo sentido contido nessa palavra, que tanto pode ser o segundo de uma série numérica quanto segundo no sentido de marcação do instante cronológico, que para mim é saturação do momento; é o instante. E essa ideia se fechava com a percepção que eu tinha da sua obra, que trazia embutido aquilo que Virginia Woolf definiu como “colocar aí tudo e contudo saturar”.

(…)

A dificuldade de apreender a obra de Laura Lima, assim como a dificuldade de escrever sobre arte, está na irredutibilidade entre as palavras e as coisas, tal como demonstrado por Foucault (9). A artista é consciente dessa dificuldade e busca criar uma espécie de glossário que possa ajudá-la e nos ajudar no pensamento e na percepção de sua obra, ao querer redefinir conceitos cristalizados, que não dão mais conta do que ela deseja fazer. As palavras vão se desfazendo do seu sentido habitual para dar lugar a novas cruezas de sentido que se formam no espaço negativo da palavra e que pretendem dar coerência à sua experimentação. No caso de Cinema Shadow / Segundo, por exemplo, o que ela propõe não é cinema, performance, registro e, muito menos, reality show. Poderíamos buscar definir como um filme sem ser cinema; uma performance sem usar o corpo como roteiro, mas o instante como coreografia do tempo; um registro de uma narrativa sem interpretação ou significado; uma exposição do acontecimento vivo, sem pretender ser um voyeurismo da vida alheia. É uma explosão poética do instante em que, de novo o dado da crueza se revela na centralidade da cena, desnudando as camadas de mistério do mundo e nos apresentando a sua obra em um campo fronteiriço, que poderíamos precariamente definir como uma fronteira de vazios ou como irrupções cintilantes do caos. Talvez melhor seria definir Segundo como o exercício de imagens sonambúlicas que atravessam o mundo sem narrativa ou significado porque nada carrega consigo o em si. São imagens nômades que recusam a edição e se apresentam como plano sequência como a própria constituição da imagem se dá na vida, que, como nos mostra Bérgson, no mesmo tempo que se faz imagem, se faz memória (10). Nesse duplo movimento, ou melhor, nesse instante fenda em que a constituição da imagem se desdobra duplamente em imagem percebida e em imagem lembrança, que se dá Cinema Shadow / Segundo. Por isso ele não é cinema, mas faz uso do filme, não é performance, mas faz uso do corpo no instante, não é registro, mas faz uso da apreensão do momento vivido, não é reality show ou transmissão ao vivo porque não está interessado nem na narrativa nem no conteúdo e nem no significado imediato das coisas, mas faz uso de um espelhamento fílmico como experiência do vivo e do vivido.

Numa noite de insônia e dominado por um caminhar peripatético pela casa fui tomado por ideias sonambúlicas do que seria o Cinema Shadow / Segundo e fui levado a vislumbrá-lo como “carnimagem”. E escrevi o seguinte:

Carnimagem. Por onde o mundo resvala; por onde o mundo se esconde; e o artista, alquimista que é, apresenta a imagem da carne e a carne da imagem, desfazendo o mistério que se apresenta como mistura do que não se quer e o apresentando na sua transparência como aquilo que se percebe e que se sente. A artista ” como os artistas ” é uma sábia: sabe fazer a imagem retornar ao seu nascedouro de ser antes do mundo. Fez-se primeiro a imagem, que ficou vagando pelo cosmos, como a carne devir que se faria mundo. Por isso acreditamos no cinema, por isso acreditamos na pintura, por isso acreditamos na arte; formas de presenças que se fazem visíveis (artes da presença) porque tão real e verdadeiro quanto o atual é o virtual e tão real e verdadeiro quanto o virtual é o atual. Cinema Shadow / Segundo.

Marcio Doctors
Rio de Janeiro, outubro de 2012

1 LAGNADO, Lisette. No texto, denominado “Obra da distância”, Lisette Lagnado, ao referi-se ao uso do corpo na obra de Laura Lima escreve: “Carne, eis em princípio o material básico do trabalho de Laura lima. Sua proposição se inicia com uma fórmula restritiva: Homem = carne / Mulher = carne. Esse gesto de equivalência denota a busca por um espaço real, uma já clássica vontade de superar o problema da representação, de renunciar ao enfoque antropomórfico da pintura e da escultura?. Esse texto, editado pela Casa Triângulo, foi impresso no pôster da exposição “Laura Lima’s Project Room”, que teve a curadoria de Octavio Zaya, e integrou a Feria de Arte ARCO, em Madri.

2 Muitos trabalhos de Laura Lima envolvem o corpo humano, mas também envolvem animais vivos como pombas, vacas e faisões. Estes últimos foram utilizados na obra que apresentou na exposição “Alegoria barroca na arte brasileira”, no CCBB, Rio de Janeiro, 2005. Muitos trabalhos não apresentam o corpo nu, ao contrário, ela usa o corpo como suporte para roupas especialmente criadas por ela, ou outros recursos como a maquiagem na exposição “To age”, realizada no Chapter Art Centre, em Cardiff (2004), em que todas as pessoas que trabalhavam na instituição foram envelhecidas como recursos de maquiagem. O que interessa à artista é trabalhar com o corpo como o limite irredutível do real. Especificamente sobre o trabalho To age ver texto de Fernando Cocchiarale no folder “Instâncias/To age de Laura Lima”, Chapter Art Centre, Cardiff, País de Gales, 2004.

(…)

6 Há uma declaração de Laura Lima, em uma entrevista feita por Felipe Scovino para o folder da exposição “Grande” (Casa França- Brasil, op. cit.), em que ela aborda a questão de quem pertence o olhar, que reforça a minha percepção de como a artista constitui a imagem na sua obra: estamos sempre presentes na paisagem, se olhamos contemplativamente o olhar pertence a ela. Neste aspecto, os nômades sugerem estar diante e estar por detrás, sermos nelas e sermos elas […] nômades sempre se deslocam em paisagens e são paisagem, nômades tempestade, nômades calmaria, nômades desertos, nômades sombras e floresta. Paisagens com temperamento.

7 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2ª ed. Trad. Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: 34, 1997. Termo cunhado pelos autores para definir o que é uma obra de arte e sua percepção. Ver especialmente capítulo intitulado “Afecto, percepto e conceito”.

(…)

9 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. Trad. António Ramos Rosa. São Paulo: Martins Fontes, s/d.

10 BERGSON, Henri. A energia espiritual. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Serviço
Abertura, 13 de novembro de 2012, terça, a partir das 19 h
De 14 de novembro a 20 de dezembro
Horário da transmissão de Cinema Shadow/Segundo no auditório da Fundação Eva Klabin (Avenida Epitácio Pessoa, 2480, Lagoa): das 14 às 17h
Horário da transmissão de Cinema Shadow/Segundo na Caixa Cultural (Avenida Almirante Barroso, no Centro) [ingresso R$2]: das 14h às 15h

Leia a íntegra do ensaio de Marcio Doctors no site da Fundação Eva Klabin.