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Vista da exposição Que Vão Que Vem, na Galeria Jaqueline Martins (Foto: Divulgação)
Postado em 06/08/2020 - 11:10
Da inflamabilidade do mundo
O que une e separa Pedro França e Victor Gerhard, artistas que resistem a estilos ou linhas discursivas sugeridas pela crítica
Patrícia Mourão

Por dois meses, o site da Galeria Jaqueline Martins transformou-se em um cubo branco mais branco que todos os cubos brancos. Uma caixa fluorescente, luminosa, de cristal líquido. Nada a ver com a indiferença preguiçosa com que os online viewing rooms adaptam espaços expositivos para a virtualidade, sem levar em conta as particularidades desta. 

Em Que vão Que Vem, exposição de Pedro França e Victor Gerhard em cartaz no site da galeria, continente é conteúdo. A exposição não é apenas sobre o que se vê: pinturas, vídeos, objetos. Mas também sobre como se vê, onde se vê.  

Renderizado em 3D por Pedro França, o espaço icônico da Galeria Jaqueline Martins permanece reconhecível, mas perde o brutalismo e a luz natural que lhe são características para se transformar em uma caixa de luz incandescente; uma loja conceito luminosa, brilhante e sem sombras. Mas, embora a arquitetura da galeria permaneça reconhecível, alguns desvios são propostos. Para começar, não entramos pela porta, mas por um buraco de Alice, o qual atravessamos como se fossemos um fantasma seguindo a subjetiva de uma câmera. O recado é dado logo de início: trata-se de um jogo de cena que converte visitante em gamer numa realidade virtual. 

Mas este jogo não segue por muito tempo. Depois do impacto inicial, reencontramos, em uma organização razoavelmente convencional, a barra de rolagem e as janelas que em quase todos os sites dão acesso a conteúdos. Mas não importa, impactados por aquela entrada fantasiosa, já estamos como que em suspensão, num estado de estranhamento e expectativa. Assim, ainda que diante de uma estrutura de navegação familiar, não nos sentimos totalmente seguros sobre onde pisamos nem sobre como seguir. Alguns elementos contribuem para isso: a luz da sala renderizada confunde-se com o branco leitoso e brilhante da tela. Mas também o som. Em um loop intermitente, alguns vídeos são programados para iniciar automaticamente, de modo que, mesmo quando não estamos vendo um filme, um leve ruído de chamas ou uma batida metálica repetitiva preenchem a paisagem sonora do espaço, criando uma espécie de vertigem: não conseguimos identificar de onde vem o som, mas sentimos como se estivéssemos fisicamente próximos do fogo.  

Fogo e excesso
Que Vão Que Vem é uma exposição inflamável. O fogo (ou sua variante, a luz) e a insuportável inflamabilidade (ou eletricidade) do mundo aproximam esses dois artistas, separados entre si por algumas gerações (e uma coincidência: Gerhard, nascido em 1936, para de produzir no ano em que França nasce, 1984). 

Não é por acaso que ambos carreguem o Rio de Janeiro dentro de si: não o Rio da praia ou visto da janela de um apartamento na zona sul – imagem recorrente na vídeo-arte carioca –, tampouco o Rio do encontro descolonizador do artista branco com seu Outro de classe e raça. Mas o Rio de quem, semiacordado, ferido ou ébrio, não importa, sentiu o gosto salgado da pedra portuguesa. O Rio das notícias populares; do machismo frequentando o travestismo; do louco de rua; da puta banguela; do carro blindado do outro lado da rua; do 38 e suas oitenta balas sobre o balcão de uma padaria, ao lado do café ralo, a espera do dízimo mensal. O Rio da necrofilia, “dos fantasmas esfomeados do planeta”, como gritava o fantasma-visionário enlouquecido no filme de Rogério Sganzerla, Copacabana Mon Amour. 

São artistas de difícil classificação, resistem à inscrição em tendências formais, estilísticas ou nas linhas discursivas sugeridas pela crítica de seu tempo. Não têm pares muito claros, nem grupos de pertencimento – ou talvez tenham muitos. Artistas de panteões particulares e sincréticos, não cabem em uma linhagem histórica pura. São filhos de uma orgia entre o Exu corcovado, Goya, Goeldi, Cy Twombly, Basquiat, Rauschenberg, Pop, Oldenburg, Nelson Rodrigues, chanchada, Grande Otelo, Zé do Caixão, Rogério Sganzerla, Torquato Neto e Carlos Zéfiro. 

São artistas acumuladores de motivação libidinal. Trazer para a intimidade vestígios e imagens do mundo que os afetam – é este seu método. Menos arquivistas e historiadores do que ladrões e sequestradores compulsivos, França e Gerahrd precisam registrar e levar para o convívio (não para um arquivo) aquilo que, no mundo, lhes punge, fere, queima.

Em Gerhard, jornais, imagens publicitárias e eróticas recombinam-se com o imaginário de folhetins populares e jornais sensacionalistas. Com um humor cáustico, suas colagens rasgam o decoro e a hipocrisia burguesa-cristã de uma sociedade onde a beatice é freguesa assídua da libertinagem e o “catecismo” um gênero literário erótico. 

DC 26, da série Drama Carioca (1965), de Victor Gerhard (Foto: Divulgação)

França é um antropófago filho da antropofagia. Na sua imensa boca cabe praticamente tudo: o que ama apaixonadamente, o que lhe revira o estômago, o que lhe dá indigestão. Mas não se sabe nunca como funciona seu sistema digestivo. Em seus trabalhos, os sinais roubados do mundo são todos nivelados, sem hierarquia ou valoração: imagens da história da arte, noticiário político, cinemão, cinema de autor, vídeos caseiros garimpados na internet, filtros de tela, powerpoints familiares e templates de diagramação. 

Há diferenças evidentes entre Gerhard e França, é claro. O mundo do primeiro é o da página impressa, o do outro, o das telas luminosas. Foi assim que aprenderam a ver o mundo; é assim que o reorganizam em sua obra pictórica ou em vídeo. Gerhard lida com os limites físicos da página; França tem a experiência da barra de rolagem, das telas múltiplas, das fusões, sobreposições. 

A solidão de Gerhard

DC, da série Drama Carioca (1965), de Victor Gerhard. (Foto: Divulgação)


Distante do neoconcretismo, da arte conceitual, mas tampouco suficientemente político ou socialmente engajado para o gosto da época, Gerhard levantou menos curiosidade crítica em seu tempo do que sua produção solicita. Nos poucos textos que o mencionam, criaram-lhe a alcunha de “pioneiro da neon art”.  É um epíteto insuficiente, quando não limitador; sugere uma tendência à exploração e investigação plástico-formal de uma mídia, e convoca um imaginário industrial que, no seu trabalho, só faz sentido se colado (à mão) a uma artesania impura, de escala humana e manual – de quem faz o trabalho de perto, tendo-o sempre ao alcance da mão e do olho. 

De sua incursão no cinema, destaca-se uma solidão assombrosa. Tendo o super 8, uma bitola de uso caseiro e amadora, como seu formato de eleição, ele rapidamente esbarrou nas limitações institucionais dessa escolha: o super 8 encontrava um circuito limitado de exibição, muito dependente da boa vontade e capacidade de organização dos próprios realizadores em cineclubes, clubes amadores de fotografia e festivais experimentais.

Mas mesmo nesse circuito sua trajetória é solitária e parcialmente deslocada. Não encontramos em seus filmes o espírito da contracultura, o inconformismo desbundado, o auto deboche histérico e agressivo característicos de boa parte da produção do período. Com um auto teor performático, o superoitismo dos anos 1970 e 80 transborda energia juvenil, sentido de urgência e tem propensão gregária – são filmes feitos entre amigos, de modo improvisado e com ligeireza. 

DC, da série Drama Carioca (1965), de Victor Gerhard. (Foto: Divulgação)

Os filmes de Gerhard, no entanto, são solitários; filmes de pintor, de poeta, de alguém que, sentado à mesa de trabalho, solitariamente e no seu tempo, contempla, maquina, manipula e dá forma a mundos. No lugar da experimentação com o corpo, o experimentalismo das formas, matérias e composições; no lugar do senso de urgência, uma arquitetura artesanal rigorosa, em filmes construídos plano a plano, quando não fotograma a fotograma – a banda sonora é uma outra camada laboriosa da estrutura dessa composição.

Mais do que da tradição anarco-tropicalista brasileira, seus filmes estão próximos do cinema experimental norte-americano do pós-guerra e sua retomada da vanguarda fílmica europeia. Em suas animações abstratas ou com colagem, reconhecemos as primeiras experiências de Hans Richter, mas também Robert Breer e Stan Vanderbeek. Des/caminhos e sobretudo Alfa Tetra… recuperam parte da tendência lírica-visionária e do filme de transe com inclinação surrealista do primeiro Stan Brakhage e de artistas como Maya Deren, Gregory Markopolous e Keneth Anger. 

De uma melancolia patente, esses dois filmes são mergulhos em estados interiores assombrados por memórias (talvez traumáticas), fantasmas e fantasias. Juntos, formam um díptico no qual se encena (ou sublima) a divisão de um sujeito preso entre a moral hipócrita da sociedade patriarcal burguesa-cristã (Des/caminhos) e o universo privado de vivência de uma sexualidade não normativa (Alfa… tetra…). Este último, uma incursão onírica aos desejos e torturas da carne, só não é um filme absolutamente sem par na cinematografia experimental brasileira porque encontra, lá na origem dessa frágil tradição, o substrato queer de Mário Peixoto em O Limite

O medium total de França
Igualmente sem pares no panorama contemporâneo brasileiro são os filmes de França. Um pouco ensaio, um pouco autobiografia, um pouco post-internet, um pouco DIY, um pouco found footage, um pouco performance, um pouco videoclipe, eles são sempre “um pouco mais” que cada um desses gêneros. Coloridos demais, cafonas demais, violentos demais, afetivos demais, desesperados demais, amorosos demais, eles têm algo de excessivo e inclassificável; um excedente que escapa e não consegue ser reabsorvido em nenhum sistema ou conjunto de iguais. 

Arrisco dizer que essa dimensão de excesso se dá porque o vídeo tornou-se, para França, uma espécie de medium total no qual caberiam todos as outros mediuns – mesmo o mundo. Um medium cuja especificidade seria sua plasticidade, sua capacidade para dizer “sim” a tudo. 

Cronoloop, Pool on orcs (2020), de Pedro França (Foto: Divulgação)

“O vídeo é uma ferramenta apaixonante”, diz o artista, dissolvendo-se em uma máscara de chroma key, em seu vídeo-conferência-performance, Artist Talk.  E continua: “Ele deglute tudo, nivela tudo. Acolhe tudo. Desenhos, grafismos, imagens, sons, efeitos, textos. Coisas roubadas. Coisas encontradas. Coisas traficadas.” Poderia ainda ter incluído nessa lista: teatro, performance, conferência, vida. Delírio. Energia. 

Desde o início, a obra de França é atravessada por um furor, compensado apenas por um impulso cênico e construtivo, com o artista buscando dispositivos para conter e canalizar (nunca domesticar) a energia. Em sua primeira exposição em São Paulo, em 2012, ele apresentou uma torre de energia em escala 1:1 construída artesanalmente e de modo precário. Nos anos seguintes, um outdoor igualmente em escala 1:1, um cinema de papelão e backlights gigantes – todos de construção igualmente precária e recorrendo a gambiarras. Aqueles trabalhos lidavam com a energia (consumida ou desperdiçada) em todas as suas dimensões, na sua confecção, mas também na sua função. As estruturas eleitas eram, na sua origem, contentores ou transmissores de energia elétrica e luminosa. 

Not Ready Not Made (2016), de Pedro França (Foto: Divulgação)

Mas aqueles primeiros trabalhos eram sombrios e sem corpo. Nas suas cores e matérias, eles sugam e aprisionam a luz. Daquela fase, até a luz explodir e rebater em Que Vão Que Vem, há o encontro com a Cia. Teatral Ueinzz, grupo de teatro integrado e auto-dirigido por pacientes da saúde mental, do qual França faz parte desde 2012. Com o Ueinzz, chega o corpo, a palavra, a comunhão, e a fé quase cega no excesso que não pode ser domado, compreendido, traduzido. A energia potencial e armazenada nos trabalhos anteriores entra em combustão nos encontros e trocas com o grupo. O teatro engole o mundo, engole França e vira o mundo de cabeça para baixo. 

No Ueinzz, França vira diretor de arte, ator, figurinista, e um documentarista apaixonado. Por alguns anos, os seus trabalhos nascem dos encontros com o grupo – os cenários, figurinos, elementos de cena eram contrabandeados para o espaço expositivo, aonde continuavam a reverberar a energia e a vida das peças.

É curioso pensar que algo tão intimamente dependente da fisicalidade e presença do corpo em cena, tanto quanto do encontro direto com a plateia, possa ter se desdobrado na virtualidade de uma prática em vídeo calcada na manipulação digital e, mais recentemente, no 3D e na construção cênica de uma exposição (a expografia é de França, o qual também assume o papel de curador da obra de Gerhard).

Mas é possível que Que Vão Que Vem realize a utopia buscada por França e vídeo e no teatro de um medium total, inclusivo, onde tudo pode existir, inclusive, e sobretudo, o que não existe mais, o que já perdeu a vida no corpo. Vida que continua a reverberar, para além das limitações da matéria. 

Anjo (2020), de Pedro França (Foto: Divulgação)

A exposição termina cheia de fantasmas, na penumbra, com o vídeo Faz Tempo Quente, Não Vejo. Imagens das câmeras de segurança da Galeria Jaqueline Martins captam os movimentos de um simplório fantasma – um lençol branco – vagando pela galeria. Na banda sonora, ouve-se a voz de Gerhard contando a França sobre sua série Dramas Cariocas; vozes dos atores do Ueinzz em tom messiânico a falar sobre os limites desse mundo, e Caetano Veloso, num único verso de Cajuína: “e éramos olharmo-nos intacta retina”– o qual contrasta com o “não vejo” do título do filme. 

É conhecida a história por trás de Cajuína: a música nasce do encontro de Caetano com o pai de Torquato Neto, poucos anos depois do suicídio do poeta. Apesar da dor e do luto, no olhar do pai de Torquato (intacta retina), Caetano reencontra a matéria (fina) de que era a feita a vida do amigo. 

Para além de Torquato nos olhos do pai, Faz Tempo Quente também é cheia de reaparições e “matérias finas”: França, vestido de fantasma; Alexandre, ator do Ueinzz falecido em 2016, avisando-nos que não temos de viver “aqui”; Gerhard, saindo de um silêncio insondável de quase vinte anos e trazendo de volta os dramas populares (que provavelmente também foram os de Torquato). 

Faz Tempo Quente Não Vejo, de Pedro Fraça (Foto: Divulgação)

O medium total de França é utópico e mediúnico, e utópico porque mediúnico. Não é apenas o mundo e vida que cabem ali ao lado e indistintos da arte, mas a vida dos que não têm mais corpo; vidas perdidas; vidas suicidadas pela sociedade; vidas que foram, que vêm, que vão. 

É tão utópico quanto inflamável esse projeto. A retina queima. 

Logo, de Pedro França (Foto: Divulgação)

Patrícia Mourão de Andrade é pesquisadora e pós doutoranda em Artes Visuais na USP. Atua como crítica de arte e curadora de cinema.