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BarcoR, pintura dos barcos (2013), de Maurício Adinolfi (FOTO: ACERVO GAM)
Postado em 01/12/2021 - 11:00
Das margens, dos tempos e da água como centro
Navegamos em processos de artistas que pensaram o barco, do mar à mata adentro

Quão doce pode ser o desejo de atravessar uma porção de água? Uma folha de papel retangular, uma dobra no eixo horizontal, novas dobras formando um triângulo e, fechadas as bordas, é hora de virar. É um avesso, o barco da infância.

Um artista prepara as malas para embarcar em uma residência artística, é Alexandre Silveira. Confere no mapa, o local é cercado de água. A maré oscila em até 8 metros. Em São Luís do Maranhão, a variação é, simplesmente, a maior do país. Quem manda é ela, a maré, e quem não se prepara, encalha. A comunidade desenvolve seus modos de compreender e navegar o ambiente. A transmissão desses saberes acontece no Estaleiro Escola, lugar onde a comunidade barqueira de ontem e de hoje constrói barcos e forma os barqueiros que vão navegar a Baía de São Marcos amanhã.

É o CHÃO SLZ a residência para a qual o artista está indo. Samantha Moreira, fundadora do espaço, descreve a importância do encontro entre os artistas residentes e o Estaleiro Escola: “É o encontro dos artistas com a água. É um momento de submersão. A água abre novos canais”, diz a curadora à seLecT. “O encontro com o Estaleiro Escola foi importante para muitos artistas que passaram por aqui”, reitera Dinho Araújo, curador e gestor do CHÃO SLZ, que começa a nos contar sobre o processo de Alexandre Silveira. Para chegar a essa antiga nave para a construção de barcos, que fica na outra margem do Rio Bacanga, é preciso encarar a travessia, compreender a maré. Em muitos momentos do dia, a travessia poderia ser feita a pé, mas é perigoso, sabe-se lá em quanto tempo a água pode voltar a subir.

Antes de chegar na residência, Silveira, arquiteto de formação, pretendia conhecer mais sobre o contexto urbano da cidade, mas, quando viu o mapa, foi capturado logo de cara. A cidade era cercada por água, era quase uma ilha, uma imensidão de mar. O centro da vida era a água e, consequentemente, as embarcações. “A biana me chamou a atenção. Ela é a mais simples das embarcações, uma junção entre os barcos que vieram com os colonizadores da região e as embarcações nativas. Tem fundo raso, perfeito para acompanhar as oscilações da maré, fundo de adentrar com tranquilidade os igarapés”, diz o artista à seLecT. Rodando os sebos da cidade, ele encontrou o livro Embarcações do Maranhão, de Luiz Phelipe Andrés. Ficou surpreso quando encontrou no Estaleiro Escola o próprio autor do livro, que é quem coordena a programação do lugar. 
Poderíamos imaginar que, ao caminhar pelo Estaleiro, conhecendo e observando o trabalho que estava sendo desenvolvido ali pelos barqueiros, uma música tomasse todo o ambiente. Um reggae, tocado em onda pirateada de estações de rádio jamaicanas. Uma tradição do lugar. É possível imaginar que foi nessa atmosfera que Silveira encontrou o barqueiro que carrega o nome de Juca Marley, o Juca da grande Radiola FM Metanol: a Fabulosa do Brasil. Nas radiolas que são paredões de aparelhagem de som, Juca, barqueiro e tocador, treme mar e terra.

A ideia inicial do artista residente era velejar com uma biana pela Baía de São Marcos. Levar na vela espicha do barco uma mensagem que pudesse ser carregada pelo vento, uma esperança nova diante do desânimo que sentia com a recente eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. “Juca topou fazer comigo o trabalho e fomos produzindo esse acontecimento durante quatro dias, realizando a ação no domingo pela manhã, logo na subida da maré”, conta. Enquanto Juca preparava o barco, que ele mesmo havia feito, Silveira pintava a vela branca com os dizeres “Tempo Haverá”. As trocas entre os dois ganharam profundidade. O barqueiro contou de sua mãe nascida em ventre livre. Falou de Alcântara, onde teriam desembarcado seus ancestrais. Durante a construção da obra, Silveira conectava-se também com sua própria história. Sonhava em turbilhões. Dormia entre pedaços de mar, visões recortadas, pedaços de barco, ondas tocando o casco. Lembrou de quando tomou chá de ayahuasca e das visões de naufrágio que teve, reminiscências dos povos do norte de Portugal, suas origens familiares. O quanto ainda haveria nele da experiência de seus ancestrais? O acontecimento foi a travessia, Juca e ele navegando e registrando a ação. Quando chegou a hora de montar a exposição, a obra trouxe a assinatura dos dois: Alexandre Silveira e Juca Marley. “Por fim, desloquei a vela para o espaço expositivo do CHÃO SLZ e escrevi um texto com areia. Trouxe a projeção do barco no mar e outras imagens do processo”, conta o residente.

BarcoR, de Maurício Adinolfi (FOTO: ACERVO GAM)

Para pintar um barco
É um tema clássico. Barcos no horizonte, no azul, atracados no cais. Um barco protagonizando a luta com uma grande tempestade, uma pintura de Turner. O imaginário ocidental que nos faz acreditar que, no universo pictórico, os barcos vivem como guerreiros ou partes da bucólica paisagem. Espectadores, nos colocamos à margem. Pés enfiados na areia.

Há um artista observando, um pintor que atravessa a superfície da paisagem. Chega a ver a pintura dos cascos, dos barcos, a pintura além da imagem. Maurício Adinolfi é um artista que tem como pesquisa a pintura, renovando constantemente sua relação com ela. E se guiando também pela sua relação com o mar. O projeto de intervenção e ação com a comunidade barqueira de Marabá, no Pará, atravessou de muitas formas o artista. BarcoЯ foi realizado em 2013 como trabalho colaborativo com a Associação de Barqueiros de Marabá, juntamente com o construtor naval Antonio Sérgio e os artistas Antônio Botelho e Marcone Moreira. O objetivo era pintar 30 barcos que circulam pelo Rio Tocantins. Os desenhos e as cores eram definidos pelo artista com os envolvidos no projeto, bem como a execução da pintura. Os desenhos partiam do que seria uma estética tocantineira, que reúne padrões representativos para os povos ribeirinhos e indígenas que vivem junto ao rio. Um método foi desenvolvido para o processo. Em cada equipe de pintura formada havia sempre um pintor responsável, o Cabeça, organizando a equipe com base nos desenhos iniciais e esboços que foram realizados pelo artista e adaptados, considerando as características específicas do barco e das cores escolhidas por seu dono.

Em seu relato sobre a experiência, Adinolfi conta que, para pintar um barco, é preciso conhecer seus componentes físicos e as regras marítimas. Um exemplo é a importância da pintura da linha d’água, que marca o peso de cada embarcação. O conhecimento da estrutura do barco corresponde às etapas do processo de pintura. As etapas acontecem em quatro partes: o casco, a caixa, o interior e a cobertura. O projeto finalizou em uma performance fluvial com os barqueiros realizando um grande desenho no rio, com todos os barcos pintados, celebrando o trabalhador ribeirinho. Era dia 1º de maio. Fruto de um processo colaborativo e com sentido para todos os envolvidos, o legado ficou em Marabá. É uma experiência da comunidade que continua a reverberar.

“Nas minhas pesquisas sobre pintura de embarcações, tanto aqui no Brasil quanto em Portugal, me aprofundei nas iconografias e nos símbolos dos construtores, na geometrização das pinturas das partes do barco, sua estrutura. Formas como círculo, triângulo, cruz, diagonais, e também signos e siglas de comunidades pesqueiras fazem parte da linguagem”, conta. O processo da pintura naval continua reverberando no artista, que leva essa experiência para as telas. “O mar, na poética de Adinolfi, não se apresenta como tema ou assunto da pintura, mas se configura como um exercício de ir e voltar, de confronto incerto com questões específicas do artístico”, analisa a curadora Marta Mestre. O artista tem duas novas intervenções programadas, que acompanham o leitmotiv. Uma será montada no Sesc Santos, na coletiva Portos, com curadoria de Ilana Goldstein. A outra será a obra site-specific Caronte-Sete Voltas, no Beco do Pinto, fruto do Prêmio por Histórico de Realizações, do Proac Artes Visuais.

O som do rio diz o que eu penso, de Keyla Sobral (Foto: Cortesia da artista)

Barcos elétricos
Atravessamos matas e correntes, lutamos contra o medo do desconhecido para nos deixarmos atravessar pelo ambiente, buscamos novas águas para nos banhar. No movimento de deslocar o eixo para onde a água é centro, vamos deslizando em um barco que margeia o norte para, enfim, adentrar os igarapés.

Keyla Sobral nasceu e cresceu em Belém do Pará, região urbana, mas cercada por rios, com muitas ilhas ao redor. “Meu encontro (com a água) sempre se dava nas férias de julho e em alguns fins de semana. Um dos propósitos deste projeto era ficar mais próxima, reconhecer lugares a que ia quando criança”, conta a artista sobre o projeto O Som do Rio Diz o Que Eu Penso, premiado pela Fundação Cultural do Pará, em 2018. A ideia de Sobral era atravessar as águas nas quais se banhava na infância levantando questões sobre o que é visível e o que é invisível no ambiente. “Quem se banha nessas águas? A quem interessa essas águas?” foram algumas das perguntas que dispararam o processo da artista. Ao flutuar com embarcações nos rios acastanhados que margeiam Belém, os barcos seguiam contando estórias, curtas narrativas do invisível que se tornavam visíveis através de letreiros luminosos acoplados nas estruturas dos barcos. Uma momentânea intervenção na paisagem era provocada, sem deixar rastros, somente o registro de uma ação silenciosa. Como se o barco caminhasse sozinho, uma deriva e um passeio, um barco a buscar um bom ponto de mergulho. A visão de que há de existir um lugar onde podemos submergir no passado, na lembrança, ou em outro futuro possível, um rio eletrônico. No movimento de revelar e descobrir seus lugares de afeto, é no Norte que tudo se revela para Sobral. “O Norte é meu ponto de partida, é onde tudo começa, é o meu referencial, é o meu norte no sentido geográfico-afetuoso. Ele é uma das partes de tudo que sou.”

A artista trabalha, desde 2009, no cruzamento entre a poesia e as artes visuais. Projetos como este, em que as palavras ganham dimensão tão grande quanto um barco navegando por uma imensa floresta, acessando a memória que é de Keyla, que é do Norte, e de todos os seres que já caminharam nessas margens. E o que se revelou ao longo do processo? “Ao embarcar neste projeto, descobri que sempre é possível se debruçar um pouco mais, conhecer um pouco mais”, responde à seLecT. E completa: “Todo dia é tempo de se renovar, como um rio, como um River Phoenix”.