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Fotografia da série West of Life de Zied Ben Romdhane (Foto: Divulgação)
Postado em 17/04/2019 - 2:53
De Gafsa a Itabira: dois olhares distintos sobre a mineração predatória
A mineração na obra do fotógrafo tunisiano Zied Ben Romdhane e da pintora brasileira Djanira
Theo Monteiro

Desde o trágico (porém anunciado) desastre da barragem de Brumadinho no início deste ano, a questão da mineração voltou a estar no debate público. Se é um importante gerador de riqueza nacional, a mesma também vem causando um gigantesco ônus ao meio ambiente, aos moradores de seu entorno (e mesmo locais mais distantes) e a saúde pública.

Coincidentemente, duas recentes exposições em São Paulo apresentaram trabalhos de artistas que, apesar de muito distantes geográfica e culturalmente, se debruçam sobre a questão, oferecendo um olhar não apenas sócio-econômico, mas também poético. O primeiro é o fotógrafo tunisiano Zied Ben Romdhane, que integra a exposição “Taswir – A Fotografia Árabe Contemporânea” em cartaz no Instituto Tomie Ohtake. A segunda, uma velha conhecida daqueles mais familiarizados com a arte moderna brasileira, embora nem sempre devidamente lembrada: Djanira da Motta e Silva (1914-1979), que ganhou a merecida individual “Djanira: a Memória de seu Povo”, em cartaz no MASP. Importante pontuar que a semelhança entre os dois é exclusivamente temática, mas os olhares que nos oferecem podem enriquecer ainda mais o debate sobre o tema.

A Tunísia, tal como o Brasil, tem na mineração uma importante fonte de riqueza. O fosfato, principal produto oriundo dessa empreitada, corresponde a 4% do PIB do país norte-africano, percentual nada desprezível. O País acabou sendo também palco e estopim da chamada “Primavera Árabe” nos últimos anos. No entanto, ao contrário de muitos de seus vizinhos, nos quais a polêmica série de manifestações acabou descambando em guerras ou ditaduras, ali o resultado foi o início de um processo de construção democrática.   

Romdhane viajou até a região de Gafsa, na qual se situam as minas de fosfato, e fotografou a região e seus habitantes, numa série intitulada “West of Life”. Se ali é produzida uma importante parcela da riqueza do país, esta acaba indo parar bem longe dali, mais especificamente nas cidades costeiras. A região das minas e suas aldeias, conforme denunciam as paisagens fotografadas pelo artista, são uma terra estéril, poluída, árida e dura. A composição, no caso das grandes paisagens, é dividida ao meio pela linha do horizonte, o que poderia sugerir o palco ou cena de algum acontecimento grandioso, mas tudo o que se vê é uma vastidão estéril. Como algo que promete ser revelado e que não aparece.

Neste quase inabitável cenário, povoado por trabalhadores das minas, foi lento e difícil o processo de formação de um sindicato e de greves. A atividade mineradora do local, articulada e institucionalizada no período em que a Tunísia esteve controlada pelo poder colonial da França, foi construída de modo que não houvesse qualquer forma de organização por parte dos trabalhadores. Para conseguir tal façanha, as autoridades francesas recrutaram trabalhadores de outras regiões do norte africano, acentuando divisões étnicas entre os trabalhadores e impedindo qualquer forma de união entre os mesmos. Tais separações, conforme afirma o fotógrafo, ainda persistem, embora tenham havido desde a Primavera Árabe várias greves no local, que prejudicaram a mineradora.

São esses sofridos personagens, no entanto, que dão vida a essa paisagem estéril e devastada pela mineração. O fotógrafo parece ter desenvolvido alguma relação de afeto com seus retratados, que por vezes ensaiam poses impossíveis ou mesmo cômicas, como um senhor que encena um momento da batalha da Guerra de Independência da Argélia.

Romdhane, que iniciou sua carreira como empresário, vem se interessando em pensar sobre o peculiar momento vivido pelo seu país. Em entrevista ao The New York Times, afirma que foi em Gafsa que vislumbrou pela primeira vez a possibilidade de existir uma democracia no mundo árabe, dada a pluralidade dos habitantes locais que, mesmo após décadas de convivência conflituosa, começavam a se encaminhar para um entendimento visando suas reivindicações. Se a paisagem clicada pelo artista é estéril, a vida trazida pelos que ali habitam, bem como os grandiosos e vazios cenários, podem indicar um novo horizonte a ser iniciado ali. A devastação causada pela predatória atividade pode significar uma possibilidade de recomeço.

Se Romdhane olha para um país que começa a dar seus primeiros passos na direção de um regime democrático, a brasileira Djanira parece vislumbrar um país que caminha a passos largos para uma ditadura. A artista, que ao longo de sua obra olhou para a cultura popular brasileira buscando uma forma de visualidade e uma autenticidade, viveu em alguns anos da Ditadura Militar de forma mais reclusa, se fechando em seu sítio em Paraty.

O trabalhador brasileiro sempre foi objeto de seu interesse, não só em função de uma agenda modernista que buscava conferir dignidade a essa classe, tida como melhor representante deste povo, como também em função de sua aproximação com o Partido Comunista Brasileiro e, consequentemente, com o Realismo Socialista de origem soviética. Se o trabalhador artesanal foi muito bem representado pelos seus pincéis, na busca daquilo que seria um autêntico representante nacional, o trabalhador industrial não escapou de sua sensibilidade e olhar.

O Brasil das décadas de 1960 e 1970 era um país cada vez mais industrializado, e de uma maneira que quase não encontra precedente na história da humanidade. Se no alvorecer da década de 1960 80% da população vivia no campo, no início dos anos 1980 a proporção se inverte, com este mesmo número vivendo agora nas cidades.

Em meados da década de 1970, Djanira conheceu e pintou o cotidiano da mineradora Vale do Rio Doce, instalada na cidade mineira de Itabira, e suas dependências. Em uma paisagem de horizonte estreitíssimo, “Mina de Ferro”, de 1976, a artista faz o corte abrupto entre uma paisagem de morros verdejantes e uma pequena cidade em seu sopé para um tom marrom escuro, retalhado com cortes retilíneos em marrom mais claro, denunciando a devastação sofrida na área. A paisagem local, antes verdejante, agora está arrasada, com seus cortes em marrom claro semelhantes a veias. Djanira mostra essa paisagem como se a mesma, com suas veias abertas, sangrasse.

Em outra paisagem, do mesmo ano, mas com a mesma temática, já não se vê quaisquer menção a natureza ou presença humana.  A tela, quase abstrata, mostra aquilo que outrora teria sido uma montanha, e agora é apenas rastro de um processo de devastação. Nas telas onde representa as grandes máquinas que extraem o ferro das paisagens, Djanira lança mão de uma linguagem geométrica, trazendo uma composição geometrizada e quase planar, composta apenas de cores e formas. Faz sentido, dado que os artistas concretos, movimento do qual a artista jamais pertenceu, acreditavam que seria a linguagem visual abstrata e geométrica muito mais adequada para o novo Brasil industrializado que então despontava.

Embora figurativas, essas pinturas do maquinário transformando a paisagem são geometrizadas, como se fizessem referência a essa nova linguagem do Brasil industrializado, mas ao invés de uma utopia modernista, apresentam uma faceta predatória e devastadora. Enquanto Romdhane enxerga na paisagem devastada pela mineração uma possibilidade de recomeço, Djanira nos alerta para a devastação que vem sendo empreendida por um determinado projeto de país, justamente em um momento no qual qualquer possibilidade de democracia vinha sendo sufocada.