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Postado em 23/10/2014 - 6:01
De tempo em tempo
Luciana Pareja Norbiato

Quinquenal e até decenal: mostras sazonais proliferam ao redor do mundo, na esperança de garantir visibilidade a cenas artísticas locais

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Legenda: O artista islandês Ragnar Kjartansson e seu barco-obra S.S. Hangover na última edição da Bienal de Veneza (foto: Cortesia Biennale di Venezia)

No início, foi Veneza, a Bienal de Veneza, em 1895. Dividida em representações por países desde a sua primeira edição, nos moldes das feiras universais de novidades científicas, a megamostra internacional surgiu para coroar um novo estado de coisas na arte. Se a criação da mais tradicional das bienais teve por objetivo estimular o turismo em Veneza, ela confirmava o papel que a arte passara a ocupar desde o século 18, a partir da Revolução Industrial.

O ideal de progresso fincava garras na busca pelo novo também em termos estéticos. Nada melhor que uma exposição colossal e periódica para trazer aos olhos do mundo o que de mais recente e iconoclasta se produzia. De lá para cá, tantas e tão rápidas foram as mudanças que um bocado considerável da história parece ter sido espremido para caber em menos de 200 anos. Com a arte não foi diferente, inclusive no que se refere às exposições sazonais.

Se tudo começou em Veneza, com o passar do tempo as megaexposições ganharam outras periodicidades – trienal, quadrienal, quinquenal e até decenal. Abandonaram o modelo de festa das nações e passaram a prestar atenção às questões correntes da arte e da sociedade, e a ocupar lugar de honra em uma cena artística cada vez mais internacional e multifacetada. Segundo Moacir dos Anjos, curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) ao lado de Agnaldo Farias, a função de um projeto expositivo sazonal seria “criar um repertório para a comunidade a que aquele evento se dirige”, o que só acontece “se houver variedade de obras e artistas e, ao mesmo tempo, articulação das questões que cada edição da mostra sugere como relevantes”.

Essa função de atrelamento às questões locais, no entanto, é constantemente posta na berlinda por sua indexação direta ou indireta ao mercado. Mesmo assim, todo cantinho do globo quer ter uma expo sazonal para chamar de sua e assim se beneficiar do sistema de valoração da produção artística. Para Julian Stallabrass, autor do livro Art Incorporated, “os governos sabem bem que as cidades competem cada vez mais uma contra a outra numa escala global por investimento (…) e pelo turismo”. “As cidades mais bem-sucedidas devem garantir, juntamente com o dinamismo econômico, uma ampla variedade de eventos culturais e esportivos fixos. A bienal é meramente uma das opções no leque de atrações de qualquer cidade globalizada – ou, como de costume, de qualquer cidade que aspire a esse status.”

Com essa nova ordem mundial, em que uma exposição periódica confere cosmopolitismo à sua cidade-sede, o número delas hoje ultrapassa a centena. Mas, tão rápido quanto surgem, muitas desaparecem sem deixar vestígios. É sintomático que as regiões menos desenvolvidas do globo lancem projetos que às vezes não chegam nem à segunda edição.

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Legenda: Sede da fundação Quadriennale di Roma, que segue ativa mesmo sem previsão de realizar a quadrienal por falta de recursos (foto: Cortesia Quadriennale di Roma)

Linha do tempo

Mas a descontinuidade é um sintoma também dos grandes centros. As duas exposições temporais que se seguiram imediatamente a Veneza, por exemplo, não tiveram a mesma constância ao longo do tempo. Em 1896, no ano seguinte da primogênita italiana, o Carnegie Museum of Art (Pittsburgh, EUA), criou sua Annual Exhibition. Só em 1950 a mostra tornou-se bienal, sob o nome de Pittsburgh International. Cinco anos mais tarde, passou a ser realizada em intervalos de três anos. Suas duas últimas edições aconteceram em 2008 e 2013, sem previsão de continuidade.

Já a Quadriennale de Roma estreou em 1927, na onda de um programa nacional de exibição de arte em larga escala, que unisse a produção regional à arte internacional legitimada em Veneza. As quatro primeiras edições seguiram a nomenclatura, mas, depois, com a necessidade de redefinição de seus parâmetros, começou a variar. Até que a edição prevista para 2012 foi cancelada sem retorno estimado. A instituição Quadriennale di Roma acusou falta de recursos vindos do Ministério da Cultura italiano, que disse que o financiamento estava em dia, mas não houve pedido de verba extra.

Criada em 1951, a Bienal de São Paulo é uma das mais antigas em atividade. Superados os percalços – na 10ª edição, pior período do regime militar, sofreu um boicote mundial que a esvaziou, e na 28ª, conhecida como a Bienal do Vazio, chegou ao auge de uma crise administrativa que quase culminou em sua anulação – conseguiu finalmente reorganizar sua Fundação. Hoje, revitalizada, evoluiu as premissas originais para um modelo aberto, que possibilitou a curadoria francamente política da 31ª edição em cartaz.

Se mostras sazonais de dois países do centro do mercado já sofrem para manter a constância, o que dizer dos periféricos? É difícil acompanhar o ritmo de estreias e desaparecimentos de projetos expositivos periódicos.A Bienal de Ushuaia (Argentina), conhecida como a Bienal do Fim do Mundo, teve três edições, de 2007 a 2011, e desde então não tem mais registros de existência – seu website está desativado.

O Benim, ex-colônia da França no noroeste da África, fez uma exposição comemorativa dos 50 anos de sua independência em 2010, com apoio do seu Ministério da Cultura. Dois anos depois, decidiu institucionalizá-la como a Biennale Benin. Outra organização criou uma exposição paralela intitulada Biennale Regard Benin, com menos verba que a oficial e proposta muito parecida. Anúncios veiculados no e-flux criaram a confusão de que ambas seriam uma só exposição. Por consequência ou não, a edição da Biennale Benin, prevista para este ano, não existiu nem deixa pistas.

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Legenda: Vista de instalação de Iole de Freitas no interior do Museum Fridericianum durante a Documenta 12 (2007); exposição quinquenal fundada em 1955 é tida como expoente entre suas irmãs sazonais (foto: Roman Mars / Cortesia Galeria Silvia Cintra)

Desafios da continuidade

Uma alternativa à descontinuidade pode ser a opção por eventos de maior distância entre si, como os quinquenais e os decenais, caso do Skulptur Projekte Muenster (Alemanha). Desde 1977, a mostra ocupa de dez em dez anos a cidade universitária da Westfália com esculturas e instalações de artistas internacionais.

Mas a maior vedete da sazonalidade é a quinquenal Documenta. Com perfil definido por curadorias que abordam os temas mais quentes do momento, “é comum afirmar-se que (…) é a exposição mais relevante no campo da arte contemporânea”, diz Moacir do Anjos. “Talvez porque supostamente implique um tempo maior de pesquisa e preparação. E de fato muitas das Documentas foram memoráveis, embora nem todas tenham sido assim. O mais importante, contudo, é definir que critérios são utilizados para aferir a relevância das exposições. A meu ver, sua relevância está no fato de conseguir articular um ponto de vista crítico que desafia consensos estabelecidos, mesmo se o tempo de preparação foi reduzido e mesmo se as condições de apresentação são precárias. Nesse sentido, algumas edições da Bienal de Havana certamente foram mais importantes, por exemplo, que suas correspondentes em Veneza”, diz ele.

Isso posto, não há fórmula que salvaguarde a longevidade de um projeto. “A periodicidade deve ser adequada às condições econômicas, culturais e políticas de realização das mostras, de modo que elas sejam frequentes o bastante para que não se tornem episódios isolados. Elas devem ser, ao contrário, percebidas pelo público como um conjunto articulado de proposições que se desdobram ao longo do tempo”, reflete Moacir dos Anjos. Talvez a melhor maneira de se estabelecer as bases para um projeto sazonal seja considerar, primeiro, sua relevância temática e artística, para só depois usá-lo como estratégia turística.

*Reportagem publicada originalmente na edição #20