icon-plus
Postado em 09/08/2013 - 9:46
Decanos no galpão
Luciana Pareja Norbiato

Artistas argentino e mexicano exibem trabalhos críticos de produção recente e estéticas opostas

Autoretrato. Jacoby-ros. 2013

Legenda: Autorretrato (2013), obra de Jacoby que faz crítica sutil à institucionalização do trabalho do artista

Ambos têm por volta de 70 anos, são latinoamericanos, usam a arte como forma de crítica política e social e atualmente dividem o galpão da Baró ao meio. Afora todas as similaridades, são as poéticas opostas que saltam aos olhos nas mostras Abertura, do argentino Roberto Jacoby, 69, e Apocalipstick, do mexicano Felipe Ehrenberg, 70. Na definição de Ehrenberg, “dois caras da mesma idade que viveram a América Latina ao mesmo tempo, mas em países diferentes”.

Famoso no país pela polêmica com a 29ª Bienal de São Paulo (2010), quando instalou um comitê pró-Dilma no meio do pavilhão do Ibirapuera e teve sua obra vetada pela organização da mostra, Jacoby tem uma longa trajetória de trabalhos de denúncia política e de colaborações com outros artistas, como as letras que escreveu para o grupo de rock new wave Virus nos anos 1980 _algumas delas podem ser ouvidas na pequena instalação sonora Tocame el Rock, em que essa frase está escrita em uma pedra que, “mesmo trazendo essa ideia de uma música bem contemporânea, o rock, é um elemento muito antigo”, como se dela saíssem as músicas do Virus que são ouvidas pelo fone.

É pelo minimalismo que Jacoby imprime um tom de deboche sutil sobre o circuito de arte, “principalmente contemporânea”, seus meios e suas demandas, no acabamento que ganha ares pop pela colaboração de Alejandro Ros. Não à toa a obra central do espaço, 1400 Taças, é uma grande mesa sobre as que as tais peças do título reluzem “à espera dos 1400 convidados que virão para o vernissage”, explicou, rindo, à redação de seLecT às vésperas da inauguração da exposição. 

Simultaneamente, um audio simula conversas e burburinhos típicos desses eventos, interrompidos por tiros de metralhadora mesclados a sons de copos quebrando-se. Tensão? Não, dúvida. No instante seguinte, todos aplaudem, “não fica claro se é uma performance ou um atentado”, segundo o autor. A obra tem a qualidade da surpresa que os sons sugerem à imaginação do espectador.

Essa mesma audioinstalação contradiz outra de suas obras, um Silêncio em letras pretas gigantes aplicado diretamente à parede da galeria. “É meio uma brincadeira para pedir concentração do público, pedir atenção para as obras”, diz Jacoby, embora concorde com a leitura de que a obra faz menção à imposição de um comportamento específico apropriado ao cubo branco.

Nem mesmo o tempo corre de forma linear nesse espaço expositivo: a série de seis relógios girando desgovernadamente ganha sentido com seu título, Dinheiro, que insinua a perda da organização temporal em meio às demandas do capital. 

O inusitado surge nas obras de parede que flertam com o formalismo geométrico e a arte cinética para captar e subverter aspectos do cotidiano engessados pelas convenções sociais, como o círculo imitando mármore pelo qual deslizam suavemente duas pequenas xícaras, alusão ao hábito portenho de resolver questões em encontros públicos em torno das mesas dos cafés. O nome da obra, Autorretrato, insinua uma ideia de artista que, à custa de poder produzir seu trabalho, precisa enfrentar a burocracia das intermináveis reuniões e negociações.

Ainda na estética de Autorretrato, a obra Adaptación consiste em “dois retângulos negros aparentemente perfeitos, que remontam à tradição construtivista”. Subitamente, o primeiro é arranhado internamente por dedos, com se alguém estivesse preso em seu interior, e do outro salta uma faca. “Com isso, rompe-se essa ideia de normalidade, há o efeito do estranhamento e do susto”, diz Jacoby, no recurso que remete ao cinema de David Lynch.

Todas as obras são inéditas, à exceção das máscaras redondas que remetem à arte primitiva africana da performance Dark Room, em que os atores executavam uma coreografia precisa mesmo com a impossibilidade de ver através das máscaras, sem buracos nos olhos, que o artista criou em 2005. Apenas as “cabeças” brancas e boquiabertas encaram o público do alto da parede, imitando a possível expressão do espectador.

Para finalizar Abertura, o vídeo Youtube Has Killed the Videoart é uma projeção engraçada: enquanto a frase figura na parede, surgem sombras sobre ela como se o próprio público estivesse inquieto e em constante movimento, entrando e saindo da pequena sala no topo da escada em que ela foi instalada, apontando para a impaciência típica de quem se acostumou a ver vídeos nesse site. “Essa é para o pessoal da Bienal”, brinca, em meio a risos, Jacoby.

Felipe Ehrenberg Apocalipstick De Uno Caña Para 13 Coelho

Legenda: Coelho, da série De Uno Caña para ’13’ (2013), de Felipe Ehrenberg

Apocalipstick

Como o próprio Felipe Ehrenberg gosta de definir, ele gosta “de sentir a arte na ponta dos dedos”, demonstrando seu envolvimento com os materiais e a manufatura de seu trabalho, ao contrário de seu colega argentino. Foi ele quem esculpiu as molduras de suas três grandes pinturas super coloridas em negativo, com detalhes de cenas de sexo explícito e agressão física _que estão no filme Crime Delicado, de Beto Brant_, e montou a traquitanta em madeira que emula um detector de metal de aeroporto, fazendo um ruído estrondoso quando “apita”.

Veio ao Brasil pela primeira vez há 14 anos, como adido cultural, e acabou fixando residência por aqui com sua mulher, Lourdes Hernandes-Fuentes, sem a qual “muitos desses trabalhos não teriam . Menos conhecido no Brasil que Jacoby, tem uma carreira de sucesso no México e no exterior, que entre outras iniciativas, participou do grupo Fluxus nos anos 1970, quando morou em Londres.

Apocalipstick, título de sua exposição,  remete aos crimes passionais em que a mulher descobre o adultério do marido pelo beijo de batom na gola da camisa, como nos melhores melodramas. “O batom é algo que gruda, que não sai, e quero que as minhas obras sejam assim, fiquem na memória do público”, diz. 

E como será a conservação da memória e da trajetória pessoal de cada um com o advento das câmeras digitais? Na série de entalhes em cimento acoplados a caixas quase todas feitas também pelo mexicano, ele ensaia uma resposta irônica e bem humorada: sorrisos fake, poses duras e cenas banais sacadas aos milhares.

Ícones pop como os animais articulados feitos em madeira que arranham as telas em que estão inseridos e os lutadores de telecatch portagonistas da série de quadros extraídos de um de seus livros de artista escancaram uma visão do lado sombrio do México: escada para o tráfico de drogas e armas cujo destino final é os EUA, miséria, pobreza e subordinação colonizada ao vizinho rico. 

“Muitas pessoas morrem na fronteira entre o México e os EUA, e essas imagens denunciam isso. O meu país paga um preço muito caro pela ilegalidade norteamericana e não temos perspectiva real de mudança, aceitamos isso em uma posição de subserviência”, pondera. 

Pinturas em grandes dimensões contrapõem animais morosos, como bois e capivaras, a figuras humanas representadas primitivamente, com genitais expostos e braços em riste, remetendo à libertação de um mundo regido pela lógica da moeda e à busca de um gozo pessoal contra a massificação. 

O conjunto dos trabalhos de Ehrenberg é visceral e caótico, um Apocalipse que crê na redenção humana por meio das ações individuais relacionando-se entre si, para criar uma coletividade não domesticada, viva. Embora visualmente seu universo divirja diametralmente do de seu vizinho de sala, Jacoby, ambos fazem a crítica do estabelecido instaurando tensões entre o real e aquilo que se insurje pelas falhas do sistema. Sempre com bom humor e contundência.

Roberto Jacoby – Abertura
Felipe Ehrenberg – Apocalipstick
Baró Galeria, rua Barra Funda, 216, São Paulo
Até 6/9