icon-plus
Postado em 19/02/2014 - 5:56
Decreto-confusão
Márion Strecker

Regulamentação do Estatuto de Museus divide opiniões, evidencia as carências do setor e os conflitos entre interesses públicos e privados

Debate_body

Legenda: Linha pontilhada demarca o lugar de uma obra de Waldemar Cordeiro, ausente na exposição Códigos Secretos, em São Paulo. O curador Augustín Pérez Rubio quis deixar claro o efeito da regulamentação do Estatuto de Museus (foto: Ricardo van Steen)

“Eu não empresto mais nada”, disse o marchand e colecionador carioca Afonso Costa ao término de uma reunião aberta de quase três horas sobre a regulamentação do Estatuto de Museus. A reunião foi numa tarde de dezembro com o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Angelo Oswaldo de Araújo Santos, a procuradora federal Eliana Sartori e quase 80 expoentes do sistema de arte brasileiro no Museu da República, no Rio de Janeiro. Na semana seguinte, uma exposição intitulada Códigos Secretos, na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, foi inaugurada por decisão do curador Augustín Pérez Rubio com uma ostensiva linha pontilhada na parede para demarcar o lugar de uma obra faltante. Sabe-se que um trabalho de Waldemar Cordeiro deixou de ser emprestado por um colecionador. Especula-se que a recusa teria sido para evitar que a obra entrasse no radar do Ibram.

A grita começou em 18 de outubro passado, com a publicação, no Diário Oficial da União, do Decreto nº 8.124/2013, que regulamenta o Estatuto de Museus, criado cinco anos antes juntamente com o próprio Ibram, uma nova autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC). Ato contínuo, o mercado de arte se retraiu. Embora o presidente do Ibram afirme que “não há intervencionismo no mercado de arte”, o fato é que a lei garante que o Estado pode declarar qualquer obra de interesse público. A desapropriação é um risco. “Eventualmente vamos fazer”, disse. O principal objetivo é proteger o patrimônio cultural, esteja integrado ou não aos museus.

O processo de declarar uma obra de interesse público inclui requerimento, análise técnica, aprovação do Conselho do Patrimônio Museológico e homologação pelo titular do Ministério da Cultura. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional de São Paulo, emitiu um parecer afirmando que o decreto é inconstitucional, pois pode violar a propriedade privada e a privacidade, além de ampliar os poderes da lei que regulamenta. Ainda assim, diversos compradores brasileiros que foram à última Miami Basel, feira que aconteceu em dezembro nos EUA , mandaram entregar suas compras no Brasil, como de hábito. O mercado balançou, mas não parou.

Há os que se referem ao Ibram como uma hierarquia criada acima dos museus, fruto do corporativismo dos profissionais do setor, e dizem que a nova legislação é instrumento autoritário capaz de transformar tudo em museu. No outro extremo há os que atacam as razões de mercado, acusam particulares de especular com arte, sonegar impostos e esconder obras contra o interesse público.

“É importante lembrar que o que estabelece o valor para a arte e garante uma remuneração digna para o trabalho dos artistas é o mercado. É preciso encarar essa inequívoca realidade e parar de ter pudor e vergonha de dizer essa palavra: mercado”, afirma o colecionador João Carlos de Figueiredo Ferraz, que mantém uma instituição aberta ao público em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. “Não é embaçando as regras nem assustando os colecionadores que a atividade cultural vai se desenvolver”, argumenta. “Se as grandes coleções de arte estão com os colecionadores e se o Estado não tem recursos para investir em cultura, por que não fazer aqui também uma parceria público-privada que possa dar visibilidade a essas coleções, estimulando as pessoas físicas e jurídicas com incentivos fiscais e outros, para que possam, em espaços públicos e bem equipados, mostrar essas obras?”, pergunta o colecionador.

Fantasmas que cercam a nova legislação

“Criou-se um antagonismo – museólogos e o Estado versus colecionadores e mercado”, resume a colecionadora Regina Pinho de Almeida. “Acho que é uma ingerência grande na vida privada, ainda que seja uma medida que pareça zelar pelo interesse da arte”, diz. “Veja que a lei se refere à regulamentação dos museus, mas trata das obras privadas. Convenhamos, nossos museus estão despreparados para comprar e mesmo para receber e manter obras de alta importância e significado histórico. Veja o caso do Memorial da América Latina. Acho essa nova lei retrógrada”, diz ela. Tombamento, desapropriação, impedimento para vender obras de arte para fora do País, taxação, desvalorização, desaquecimento do mercado, burocracia e perda de autonomia dos museus são alguns dos fantasmas citados pelos que temem a nova legislação.

O curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), José Teixeira Coelho Netto, é um dos que não consideram o Estatuto de Museus bom para o País nem para a arte brasileira. “Vejo-o mais como uma manifestação do ‘furor legislativo’ brasileiro, como se diz em Direito – um furor que tudo quer definir e controlar por lei. Em vez de facilitar a operação dos museus, cria-lhes novos obstáculos. Ao pé da letra, essa legislação tolhe até a venda e o empréstimo de obras pertencentes a colecionadores.”

“Está se criando um clima de medo sobre o que nem aconteceu”, ponderou o leiloeiro Evandro Carneiro na reunião no Rio. “Em 30 anos, aconteceu comigo duas vezes”, disse ele, lembrando das situações em que uma instituição pública exerceu preferência de compra de obra de arte. “Toda obra deveria ser vendida em leilão”, defende, alegando transparência. Como os leilões são obrigados a publicar catálogo e informar previamente as peças que serão vendidas, há leiloeiros que temem que, sob a nova legislação, mais obras sejam redirecionadas para o mercado privado, que atua com mais liberdade. “É, sem dúvida, um avanço para a consolidação de uma política pública para a área museológica no Brasil”, diz Maria Ignez Mantovani Franco, presidente do conselho de administração do International Concil of Museums 33 (Icom Brasil). “Creio que o estatuto já trouxe passos significativos, como a organização do Cadastro Nacional de Museus e a recomendação quanto ao desenvolvimento de plano museológico para todos os museus brasileiros, independentemente de seu tamanho, tipologia ou configuração político-institucional. É importante registrar que os museus tiveram sua gênese, historicamente, em importantes coleções que foram doadas ou adquiridas ao longo de séculos. No Brasil, a mesma história se repete, felizmente.”

“Sugiro que se exercite a nova legislação e, se houver abuso, que se aponte”, disse José do Nascimento Junior, que foi presidente do Ibram desde a sua criação, em 2009, até o começo do ano passado, e antes disso era diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O atual presidente, Angelo Oswaldo, foi designado para o cargo pela ministra da Cultura, Marta Suplicy. Jornalista e bacharel em Direito, ele presidiu o Iphan de 1985 a 1987, durante o governo de José Sarney, e foi por três mandatos prefeito de Ouro Preto, sua cidade natal.

Questionada a respeito da sobreposição de atribuições entre o Iphan e o Ibram, a ministra respondeu à seLecT que “o assunto já foi objeto de estudo na Advocacia-Geral da União, que reconheceu a salutar complementaridade” entre os dois órgãos. O Iphan, que tem escritórios em todo o País, preferiu não se manifestar. “Optamos por não criar estruturas regionais”, disse Angelo Oswaldo, reconhecendo que há ações de competência das duas autarquias. “Estamos vendo como simplificar o processo.”

“Todo mundo ficou um pouco apreensivo, mas Angelo abriu um diálogo”, diz o marchand Carlos Dale. “Não acho que se vá fazer algo para ferir o direito constitucional de propriedade.” Um dos pontos debatidos na reunião de dezembro no Rio foi por qual preço uma obra declarada de interesse público poderia ser arrematada por um museu em leilão. Pelo lance mínimo ou pelo preço do martelo? Nem Angelo Oswaldo sabia responder. A procuradora federal do Ibram, Eliana Sartori, mostrou impaciência. “Não estou entendendo”, repetia, acusando os que expressavam dúvidas de não terem lido a lei. Nesse ponto, a conclusão é que seria vendida pelo preço do martelo (maior valor).

A presidente da Associação Brasileira de Arte Contemporânea (Abact), Eliana Finkelstein, que é sócia da Galeria Vermelho, levantou a mão para perguntar se haveria alguma dificuldade para que se prossiga vendendo obras para museus internacionais, como o MoMA de Nova York. Não, foi a resposta que recebeu. Ou melhor, não se a obra não tenha sido declarada de interesse público.

Lei não faltava

Durante a reunião no Rio, Angelo Oswaldo fez um resumo dos “75 anos de legislação pioneira e eficiente, um marco, uma referência internacional”. Ele se referia à criação do Iphan, em 1937, pelo governo Getúlio Vargas, o presidente que se matou no terceiro andar do Palácio do Catete, onde hoje é o Museu da República. No ano anterior, 1936, o ministro Gustavo Capanema havia pedido ao escritor modernista Mário de Andrade que elaborasse um anteprojeto de lei para salvaguardar o patrimônio cultural brasileiro. Outros intelectuais, como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Afonso Arinos, Carlos Drummond de Andrade e Lucio Costa, também colaboraram. Em 1937, o Iphan foi oficialmente criado, definindo o patrimônio histórico e artístico nacional e instituindo o tombamento, o direito de preferência de compra de bens tombados por instituições públicas, a proibição de destruir, demolir, mutilar ou exportar bens tombados, a vigilância que o Iphan deveria exercer e a responsabilidade de particulares e também de funcionários públicos.

Em 1988, com a nova Constituição, a necessidade de se preservar o patrimônio cultural e artístico foi reafirmada. Em 2007, instrução normativa tratou da criação de um Inventário Nacional de Bens Culturais e de um cadastro especial no Iphan para as pessoas que “comercializem bens culturais como obras de artes plásticas e visuais, produzidas no Brasil ou no estrangeiro até 1970, de autoria consagrada pela historiografia da arte”.

Ou seja, lei não faltava muito antes da criação do Ibram, em 2009, e do novo decreto, de 2013, embora seja lícito questionar se faltou a aplicação da lei. Dois casos são sempre lembrados. A pintura O Abaporu, de Tarsila do Amaral, que foi vendida por um colecionador brasileiro para outro argentino e está exposta no Malba, em Buenos Aires. E a coleção particular de Adolpho Leirner, vendida para um museu de Houston (Texas, EUA). Nos dois casos, não houve interesse de nenhuma instituição brasileira em adquirir as obras, que saíram do Brasil regularmente. É inegável que esses trabalhos adquiriram visibilidade muito maior depois que deixaram o Brasil.

Na avaliação de Angelo Oswaldo, os 3,3 mil museus brasileiros estavam “soltos dentro do Iphan”. Ele disse que “gerir um museu é gerir riscos”; que há “concentração de inquietações em São Paulo”, onde se mencionou a hipótese de “venezuelização do Brasil”; que o Rio, “mais sereno, sabe que tem política pública de cultura”; e que, “munidos de uma grande paciência”, eles estavam ali em reunião pública procurando esclarecer o assunto aos interessados. Entre os comentários da plateia, a reclamação de que o Estado aponta com uma intervenção maior e nada faz para estimular a entrada de obras de arte no País. Os colecionadores querem a diminuição da carga tributária para trazer obras de artistas estrangeiros e para repatriar trabalhos de brasileiros que estão fora do País. Os artistas querem menos impostos para comprar tintas e outros materiais importados. Os autores e os galeristas também querem que os museus comissionem artistas e comprem regularmente, o que no Brasil raramente acontece.

Mas poucos atacam diretamente Angelo Oswaldo, preferindo tentar influenciar as portarias que surgirão nos próximos meses. Burocracia adora burocracia. As portarias são necessárias para detalhar como a legislação, tão genérica, ampla e repetitiva, será aplicada daqui para frente. O Ibram informa que as portarias estarão em consulta pública pela internet e que aceitam palpites pelo e-mail presidencia@museus.gov.br.

Colaboraram Luciana Pareja Norbiato e Tomás Toledo. Leia mais na série especial Estatuto de Museus

* Reportagem publicada originalmente na edição impressa #16