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Obra em costura e bordado sobre tecido da série Profecias (2018), de Randolpho Lamonier, que faz parte da exposição Quem Não Luta Tá Morto, Arte Democracia Utopia, curada por Moacir dos Anjos para o Museu de Arte do Rio (Foto: Cortesia do Artista)
Postado em 20/05/2019 - 10:05
Desalentos e recomeços
Começo de ano no Brasil aparece como longa noite de inverno. Ainda há sol, mas a perspectiva de um longo inverno político muda ânimo
Christian Ingo Lenz Dunker

No Hemisfério Norte, a chegada do inverno muda o humor das pessoas. Elas tornam-se irritadiças, choram com mais facilidade adquirindo um humor que se acinzenta e se aprofunda com o avanço da paisagem depressiva. Este começo de ano no Brasil aparece, para muitos, como uma longa noite de inverno. Ainda há sol, mas a perspectiva de um longo inverno político, muda o nosso estado de ânimo. Isso piora quando olhamos para o lado e vemos os olhos cintilantes daqueles que estão prestes a entrar em uma nova era celestial feita de goiabeiras em flor e florestas de nióbio. A atmosfera, com seus claros e escuros, como em Caravaggio, ou com sua economia de cores, como em Turner, nos dá a temperatura e a qualidade do ar, definindo o tipo de futuro que teremos pela frente. Ela pode trazer asfixia psicológica, pela perda da forma, como nos quadros de Munch, ou angústia pelo excesso de forma, como na iluminação opressiva das telas de Hopper. A atmosfera define o nosso alento e o ânimo, nossa disposição e receptividade, mas é o personagem e a forma que nos convidam ao ato, e o ato fundamental neste momento é de começo e re-existência.

Uma pesquisa recente indicou que o Brasil é o último dos 18 países pesquisados no índice de confiança interpessoal. Só 4% das pessoas afirmam confiar nos outros, 34% têm alguma esperança na democracia e apenas 7% entendem que os políticos usam o poder para o bem comum. O clima de ressentimento e injustiça torna difícil recomeçar sem que tenhamos alguma esperança, ainda que ilusória, em nome do que seria razoável recomeçar a agir. Lembrei-me então de uma passagem rara da Ilíada, de Homero, um momento no qual Ulisses se vê sozinho, abandonado por seus companheiros e cercado por inimigos gigantes. Ele então se pergunta:  “… o que iria acontecer comigo?” Se eu fugir assustado por eles, será um grande mal, mas, se eu for agarrado, será mais terrível. Mas por que meu thymos me diz estas coisas?  Pois eu sei que os maus (kakói) abandonam a batalha, mas aquele que é excelente (aristeyesi) na luta deve resistir corajosamente”.

Para os gregos, o medo, a raiva ou a paixão sexual vêm do thymos. Ulisses escuta o próprio thymos, ainda que o cenário seja escuro e incerto, e não se deixa intimidar pelo thymos alheio. Geralmente, traduzimos a palavra alma, por psiquê, literalmente, diafragma ou respiração. Quando a paisagem da alma se retrai, psiquê esmorece, perde o alento e não tem forças. Mas o órgão que nos leva para a frente não é psiquê, mas thymos, fonte da voz que nos anima a agir, ainda que sem esperança. Enquanto psiquê pede por razões, causas e motivo que mudam como a direção do vento e o ciclo das estações, thymos é o lugar de onde vem a voz que nos lembra quem somos, para onde vamos e como queremos agir. Psiquê dá a cor e a atmosfera, thymos, a forma e a decisão de recomeçar. Daí o termo distimia para designar o humor cinzento da leve depressão, com procrastinação e dificuldade para começar de novo.

“Começar de novo e contar comigo. Vai valer a pena ter amanhecido.”  O verso de Ivan Lins na voz de Elis Regina tem estrutura de promessa. Se estivermos juntos, o amanhecer terá, retrospectivamente, valido a pena. Ele funciona como sopro de esperança, indicando como a experiência, quando compartilhada, adquire um valor que ultrapassa a sua valência positiva ou negativa. Para além do otimismo ou pessimismo de psiquê é preciso lembrar também da formulação de Samuel Beckett, sobre a thymos, em Company.  “Tenta. Fracassa. Não importa. Fracassa de novo. Fracassa melhor. O fim está no início e ainda assim você segue em frente.” Aqui está a forma típica do “seguir em frente”, ou seja, o fracasso que nos torna melhores.

Nada podia ser pior que Dilma, e veio Temer. Nada pior do que Temer, e veio a aurora bolsonariana trazendo desalento e medo. Cercados por gigantes e seus cavalos de Troia, digitais e reais, nosso sentimento de isolamento, intimidação e solidão cria uma atmosfera sombria. Ficar juntos é importante, mas mais importante que isso é lembrar-se para onde vamos. Mais direitos e não apenas resistir a perder os conquistados. Mais do que nunca, agora é a hora de mostrar do que somos feitos.

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, recebeu duas vezes o Prêmio Jabuti. É também coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP.