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Gudskul, 2022 Detalhe. Fridericianum [Foto: Daniela Labra]
Postado em 26/07/2022 - 4:58
documenta 15: coletividades, artes e boicotes
Propostas não-brancas produzem enfrentamento entre traumas históricos e códigos culturais do norte e do sul

A documenta de Kassel é uma exposição quinquenial fundada em 1955, programada para durar 100 dias, que reivindicava a integridade da arte moderna na Alemanha, reparando a difamação desses artistas pelo nazismo. Localizada na periferia do leste alemão, a mostra esteve ligada à agenda política da República Federal Alemã dos anos 1950 e 60, sendo voltada primeiro ao público da Alemanha Oriental, espelhando a tensão da Guerra Fria. A documenta nasceu institucionalizada e se abriu para modelos curatoriais de grande-escala, pedagogia e expografia propositivas, sendo hoje um marco e marca da arte global.

A documenta 15 inaugurou em 18/6 e, pela primeira vez, teve direção artística assinada por não-brancos e não-europeus: o coletivo de arte e ativismo Indonésio ruangrupa, fundado há dez anos em Jakarta. O projeto desdobra-se do conceito de Lumbung, que em Indonésio define os celeiros comunitários de arroz excedente das colheitas distribuído em benefício da comunidade – e que define a prática do próprio ruangrupa. Esta edição é uma proposta política na base, inspirada em processos históricos, éticos, pedagógicos, humanitários e estéticos da Indonésia, estendidos a coletivos, praticantes e agentes do Sul Global. A curadoria convidou 14 coletivos como base Lumbung, que mobilizaram cerca de 1500 artistas em mais coletividades. Participantes residiram temporariamente na cidade, cumprindo o objetivo curatorial de desenvolver modelos de sustentabilidade e estabelecer relações duradouras ali. Ainda, parte do financiamento da exposição é destinado a projetos em países dos coletivos convidados, durante e após os 100 dias da mostra.

The Question of Funding (2020), do coletivo pro-Palestina The Question of Funding [Foto: Divulgação]
Simbolizando a proposta democrática (embora as exposições cobrem ingressos), a festa pública inaugural foi na Friedrichsplatz, com shows do produtor e músico sírio Rizan Saidar, o grupo musical de mulheres indonésias Nasida Ria, o DJ de tech house alemão Bernd Kuchinke, e outros. Pelas instituições saltavam brindes e encontros festivos otimistas por um mundo mais plural de histórias e estéticas não ocidentais. A ênfase na coletividade inspirada na vida agrária no sudeste asiático gerou um cenário de comunidade e troca aparentemente livres na estrutura institucional do evento.

Vietnamese Picnic (2022), do Nhà Sàn Collective [Foto: Victoria Tomaschko/Divulgação]
A generosa visão curatorial do ruangrupa congregou vozes militantes diversas e oxigenou conceitos de horizontalidade, resistência, liberdade de existir e criar. No WH22, por exemplo, pequeno complexo de edifícios próximo a Estação Central, está o Party Office: um Club-em uma das salas vemos escritos e em um porão dedicado a artistas e experiências Queer.

Detalhe da instalação Party Office (2022) [Foto: Daniela Labra]
Além deste, no prédio estão também o coletivo pró-Palestina The Question of Funding, proposições de Hamja Ahsan, do coletivo Alice Yard e um jardim do Nhà Sàn Collective feito com a comunidade vietnamita da região. São vozes reunidas que distintamente denunciam autoritarismo, violências históricas, muros, biopolíticas, trânsitos, censura, colonização. Em comum está ainda a arte entendida como visualidade, experiência sensual e social.

No Fridericianum, principal instituição do evento, ocupam o térreo proposições estético-críticas em formato work in progress, de ateliê coletivo, oficina e arquivo. Em Public Daycare, a artista brasileira Graziela Kunsch projetou um espaço com mobiliário para o acolhimento e desenvolvimento de bebês – que com os responsáveis têm entrada gratuita pela porta exclusiva do trabalho. Ali, conhecemos a pedagogia emancipadora da pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984). O ambiente é seguro e de aprendizado para adultos e pequenos. A instalação mostra também escritos e fotografias de crianças no abrigo de Pikler, fundado em 1946. Uma sala contígua, escura e confortável, exibe uma projeção de Manuela, filha da artista, experienciando o método, que tem entre seus princípios a autonomia do bebê ao brincar. 

Manu’s free motor development (2019-em processo), de Graziela Kunsch

Formatos artísticos mais convencionais também se destacam, como as tapeçarias da artista, educadora e ativista polonesa-romani Małgorzata Mirga-Tas, integrante da mostra coletiva One Day We Shall Celebrate Again: RomaMoMA, organizada no Fridericianum pela OFF-Biennale Budapest, membro Lumbung. Já no Hessisches Landesmuseum vale assistir os 50 minutos do belo filme Aşît (2022) de Pinar Ögrenci, sobre a vila de seu pai e o genocídio Armênio. 

Foundation Class Collective at Fridericianum [Foto: Daniela Labra]
A documenta 15 espalha-se pela região central, margens do Rio Fulda e bairros próximos, com inúmeras obras e instalações, requerendo do visitante disposição para se locomover a pé ou em transporte público. Nesse sentido, tentar ver todas as exposições em apenas dois dias é quase irrealizável, especialmente para quem vem de longe.

Em uma perspectiva histórica da arte processual e política desde 1960, os conceitos de cooperação, solidariedade e experiências sociais como arte para além do objeto comercial não são novidade. Ao mesmo tempo, tantas propostas com visões não-brancas produziram situações de enfrentamento entre modos de convivência, traumas históricos, definições artísticas e códigos culturais entre norte e sul. Pois, embora original neste recorte globalizado, é ainda um evento oficial alemão realizado em conjunto com a diretoria executiva, patrocinadores, comunidades, serviços e equipes alemãs.

ESCÂNDALOS NA DOCUMENTA 15
Em janeiro deste ano, a Aliança Kassel Contra o Anti-Semitismo acusou em um blog pessoas envolvidas no evento – como membros do conselho consultivo, do ruangrupa e artistas – de anti-semitismo. Jonas Dörge, do movimento pró-israelita esquerdista antideutsche, denunciou a participação do coletivo palestino The Question of Funding, que entre outros apoia a campanha Boicote, Desinvestimento, Sanções (BDS) contra Israel, e enviou carta aberta à Fundação Bienal de São Paulo por aceitar contribuições financeiras do Estado israelense. As acusações de Dörge, porém, confundem crítica ao tratamento de Israel ao povo palestino com preconceito contra o povo judeu. Ainda assim, em maio, as salas do The Question of Funding foram pichadas com o número “187”, grafite popular com conotação de ameaça de morte, referindo-se ao código penal da Califórnia que define assassinato; e “Peralta”, possível referência a Isabel Peralta, jovem líder espanhola de extrema-direita neonazista.

Question of Funding [Foto: Daniela Labra]
Após os ataques, a documenta programou um ciclo de palestras que foi suspenso sob a alegação de que a exposição iria abrir e falar por si mesma. Contudo, a escalada de acusações de anti-seminitsmo seguiu, culminando na censura do painel People’s Justice (2002), do coletivo indonésio Taring Padi, instalado em praça pública no dia da abertura oficial. O painel de 8m x 12m narra histórias da ditadura de Suharto, extrativismo, colonização na Indonésia ilustradas em cenas de caos e conflitos. Entre vários personagens, dois são identificados como judeus, sendo um com chapéu da SS (a polícia nazista) e outro como integrante da Mossad. Tais ilustrações, especialmente no contexto alemão, são intoleráveis.

Taring Padi (detalhe) [Foto: Daniela Labra]
Em protesto contra uma suposta inépcia da direção artística e curatorial da documenta no caso, a artista alemã Hito Steyerl retirou sua videoinstalação da mostra – e também da Coleção Julia Stoschek, em Berlim, cuja família é denunciada por enriquecer da fabricação de latas de gasolina e armamentos para os nazistas. Enquanto isso, Vidisha-Fadescha, artista, fundadora e curadora do Party Office, e o curador Shaunak Mahbubani, ambos indianos, suspenderam a programação do festival Queer Time: Kinships & Architectures. O evento com artistas transfeministas internacionais versaria sobre lazer, festas e prazer radical, mas pessoas convidadas sofreram violência transfóbica pelo público antes mesmo do início. Diante deste quadro de crises inédito, Sabine Schormann, diretora geral da documenta 15, deixou o cargo no dia 16/7, sendo substituída pelo administrador cultural de carreira Alexander Farenholtz.

Na redes, o ruangrupa já é acusado pelo público de “destruir” a documenta e a arte. Contudo, a documenta 15 terá lugar destacado na história das exposições não só pelos escândalos gerados, mas pelo conteúdo artístico de sentido vital. Pois esta edição é menos sobre tamanho e mais sobre grandes mobilizações e experiências políticas como estética.

SERVIÇO
documenta 15, Kassel
Até 25/9