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Frame do trabalho Passage (2017), do sul-africano Mohau Modisakeng (Foto: Cortesia Tyburn Gallery)
Postado em 14/11/2017 - 5:37
Dor colonial
Diáspora africana aparece em performances e filmes de Mohau Modisakeng e Ayrson Heráclito
Márion Strecker

Celebração festiva da arte, a 57ª Bienal de Veneza fez questão de afirmar que é feita “com artistas, por artistas e para artistas”, como disse sua curadora artística Christine Macel, que intitulou a exposição de Viva Arte Viva. Mas as dores do mundo não têm nada de festivo e não faltaram artistas para remexer nas feridas abertas dos crimes de toda ordem que enfrentamos, como vítimas, algozes, ou ambos. A escravidão negra é tema de excelentes trabalhos levados a Veneza este ano pelo sul-africano Mohau Modisakeng e pelo brasileiro Ayrson Heráclito.

No pavilhão da África do Sul, Candice Breitz apresenta vídeos com depoimentos de pessoas de regiões e perfis variados que se viram forçadas a emigrar, enquanto na sala ao lado atores aparecem em filme reproduzindo os mesmos depoimentos. Na terceira sala do pavilhão está o trabalho Passage, do jovem Mohau Modisakeng, sobre o desmembramento da identidade africana resultante da escravidão.

Mohau nasceu numa Soweto violenta em 1986, de mãe enfermeira, zulu, e pai motsuana. Soweto, vizinha a Johannesburgo, era considerada a maior favela do mundo e ali coabitavam tribos diferentes, apartadas da sociedade branca dominante. As tribos dividiam-se em diversos partidos políticos, pró e contra Nelson Mandela, que cotidianamente se matavam nas ruas em defesa de métodos opostos que cada um pregava na luta contra o Apartheid e pela democratização da África do Sul.

O cotidiano de infância de Mohau foi habitado por corpos nas ruas de pessoas recém-assassinadas. Pouco depois da soltura de Mandela, em 1990, e antes das eleições de 1994, quando o país fez sua transição para a democracia, Mahau, ainda criança, viveu o assassinato do irmão mais velho no contexto dessa luta pela libertação.

A consciência do Apartheid e um programa de intercâmbio o levaram para uma temporada em Londres, onde conheceu a Tate Modern e se impressionou com a quantidade de salas repletas de obras de arte. Sem saber o que significava ser artista e sem conhecer nenhum, decidiu ser um deles. Estudou Belas Artes na Cidade do Cabo, onde mora atualmente, e para o trabalho final do curso voltou a Soweto, onde fez a família finalmente falar do assassinato do irmão. Fez então uma grande escultura a partir da imagem da faca que matou seu irmão.

Em Passage, o trabalho que está na Bienal de Veneza, três filmes são projetados simultanea-mente. Em cada filme, um negro (ou negra) aparece sozinho deitado de costas no fundo de um barco pequeno. Cada um deles traz uma única posse ou vestimenta que caracteriza sua cultura. Os movimentos dos corpos, lentos, parecem às vezes de luta e outras de resignação. A água às vezes inunda o interior dos barcos, ameaçando afogar seus viajantes. Às vezes, os corpos negros submergem, mas a estranha dança continua. Em cada barco, cada um navega só, sabe-se lá para onde. Pura poesia cheia de dor.

Não por acaso, o vaivém das águas, subindo e descendo, lembra a própria situação de Veneza, cidade protegida por diques, mas sempre e ainda sujeita a inundações e ameaçada de desaparecer.

Outro trabalho que trata da diáspora africana é o de Ayrson Heráclito, baiano de Macaúbas, filho de um sargento da PM, negro, e de uma professora de história, branca. Em sala no edifício principal do Arsenal, Heráclito mostra dois filmes, projetados simultaneamente em paredes opostas, performances realizadas nos dois lados do Atlântico. Do lado de cá, o lugar é a Casa da Torre de Garcia D’Ávila, edificada em 1550 na Bahia, sede do maior latifúndio da história do Brasil, formado com mão de obra escrava negra e indígena. Na África, o lugar é a Casa dos Escravos de Gorée, ilha do Senegal, onde negros escravizados eram mantidos, enquanto aguardavam transferência para as colônias portuguesas no além-mar.

Nas performances de Heráclito, três homens de branco fazem um ritual do candomblé, religião do artista. O objetivo não é apagar torturas e abusos extremos sofridos pelos escravos, mas sim eliminar o espírito ruim dos senhores de escravos, onde se ancora a pobreza e a desigualdade social que persistem até hoje no Brasil.

Nascido em 1968, Ayrson é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e gosta de fazer a tradução do universo do sagrado para não iniciados. Aliás, é o que faz também Ernesto Neto com o trabalho Um Sagrado Lugar, com os índios Huni Kuin, do Acre, que tratam com ayahuasca a doença da civilização moderna, divorciada da natureza.

Serviço
57a Bienal de Veneza  Viva Arte Viva
até 26/11
labiennale.org