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Okê Oxóssi (1970), de Abdias Nascimento; acervo Masp, doação Elisa Larkin Nascimento / Ipeafro, no contexto da mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018); à esq., Xangô Sobre (1970), de Abdias; acervo Ipeafro, Rio de Janeiro
Postado em 29/04/2022 - 10:30
É possível refundar a narrativa hegemônica da arte brasileira?
As direções de museus brasileiros apresentam suas estratégias descoloniais na gestão de instituições culturais

Noite de quita-feira, 24 de fevereiro, em São Paulo. A Avenida Paulista figura nos noticiários por causa de um incêndio que tomou o último andar de um edifício comercial ao lado da FIESP, no início da tarde. Do outro lado da rua, é noite de vernissages: Volpi Popular e Abdias Nascimento: Um Artista Panamefricano abrem o programa anual do Museu de Arte de São Paulo, que se dedica, em 2022, a narrar Histórias Brasileiras. Como a Paulista havia estado interditada nos dois sentidos em decorrência do incêndio, decido ir a pé ao museu e caminho à noite pela avenida cartão-postal da cidade pela primeira vez, desde o início da pandemia.

Dois anos depois da crise sanitária e da gestão desastrosa do cataclismo social que ela trouxe a reboque, mudanças se fazem sentir a cada metro do meu percurso: barracas de acampamento abrigando famílias em situação de rua e muita gente pedindo ajuda a quem passa dão contornos trágicos ao cartão-postal paulistano. Um homem me aborda no caminho, apresenta-se como Paulo Sebastião, 45 anos, e me conta, com forte sotaque carioca, que era jornalista no Rio de Janeiro. Pergunto se ele conhece o Masp. Ele diz que sim, que conhece o prédio. Mas você já esteve lá dentro?, devolvo. “Não, lá dentro eu nunca entrei.” Convido-o para me acompanhar até uma inauguração de mostras de pintura no museu, digo a ele que às terças a entrada no Masp é gratuita e que ele pode visitar as exposições toda semana, se gostar.

Paulo Sebastião comenta que se envolveu numa briga e que rasgaram a calça dele, fica com vergonha de ir vestido assim a uma abertura. No caminho passamos por uma loja esportiva, onde o presenteio com uma calça nova. Meu colega jornalista pergunta se eu não lhe daria também uma camiseta vermelha, para combinar. Concordo. Chegamos ao Masp e meu colega é muito bem tratado, na entrada, pelos funcionários e, no espaço expositivo, por conhecidos que vêm me dar um alô. Na retrospectiva de Volpi, Paulo Sebastião comenta, observando as fachadas caiadas do pintor ítalo-brasileiro: “É tudo tão simples”. No subsolo, empolgado com as telas de Abdias Nascimento, observa: “Isto é muito moderno!” pergunto se gosta mais dessas pinturas do que das do primeiro andar: “É lógico, aquele cara está morto. Este está vivo”.

O MODERNISMO É POP
A sequência de exposições no Masp que agregam o termo “popular” ao nome de artistas modernistas (se for mulher, o primeiro nome; se for homem, o sobrenome), denotando a democratização do acesso e popularização da obra dos cânones brasileiros – Portinari Popular, Tarsila Popular, Volpi Popular –, é uma das estratégias que a instituição paulistana adota para ampliar a diversidade demográfica de quem gosta de chamar de seu o imponente Museu de Arte de São Paulo. À luz da desconstrução de Lina Bo Bardi empreendida na corajosa Des-Habitat, de Paulo Tavares, que comprova a matriz neocolonial do projeto moderno de Lina, cabe a pergunta: é possível descolonizar o museu modernista-colonial de Bardi? A exposição de Abdias Nascimento, na esteira das tantas mostras que o museu realizou a partir de Histórias Afro-Atlânticas (2018), que visam ampliar a narrativa sobre as histórias da arte no Brasil, trazendo para o debate produções marginalizadas de artistas mulheres, afrodescendentes, indígenas e de outros corpos dissidentes, parece indicar que sim.

Nas salas do Masp, na noite de inauguração, é evidente que nestes seis anos da gestão de Adriano Pedrosa e equipe, a demografia do museu se diversificou. Entre os convidados da retrospectiva de Abdias Nascimento estão Douglas de Freitas e Deri Andrade, respectivamente, curador-geral e curador-assistente de Inhotim; Elisa Larkin Nascimento, co-fundadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro); Julio Menezes Filho, coordenador do projeto Museu de Arte Negra do Ipeafro no ambiente virtual; Igi Ayedun, artista e fundadora da Galeria HOA. Para Elisa Larkin, viúva de Abdias Nascimento, a exposição no Masp, assim como a parceria entre o Ipeafro e o Inhotim para um programa de dois anos de ações de difusão das pesquisas do intelectual carioca no museu mineiro, é uma estratégia de visibilidade para sua obra e legado, com vistas a “atender às necessidades de vida de uma população”. Em entrevista à seLecT, Larkin defende que a aproximação com as instituições avalizadoras da arte no Brasil envolve sempre uma “discussão para que os projetos não fiquem como benefício apenas para o mundo da arte, mas, sim, da população preta”.

Vista da primeira sala da exposição Acervo Pinacoteca, dedicada a retratos e autorretratos de artistas , em cartaz na Pina Luz, em São Paulo

ABALAR AS ESTRUTURAS
Todas as instituições ouvidas pela reportagem foram unânimes em afirmar que não se desconstrói a narrativa hegemônica da arte apenas com exposições que revisitem outras historiografias, ou mesmo que as reescrevam. É necessário “construir e reforçar a institucionalidade para garantir que os programas de revisão de narrativas possam acontecer”, defende Pablo Lafuente, um dos diretores artísticos do MAM-Rio. “Um processo de descolonização poderia ser um processo de despersonalização — prossegue — porque o mundo da arte tende a ser ocupado por individualidades fortes que ‘garantem’ as transformações, quando deveria estar atrelado a processos de reforço das estruturas, um processo de institucionalização que trabalhe estruturas mais estáveis, mais capazes de se repensar, sem depender de individualidades fortes, visando processos de justiça social.”

Na trajetória do curador e pesquisador espanhol, um marco descolonial destaca-se: a série Afterall Books, sobre histórias das exposições, que ajudou a conceber. “Foi uma resposta imediata a uma irritação que sentíamos na (revista inglesa) Afterall”, na era dos supercuradores dos anos 1990 e 2000, quando a globalização e o multiculturalismo elevaram gestos individuais à condição romântica de transfiguradores da história. “Como pode ser que a gente esteja pensando em produção cultural a partir de gestos individuais? A história da arte já passou por essas brigas, tem tido construções que favorecem biografias individuais, depois têm aparecido movimentos de história social da arte que querem entender como as coisas acontecem sem eliminar a individualidade. A questão não é eliminar as individualidades, mas entender como a individualidade se constitui dentro de processos que são maiores, porque, senão, como produtores, como pessoas engajadas nesse processo, as individualidades são impossíveis de garantir, e a continuidade, a sustentabilidade, os efeitos, a médio e longo prazo, não se garantem, é impossível. Então essa irritação com narrativas românticas de indivíduos que mudaram a história da arte, assim, uma pessoa pode realmente fazer isso?”, questiona Lafuente.

Para o curador, o sistema da arte contemporânea confia muito em narrativas de indivíduos e os processos precisam ser outros. Ele menciona um artigo de Bonaventure Ndikung, em que o teórico camaronês afirma que, para que a instituição de arte mude, precisa mudar três “Pês”, palavras que começam com P: pessoas, públicos e programas. Pessoas sendo as que trabalham no museu; público, as pessoas que visitam os museus; e programas, os conteúdos. “Isso faz muito sentido aqui no MAM, e é a forma como estamos trabalhando. Mas tem outra coisa também: tem as portas, tem o teto, tem o piso. Onde estão as janelas? São grandes ou pequenas? Porque, se você muda essas coisas e não interfere na construção… Construção são muitas coisas, pode ser a construção dos conhecimentos, dos acessos, pode ser a articulação das estruturas que nos permitem trabalhar, as relações trabalhistas, como a gente trata os nossos colegas e os colaboradores. Então, essa outra palavra, que não começa com P, também é muito importante, eu encaixaria esse argumento sobre a institucionalidade nesse quarto departamento. Isto é ainda mais urgente no Brasil, porque, se me permite usar um clichê, os museus pegam fogo aqui”, afirma o curador, referindo-se aos incêndios no próprio MAM-Rio, em 1978, no Museu Nacional do Rio (setembro/2018), e no Museu da Língua Portuguesa (dezembro/2015). Para Lafuente, este é o exemplo extremo, uma vez que existem museus que não conseguem levar adiante seus projetos com autonomia, perdem o financiamento e acabam ficando apagados, “sem conseguir mobilizar a cultura no tempo próprio”.

INCÔMODO NA PINACOTECA
Em 2018, outra instituição de São Paulo definiu como missão pensar a arte brasileira em diálogo com outras culturas, o que implicou uma transformação estrutural profunda. Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca do Estado, conta que o problema central neste momento de repensar o museu era como lidar com o seu acervo histórico. “A Pinacoteca é uma instituição de 116 anos, criada pelo (e pertencente ao) governo do estado. Não há como ser mais oficial do que isso. Nós temos no acervo, por exemplo, o retrato oficial do imperador Dom Pedro II, o que fazer com ele? Vamos esconder? Não precisamos mostrar como parte da história oficial, mas podemos trazer outras histórias em torno dele”, explica Piccoli, referindo-se à nova configuração do acervo, na mostra de longa duração, em que o referido retrato é exibido ao lado de uma pintura de Benedito Calixto, Proclamação da República (1893), e de um conjunto de desenhos do artista Sidney Amaral, Incômodo (2014). Comissionada para a exposição Histórias Mestiças (2014), no Instituto Tomie Ohtake, para integrar o núcleo Cosmologias e Emblemas Nacionais, a obra do artista paulistano narra a história da abolição da escravidão no Brasil “a partir da ação e agência dos próprios negros, utilizando referências contemporâneas e históricas, como Christiano Júnior. Em vez da ideologia da dependência e da gratidão, no políptico em aquarela de Amaral os negros são agentes do ato e verdadeiros responsáveis pela libertação”, anotam os curadores Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz no texto do catálogo.

Ainda de acordo com Valéria Piccoli, a representatividade de artistas mulheres, afro-brasileiras, indígenas e queer que se vê hoje na exposição de longa duração é fruto de um trabalho de anos: “Fizemos uma pesquisa para entender a percepção que o público tinha da Pinacoteca e a maior parte das respostas apontou para uma visão de um museu do século 19, com muitos visitantes se referindo à instituição como ‘o museu do Almeida Júnior’, por exemplo, e isso nos levou a questionar por que a coleção não se fazia mais evidente na mostra de longa duração; afinal, o projeto da Pina Contemporânea existe desde 2006, e as aquisições de arte contemporânea por dotação dos patronos do museu completa dez anos em 2022”, conta a curadora-chefe. Ou seja, as obras que hoje tensionam os 116 anos de tradição da Pina estão no acervo desde antes da definição do conjunto exposto no segundo piso do museu.

COMO DESSACRALIZAR O MUSEU?
As instituições representam uma estrutura de poder. Questionar essa estrutura, na Pinacoteca, não começou com a teoria descolonial, mas com projetos educativos e programas que vão para além dos muros: “Como desfazer a escadaria gigante na mente das pessoas, a entrada imponente que separa o mundo supostamente sagrado do mundo lá fora? A gente entende que esse é um processo com ações educativas que começou há muitas décadas e, antes mesmo dos arte-educadores, foram os artistas que começaram isso, aqueles artistas que tentam aproximar a arte da vida desde os anos 1960 fazem parte desse processo, tentando fazer o museu ser o que ele não é”, exemplifica Jochen Volz, diretor-geral da Pina, que também defende que não é possível mexer na estrutura sem mexer na programação e vice-versa.

“Ambos são processos que envolvem todos no museu. A instituição em si é o abstrato, mas ela é uma construção coletiva, composta dos funcionários, da direção, do público, do não público. Se a gente quer mudar algo, precisamos envolver todos”, continua Volz. Isso acontece, portanto, na programação, assim como em projetos internos, como colaborações feitas com uma ONG para contratação de pessoas trans e com uma instituição que dá apoio ao primeiro emprego de imigrantes. “Foram processos internos de pensar aos poucos outras formas de contratação, de colaboração, ao mesmo tempo que estávamos empenhados em repensar a forma de expor o acervo. Uma política de diversidade é o próximo passo. Entendo que a gente criou uma certa reflexão crítica institucional, promovendo um certo letramento; não é apenas questão de alguns núcleos pensando e outros fazendo, isso envolve todo mundo.” As experiências de exposições como Véxoa, Enciclopédia Negra, e a nova exposição do acervo são exemplos importantes de quebra do cânone de diferenciações entre arte popular e erudita. Segundo ele, “agora estamos prontos para o próximo passo, de pensar uma política mais ampla”. Volz conta que esses projetos demandaram tempo e fizeram todo mundo parar e refletir. “É importante viver isso e não só palestrar. A partir dessa reflexão de toda a equipe, a Pinacoteca mudou seu plano museológico, reformulou o acervo.” Ele cita como exemplos projetos que levaram a instituição a questionamentos profundos sobre a sua missão: as exposições de Grada Kilomba, Somos Muitxs e Os Gêmeos. Esta última foi uma exposição que trouxe para a Pina um público que nunca tinha pisado no museu. “É uma exposição que oferece pontos de contato para públicos mais diversos. Trouxe pessoas com muita curiosidade e que também se interessaram em visitar o acervo. Podemos dizer que a coleção tem se tornado de novo um destino com a reconfiguração. A exposição da Grada Kilomba, que estava espalhada pelas salas do acervo, trouxe um público que talvez nunca teria achado que a coleção tinha alguma relevância, porque a mostra anterior não pensava na representatividade de artistas afrodescendentes, tinha um número menor de artistas mulheres etc., foi muito importante para pensar como a coleção precisava mudar. Quando vimos as obras da Grada com aquele recorte do acervo, a exposição de longa duração virou pauta: ‘A gente precisa repensar tudo’, dissemos.”

Detalhe da instalação Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste (2013), de Jonathas de Andrade, com pintura Caipira Picando Fumo (1893), de Almeida Júnior, ao fundo; vista da mostra de longa duração da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Outro marco foi um experimento sobre a coletividade, que já estava expresso desde o título, Somos Muitxs: a ideia do museu sendo vários formatos ao mesmo tempo. A obra do Rirkrit Tiravanija, no Octógono, foi uma programação que envolveu mais de mil pessoas. “Do Legítima Defesa ao coral evangélico, ao teatro Capoeira, performance, leitura, dança, campeonato de beatbox, bloco de Carnaval, essas mil pessoas que se apresentaram, muitos deles não necessariamente frequentadores do museu, trouxeram a família, então virou um museu de muitos. Isso foi possível porque não foi pensado por um curador, foi pensado a partir de uma inquietação institucional, que demandou que todos os atendentes embarcassem nesse experimento.”

“É uma questão de engajamento institucional”, defende Lafuente. Um elemento fulcral que resulta desse comprometimento é que o museu não pode se autocelebrar porque está trabalhando com arte indígena, por exemplo, vaticina. “Nós estamos, sim, trabalhando com pessoas indígenas, tem uma exposição da Sallisa Rosa que abriu recentemente, convidamos o Denilson Baniwa para fazer a curadoria de uma exposição que vai lidar com referências do moderno, com inauguração em julho. É uma exposição que, de certo modo, é uma resposta à Semana de Arte Moderna, mas não é direta, nem queríamos que fosse direta. O que é importante é a relação que a gente estabelece nesse processo e não cabe ao museu celebrar porque convidou Denilson Baniwa. Esse engajamento é uma responsabilidade e ninguém deveria se autocelebrar por estar cumprindo a sua responsabilidade.”

TÁ MODERNISTA, TÁ FAVORÁVEL?
Da centena de eventos que comemoraram e/ou revisaram a Semana de 22 na ocasião de seu centenário, a exposição que mais longe projetou a necessária crítica ao “marco inaugural” do modernismo entre “nós” aconteceu… longe de um museu. Intitulada Raio-Que-o-Parta: Ficções do Moderno no Brasil, a mostra, com curadoria-geral de Raphael Fonseca e co-curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos e Paula Ramos, segue em cartaz no Sesc 24 de Maio, em São Paulo (leia mais na seção Críticas). Partindo da premissa de que os modernismos no Brasil são muitos, o curador-geral da mostra convidou colegas de profissão baseados nos quatro cantos do país, todos com formação em história, para que propusessem um levantamento de nomes e movimentos longe do eixo Rio-São Paulo de atitudes modernas concomitantes ou anteriores à Semana.

“É fácil colocar um Denilson Baniwa do lado de um Victor Meirelles e dizer que é descolonial. Quero ver descolonizar mostrando como os próprios agentes modernos já tinham em si uma posição descolonial de mundo”, diz Raphael Fonseca. Raio-Que-o-Parta apresenta essa pesquisa a 12 mãos e resulta incontornável: apresenta ao público pau- listano um Brasil desconhecido, de artistas modernos do início do século 20 que forjaram a identidade descolonial longe dos holofotes do Theatro Municipal.

O que nos leva de volta ao Masp, que em 2022, sobretudo por causa do bicentenário da Independência do Brasil, elege como eixo central da programação anual do museu contar as Histórias Brasileiras da Arte. “A instituição reconhece a complexidade e a relevância dessa celebração e apresenta, ao longo do ano, uma série de exposições, cursos, palestras, oficinas e publicações em que irá abordar o conceito de brasilidade de uma forma mais ampla – explorando conceitos sociais, antropológicos e históricos”, informa o texto de divulgação.

Procurado pela reportagem da seLecT, o Masp preferiu não opinar sobre a pauta “como descolonizar o museu?”. Na noite de aberturas, após um mês de tentativas de agendar entrevista com algum dos curadores, sem sucesso, a reportagem abordou o curador-chefe, Adriano Pedrosa, explicando que não gostaria de deixar de fora da presente matéria uma instituição que parece trabalhar nesse sentido desde a mudança na direção, seis anos atrás. Pedrosa respondeu que não poderia conceder entrevista na ocasião e sugeriu que a revista procurasse a assessoria de imprensa. Após ser informado de que isso estava acontecendo havia um mês, limitou-se a reafirmar que não podia falar sobre o tema “no momento”.

Mas, afinal, é impreterível ouvir o que Adriano Pedrosa tem a dizer? Após a condução de muitas entrevistas para escrever este texto, tendo aprendido que descolonizar é despersonalizar, que nenhum museu deveria se autocongratular por não fazer mais que a obrigação, e, sobretudo, depois de ter a companhia de Paulo Sebastião nas mostras de Volpi e Abdias Nascimento, a resposta à pergunta é óbvia. O Masp são todas as pessoas que ali trabalham, que visitam o museu e todos os potenciais visitantes futuros. As individualidades heroicas não garantem nada. O que importa são todas as individualidades que os museus aprendem (ou não) a acolher.

Detalhe das etiquetas feitas pelos artistas e convidados na exposição Retomada da Imagem

Imagens em disputa
Artistas e lideranças indígenas reivindicam agenciamento sobre as imagens de seus ancestrais no Museu Paraense  

Denilson Baniwa e Gustavo Caboco encontram-se em Curitiba, no fim de 2021, para organizar um assalto simbólico a um museu histórico. Nos meses anteriores haviam feito, por chamadas de vídeo, diversas reuniões com a equipe do Museu Paranaense, o Mupa, que os convidou para pensar um projeto a partir do acervo de fotografias etnográficas deste que é o terceiro museu mais antigo do Brasil. A pesquisa desta parte da coleção, inteiramente digitalizada, composta de cerca de mil fotografias, diapositivos, negativos fotográficos e em vidro, e fotopinturas, disparou na dupla de artistas indígenas questionamentos sobre captura, representação e agenciamento. Como transformar essas imagens por meio de narrativas que contemplem mais os retratados e menos os autores das fotografias?

Estamos falando de fotos realizadas predominantemente em expedições etnográficas pelo Brasil em meados do século 20. Este material traz a marca neocolonial da catalogação por autor da fotografia, localização geográfica e identificação do “objeto fotografado”. Trata-se da perspectiva “científica” do homem branco formado nos bancos acadêmicos eurocêntricos de nossas universidades fundadas por missões francesas, holandesas e que tais. Também por estrangeiros que imigraram para o Brasil no período das duas guerras mundiais, caso de Vladimir Kozák, engenheiro e pesquisador tcheco que chegou ao Brasil em 1923 e viveu em Curitiba do início dos anos 1930 até 1979, ano de sua morte.

Convidado para dirigir o departamento de fotografia e audiovisual do Mupa, Kozák foi o grande responsável pela implementação de registros sistemáticos de povos indígenas do Paraná. De acordo com a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná Rosalice Carriel Benetti, entre os anos 1940 e 1960, “o ambiente do Museu Paranaense transformou-se, configurando-se como um local de efervescência cultural, envolvido em discussões científicas e voltado a pesquisas em diversos campos da ciência. Nesse momento, o Museu ocupou um lugar de destaque na comunidade científica que foi muito além dos limites locais. A ligação com o Smithsonian Institute nos Estados Unidos é um exemplo, espécimes coletados em expedições organi- zadas pelo Museu foram utilizados por aquela instituição por intermédio da Universidade de São Paulo, USP. (…) O início da fase científica do Museu consolida-se quando a instituição lança sua primeira publicação. Em vez de uma acanhada revista de divulgação que se esperaria de um museu provincial, os Arquivos do Museu Paranaense surpreenderiam pela sua qualidade editorial ao abordar, com ares de grande centro, temas de interesse das mais prestigiosas instituições científicas do país”, escreve Benetti em sua dissertação de mestrado “Vladimir Kozák: Sentimentos e Ressentimentos de um ‘Lobo Solitário’” (2015).

O encontro que o museu promoveu em 2021 entre o acervo legado por Kozák, que constitui a Coleção Vladimir Kozák do Museu Paranaense e integra o programa Memória do Mundo da Unesco − Brasil, e a dupla Denilson Baniwa e Gustavo Caboco resultou num diálogo de alta complexi- dade. Sob a ótica do protagonismo indígena que na atualidade firma-se e fortalece exponencialmente no campo das artes visuais (e em tantos outros), a coleção de fotografias deve ser problematizada. As pessoas retratadas estão muitas vezes identificadas apenas como “índios”, sem nome, sem individualidade. Além disso, as cenas fotografadas frequentemente são construídas em evidentes pedidos aos indígenas que se portassem como “índios”, reforçando a exotização dos povos autóctones ou, ainda, promovendo “contrastes” sob legendas preconceituosas que ironizam a adoção de hábitos não indígenas, destinadas a evidenciar a aculturação compulsória à época. Por outro lado, a violência desse encontro com as representações dos povos indígenas possibilitou aos artistas promover uma acareação entre os retratos e os descendentes dos retratados. Baniwa e Caboco convidaram amigos dos povos Kanhgág, Xetá e Mbyá-Guarani para uma imersão coletiva no museu-tornado-ateliê, em novembro de 2021. Aí começa o assalto. Instituição de 145 anos de existência e 800 mil itens em sua coleção, o Mupa era tido pela comunidade artística de Curitiba, até muito recentemente, como o bom e velho museu histórico da cidade. Seu acervo e programas de pesquisa nas áreas de arqueologia, antropologia e história brasileira e latino-americana costumavam atrair estudantes universitários e um público interessado mais difuso, mantendo a cena da arte atual circulando longe dele, em museus como o MAC Curitiba ou o MON. “A partir da atual gestão, que está entrando em seu quarto ano, o museu reformulou sua própria vocação e passou a ser um espaço vinculado à contemporaneidade, colocando áreas como o design, a arte contemporânea e a arquitetura em diálogo com o acervo através de novas perspectivas − todas alinhadas aos nossos atuais questionamentos e problemáticas mais latentes. O projeto Retomada da Imagem, com certeza, é um dos maiores e mais simbólicos projetos desta gestão do Museu Paranaense, pois desenvolve novas narrativas focadas em reversões de protagonismos, revisões historiográficas e curadoria compartilhada com os artistas indígenas contemporâneos convidados”, escrevem Gabriela Bettega e Richard Romanini, respectivamente, diretora e diretor artístico do Mupa.

Gustavo Caboco e Denilson Baniwa

DIREITOS DE RESPOSTA
O projeto em si não tinha como objetivo uma exposição, pois era um projeto de pesquisa para propor alguma atualização do acervo. No meio do percurso é que se foi construindo uma ideia de que o resultado da imersão e da residência pudesse se transformar numa exposição, segundo Denilson Baniwa. “O caráter do trabalho é mais subjetivo do que objetivo; é mais um aspecto imaterial da coisa, mais um pensamento, que, inclusive, está em construção ainda. Apesar de já estarmos pensando a questão da retomada da imagem, cada um do seu lugar e à sua maneira, este foi um primeiro teste que fizemos juntos, Gustavo, eu e as pessoas que convidamos”, explica o artista. “Algumas coisas foram fundamentais na proposição de uma nova expografia ou modo de exibição desse material, por exemplo, quando Indiamara (Paraná, do povo Xetá) identifica as pessoas fotografadas e a gente agrega novas informações à antiga ficha técnica, isso é interessante para pensar quantos outros acervos são insuficientes em suas informações e como trariam uma riqueza maior se fossem observados por pessoas indígenas”, conclui.

Caboco e Denilson, dos povos Wapichana e Baniwa, questionaram-se sobre como construir paralelos ou “direitos de resposta” da imagem construída que encontraram no Mupa. “Hoje é possível construir um díptico, um espelho, um paralelo, onde se contam outras narrativas. Isso foi uma das experiências que a gente fez, em que algumas fotografias foram remontadas e refotografadas, como a caçada, o guerreiro caçador, os rituais”, contam, referindo-se às novas imagens que fizeram com Juliana Kerexu, Elida Yry (ambas do povo Mbyá-Guarani) e Caboco protagonizando as cenas a partir da releitura crítica. “Existe a ‘imagem original’ do Kozák e um díptico moderno representando uma narrativa parecida, mas diferente politicamente”, afirma Baniwa.

Sobre o título da mostra, a dupla defende que o termo “retomada” carrega um sentido estratégico-político do movimento indígena, que envolve a observação do terreno, o entendimento do contexto, dos perigos, da geografia local, de quem é inimigo e de quem é amigo, de parcerias e possibilidades de negociação, e na coleta de todos esses dados, encontrar meios de enfrentamento, de retomada, “já sabendo onde são os flancos e onde tem os pontos cegos, onde há risco de vida ou não”, define Denilson. “Retomar é tomar de volta em uma ação rápida e certeira. Não foi aleatória a escolha das imagens com que trabalhamos, as pessoas que convidamos nem o local. Tudo foi pensado como estratégia política de assalto, uma ação direta incisiva e também de fuga depois, caso desse errado”, diverte-se.

Em entrevista à seLecT, Gabriela Bettega aponta a necessidade de construir lugares sensíveis aos silenciamentos e violências que foram naturalizados no contexto acadêmico das áreas de pesquisa que o museu envolve. “A interdisciplinaridade promove um espaço de negociação das diferenças. Desde que assumimos a direção do Mupa, no início de 2019, estamos empenhados em colocar em diálogo os diferentes acervos do museu e, sobretudo, envolver agentes da comunidade que estão representados na coleção e, muitas vezes, não têm conhecimento desse fato. Um dos caminhos para fazer isso é convidar os artistas contemporâneos, muitos dos quais lidam também com os mecanismos científicos da arqueologia e da antropologia, porque entendemos que a arte é um importante instrumento gerador de narrativas”, afirma.

A diretora é muito enfática ao problematizar como uma instituição com 145 anos de história, fundada a partir de uma perspectiva eurocêntrica, espelha a sociedade racista em que vivemos e que ainda exclui muitas populações. “A metodologia de extroversão do campo científico e de revisão histórica no Mupa é um processo de longo prazo, do qual as exposições são apenas um de muitos aspectos, mas é importante perceber como ela já vem contaminando a estrutura do museu. Essas disciplinas têm suas rotinas de indexação, catalogação e conservação, mas o diálogo com a comunidade acaba dissolvendo o dogmatismo de cada área de pesquisa, levando a revisões das próprias metodologias”, conta. Richard Romanini destaca a importância de biografar o máximo possível cada item do acervo, com o auxílio dos agentes das histórias mobilizadas em cada retrato ou artefato. “O museu vem, sistematicamente, procurando pessoas que possam ter vínculos afetivos com esses materiais, convidando a comunidade para contar histórias mais justas e representativas. Isso possibilita que os pontos de vista sobre uma mesma história se multipliquem”, explica, como ocorreu na mostra Retomada da Imagem. “Estamos testemunhando uma apropriação pela comunidade do espaço do museu. O Mupa é um espaço público, que é e sempre foi de cada cidadão, mas, a partir dessa apropriação, de um sentimento de pertencimento, o museu torna-se também responsabilidade dos cidadãos”, completa Bettega.

Obra coletiva (Foto: Amanda Yargas/MUPA)

No encerramento da Retomada da Imagem, dia 15 de janeiro deste ano, com ação de integrantes do grande coletivo que terminou por assinar a obra-instalação-assalto nas salas do Mupa, Camila dos Santos (Kanhgág) diz que a retomada, para ser bem-feita, demandaria a destruição do museu, o que nos leva de volta à pergunta que dá título ao presente texto: é possível refundar a narrativa hegemônica da arte brasileira? De acordo com Denilson Baniwa, a fala de Camila dos Santos “é um sentimento partilhado entre povos do mundo inteiro. Reconstrução dos acervos a partir, inclusive, da presença de indígenas pressupõe construir como era antes, ou seja, não muda muita coisa. O nosso pensamento sempre foi de refundar essas instituições, o que pressupõe colocar abaixo o prédio e reconstruir desde a fundação. Só com a refundação é que se poderia criar uma estrutura sociopolítica ou etnopolítica favorável à presença indígena. Sem isso, não é possível ‘refundar’. O que estamos fazendo com a não destruição do museu (porque derrubar é usado aqui, logicamente, mais no sentido metafórico) é ‘derrubar para reconstruir do zero’ metaforicamente, ou seja, agora com a nossa presença e olhar juntos. Botar abaixo é encontrar juntos o que sobra dessa ruína e pensar o que serve e o que não serve numa relação institucional que atende e respeita a memória dos povos originários”.