O fim da cidade de Porto Alegre é o início do trabalho fotográfico de Erick Peres. Nascido e crescido na Vila Ipê 1, Zona Leste de Porto Alegre, o artista de 28 anos ouve desde cedo que o lugar onde mora é distante, difícil de chegar, perigoso. Por ficar na divisa com outro município, há quem questione até mesmo se a região faz parte da cidade. A referência de quem fala, no entanto, é sempre a mesma: o centro.
Foi em 2019 que Erick começou a fotografar o bairro onde cresceu. Com uma câmera que se colocava sempre de baixo para cima, suas imagens enfocavam grandes estruturas de concreto, como torres de energia fincadas nos quintais das casas da ZL. Quase sempre cinzas, elas traduziam a bruma típica de quem vive perto do morro, mas, com o tempo, os tons opacos cederam lugar ao vermelho, o azul e o amarelo. Cores vibrantes que marcam A Zona Leste Não É um Lugar Tão Distante Assim, série que segue fotografando até hoje.
Converso com Erick em um domingo nublado e chuvoso, típico de suas primeiras paisagens. A Vila Ipê 1 está pouco movimentada e, em vários momentos, apenas eu e ele caminhamos pelas ruas. Em um passo alternado entre a pressa e a contemplação – porque lá, segundo o fotógrafo, todo mundo sabe que não se pode encarar nada nem ninguém demoradamente –, passamos pelos lugares de sua infância e que estão agora retratados em suas imagens. Na Tenda do Futuro, onde Erick comprava cigarros avulsos desde adolescente, vemos de relance o próprio Futuro, dono do bar que leva o seu nome e de onde, atrás do balcão, ele assistiu as crianças crescerem, tomando o lugar dos pais e avôs nas mesas do boteco.
No rastro da caminhada, ficam para trás a encruzilhada onde Erick brincava de menino; o Bar da Gorda, onde ele e os moleques compravam bombinhas para brincar de estourar, e a Tuka, palco dos bailes funk e onde o fotógrafo estava até a madrugada anterior, no show do rapper Pose do Rodo. Mas é na igreja – em que ele nunca entrou –, em frente a uma santa com os braços abertos para nós, que ele se detém para relembrar a primeira vez que ouviu rap.
Por acaso ou destino, o trecho do Racionais MC’s começou a tocar em uma fita que deveria ser usada para gravar uma versão de música do Roberto Carlos: “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá.” Dona Nanisa, mãe de um dos amigos mais próximos de Erick, que encomendou a gravação, soltou logo um “que coisa do diabo”. Mas essa coisa do diabo, para Erick, serviu para mostrar que tinha gente que criava a partir de realidades parecidas com as dele, “caras falando umas paradas que a gente também vive aqui”.
PELA PRIMEIRA VEZ
Entre o subir e o descer no asfalto, um menino se escora em uma parede com duas tonalidades de verde e nos encara de frente – a mão na cintura como a de um modelo que posa para a câmera. Mas esse menino de vermelho, imortalizado através das lentes de Erick, tão vivo na minha memória – já não está mais ali. Sua presença contrasta agora com a parede verde inabitada. A praça ao lado também está vazia com uma única trave. As lojas vizinhas, de portas fechadas, com destaque para o letreiro vermelho em letras garrafais do supermercado MOTTA.
Aquele lugar já não é mais o ponto de encontro da molecada do bairro. Desde que um carro subiu o morro atirando, à luz do dia, em uma retaliação entre gangues rivais, não há mais pelada, churrasco, pagode. Na chacina que ocorreu em 2016, a Vila Ipê perdeu cinco jovens, entre eles uma amiga de Erick que recém havia se tornado mãe. “Fui acostumado a olhar para as pessoas como se pudesse sempre ser a última vez. Em muitos momentos, não pude me despedir de amigos que morreram”, lembra.
É por esse motivo que, no seu trabalho como fotógrafo, ele procura realizar uma inversão: quer olhar para o bairro e para as pessoas que nele habitam como se os estivesse vendo pela primeira vez, mesmo quando seus retratados são amigos próximos. “Pô, Erikão, quando é que vou aparecer em uma foto tua?”, reclamam alguns conhecidos, chamando o artista pelo apelido que ganhou em razão dos seus dois metros de altura.
Além das imagens, desde 2021, o artista passou a incorporar em seu trabalho mensagens típicas do cotidiano da ZL. Na exposição do Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, em Belém, Erick exibiu prints de conversas lado a lado com fotografias. “Os guris mandam mensagem dizendo ‘ó, deu tiro’. Ou então é a mãe pedindo: ‘Avisa quando tiver voltando pra gente olhar no portão’. São diálogos que a gente tem de forma muito naturalizada e demorei muito tempo para perceber que não deveria ser normal”, explica.
BAIRRO COMO ATÊLIE
Quando fotografa o bairro, Erick percebe que, apesar de ser ele quem ficou conhecido como artista, as pessoas dali estão criando o tempo todo. É por isso que, em resposta ao pedido de uma galeria de São Paulo para que filmasse seu ateliê em um vídeo de dois minutos, ele respondeu que seu espaço de criação era a ZL, algo impossível de traduzir em um espaço de tempo tão curto.
O curta-metragem Fim da Cidade, lançado por ele em julho deste ano, partiu dessa inquietação. Quase um desdobramento da série A Zona Leste Não É um Lugar Tão Distante Assim, o filme mostra personagens importantes do seu cotidiano, marcando a primeira vez que Erick aparece também nas imagens. Com duração de 20 minutos e produzido por uma pequena equipe de amigos, o curta é narrado por sua mãe – para falar do bairro, ela lê um texto escrito pelo artista que mistura passado e presente, realidade e ficção.
Sempre com uma guia de Exu no pescoço, e um cigarro Camel Azul na mão, Erick conta que fotografar, para ele, só faz sentido se o trabalho também ecoar em quem vive na ZL. “Gosto muito dessa coisa de tornar sagrado o mundano e por mais que tenha uma complexidade que possa ser sacada em uma exposição, eu sei que, se eu mostrar pros meus amigos, eles também vão entender.”
O trânsito entre o mundo da rua e o mundo da arte, Erick realiza muito bem. Está refletido não só nas suas imagens, como também em sua trajetória. Na mostra Terra em Tempos, aberta em março deste ano, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ele expôs duas obras que funcionam como uma provocação às noções de acesso à moradia. A complexidade dessas obras – que ele mesmo reconhece – aparece na análise de Natasha Felix, assistente curatorial do MAM. “O trabalho do Erick cabe na ideia de ruína da linguagem. É um contragolpe: você pega o que falta e constrói em cima disso uma outra coisa que, na verdade, coloca luz sobre a falta. Ele traz um lugar de sutileza, que convive com uma violência silenciosa”, explica.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Outro tema presente em seu trabalho é a paternidade. Antes de fotografar o bairro, Erick se debruçou sobre sua própria história na série O Choro Pode Durar uma Noite, Mas a Alegria Vem Pela Manhã (2016-2019), na qual investigou o desaparecimento do pai nas imagens do álbum de família. Durante quatro anos, ele guardou a pesquisa para si, até ouvir de um amigo próximo, Adriano, que aquela história não era só dele.
Na ZL, são muitos os filhos de pais que sumiram. Filhos que, agora, tentam exercer a paternidade de forma diferente. Em um dos retratos da série, Adriano nos olha com um sorriso tímido, segurando a filha no colo. A fotografia, que mostra também a imagem dos dois refletida na tela da televisão de tubo, reafirma uma constante no trabalho de Erick: o enquadramento dentro do enquadramento.
Os comentários “dos guris” funcionam, para Erickão, como guias. De Luís, outro amigo de infância, ele ouviu que ainda se parecia com um moleque de quinze anos. Levou tempo para entender que, quanto mais se distanciava da ZL, mais retornava a sua origem. O pensamento ainda é o mesmo, os gestos também. Desde as mãos em hang loose que se erguem para tirar uma foto e o cabelo que continua raspado e platinado até a maneira de caminhar com desconfiança e a dificuldade para se abrir com quem é de fora dali.
“A gente tem um jeito de construir um muro dentro da gente, de se tornar uma pessoa completamente fechada. Quando tu vê aqueles moleques chucrão, de cara séria, é só insegurança, medo. É todo mundo muito sensível. Tão sensível que se protege dessa forma”, explica o fotógrafo que se mudou para São Paulo há cinco meses e resolveu voltar sua câmera para os “moleques” de hoje. Meninos que, como ele, sabem que a Zona Leste não é um Lugar tão distante assim.
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Anna Ortega participou do Laboratório de Escrita Editorial da seLecT, na plataforma Zait. É fotógrafa, artista visual e estuda jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)