Em 2021, o Instituto Inhotim descobriu que artistxs negros importam. De mãos dadas com todas as outras instituições do Brasil e do mundo, Inhotim embarcou na empreitada da reparação história, correndo contra o tempo para ninguém perceber, ou falar sobre, a quase inexistência de artistas negros em seus 140 hectares mineiros. Como solução, a fazenda anuncia, no final de 2021, a parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) para realizar, ao longo de dois anos, uma série de mostras em homenagem ao legado e trajetória de Abdias Nascimento (1914-2011).
Dividido em quatro exposições de longa duração, que a instituição denominou de “quatro atos”, o projeto é interessante e urgente, coloca nomes e assuntos inéditos no radar do sistema da arte, e vem embasado na seriedade da pesquisa do Ipeafro e na atuação precursora do curador Deri Andrade na criação da plataforma Projeto Afro, um mapeamento da arte produzida por criadores negros no Brasil, que atua como curador assistente em Inhotim desde o início do projeto de parceria entre o instituto e o Ipeafro. Até aqui, tudo ótimo. Porém, após os bem-sucedidos Ato 1 – Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra – e Ato 2 – Dramas para Negros e Prólogo para Brancos, surge a exposição intermediária Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, inaugurada em 19/11 na Galeria Lago.
Com título fazendo alusão ao jornal Quilombo, publicação coordenada por Nascimento entre 1948 e 1950, a mostra propõe um resgate dos conceitos por trás das 10 edições lançadas. A curadoria busca estabelecer diálogos entre temas levantados pelo jornal, como a representação e identidade da figura do negro na sociedade da época, e a produção de jovens artistas brasileiros, trazendo aquisições recentes pelo Inhotim de obras de Panmela Castro, Mulambö, Antonio Obá, Wallace Pato, Desali, Paulo Nazareth, Kika Carvalho, Zéh Palito e Maxwell Alexandre, que tem se afirmado como uma das principais vozes da arte hoje.
O artista carioca ganhou repercussão nacional após sua primeira mostra solo institucional, Pardo É Papel, no Museu de Arte do Rio, em 2019, que circulou em diversas instituições de peso dentro e fora do Brasil. A série, de mesmo título, que centraliza a exposição, foi produzida ao longo de dois anos e resulta da pesquisa pictórica de Maxwell sobre o papel pardo, suporte que o artista deixa aparente como forma de confrontar o conceito neocolonial de “pardo” com as representações de pessoas negras empoderadas que figuram em suas pinturas. Mais recentemente, Alexandre vêm se dedicando a um desdobramento da série, sob o título Novo Poder, em que discute a obrigatoriedade (ou não) de um artista negro tematizar em suas obras a experiência do negro na sociedade em que vive. “Eu sempre fico constrangido com exposições temáticas sobre o negro. […] Eu não nego a importância de tematizar e falar sobre ser negro e tudo que isso implica. Eu não teria como fugir disso de qualquer forma”, afirma Maxwell em publicação no seu Instagram, em 18 de novembro. E é aí que o problema começa.
OBRA VENDIDA GANHA UMA OUTRA VIDA?
Quando foi informado sobre a realização da exposição, não constavam maiores detalhes sobre o contexto em que sua pintura seria exibida. Em post publicado em suas redes sociais no dia da inauguração, Alexandre afirma que se sentiu constrangido ao ver a comunicação final da mostra, sobretudo pela abertura simultânea da expo O Mundo É o Teatro do Homem, na Galeria Fonte. “Eu repudio veemente a inserção de minha obra sem titulo da série Novo Poder, 2021, na exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, que inaugura hoje em Inhotim. (…) 34 pretos sob um título que sugere a abordagem de sonhos e problemas DO NEGRO, enquanto três brancos [expõem] sob um título com ênfase no universal, no mundo e na humanidade. (…) O que temos é mais uma vez o negro sendo tratado antropologicamente por uma instituição branca com agentes brancos tomando decisões. (…) Vocês vão estar me fazendo um grande favor se decidirem retirar minha obra dessa exposição.”
O artista pediu que a sua obra Sem Título (2021), da série Novo Poder, fosse retirada da mostra, ouviu “explicações da instituição, muitas delas plausíveis, fundamentadas”, mas que não foram suficientes. “Ainda não gosto da decisão final, ela ainda me constrange”, escreve. A única resposta oficial que o artista recebeu do instituto foi por meio de uma matéria, publicada em 22/11, no Jornal O Globo, em que Lorena Vicini, gerente de comunicação do Inhotim, diz: “Foi enviado um e-mail para ele no dia 24 de agosto, tanto com um pedido de permissão como com uma carta convite que trazia detalhes sobre as duas exposições. Ele retornou no dia 5 de setembro dando ‘OK’, mas falando que não poderia comparecer à reabertura por conta de um compromisso em sua agenda”.
Julieta González, diretora artística de Inhotim, explica, na mesma entrevista ao jornal, que a obra de Alexandre que integra Quilombo foi comprada pela instituição mineira, e que a decisão de retirá-la da mostra demanda tempo. “É uma obra da nossa coleção, essa é uma conversa muito mais longa”, diz. “Estou trabalhando em Inhotim há dez meses e neste período não aconteceu nenhuma situação desse tipo”, informa, e prossegue, em relação à retirada: “É uma conversa muito mais profunda, de várias partes. Quando um artista aceita vender uma obra para uma coleção, ele tem que entender que essa obra ganha uma outra vida. E ele não pode controlar essa vida nesse sentido. Eu que já trabalhei em muitos museus no mundo, digo que é muito difícil que um artista decida a política curatorial de uma instituição. Isso não acontece em nenhum lugar”.
DESÇAM MINHA OBRA, RETIREM O MEU NOME! EU NÃO FAÇO PARTE DESSE SHOW EM INHOTIM!
A resposta de Maxwell Alexandre, que já vinha criticando a falta de transparência da instituição em seus processos curatoriais, veio no mesmo dia, claro, pelas redes sociais: “Essa matéria com, finalmente, a resposta de Inhotim me soa mais como: tenho vários amigos negros, minha colaboradora doméstica é negra, é tudo família! Vou nem falar muito sobre isso depois de tudo que publiquei até agora. Leiam vocês a matéria na íntegra e tirem suas próprias conclusões. Agora, se tu é preto e acha de boa essa resposta de Inhotim através da imprensa, mano, realmente não estamos na mesma. Foi mal!”, escreve o artista em post de 30/11.
E continua: “DESONESTOS! No e-mail que me mandaram no dia 24 de agosto, que a minha equipe respondeu (no dia 5 de setembro, como diz na matéria do Globo), não falava sobre o programa completo, nem na carta falava sobre a exposição O Mundo É o Teatro do Homem. Inclusive a carta termina dizendo que em breve eles dariam mais informações, o que nunca aconteceu. Eu só fiquei sabendo do programa completo com a comunicação já lançada. Se Inhotim tivesse sido transparente desde o início, eu teria me posicionado no mesmo momento e nada disso seria público, se me respeitassem. Nunca me disseram que minha obra e o conceito de Novo Poder seriam centrais nessa exposição. Eu não concordaria se soubesse disso desde o primeiro e-mail. Vocês ocultaram informações muito importantes. (…) Desçam minha obra, retirem o meu nome! Eu não faço parte desse show em Inhotim!”
“New Power enfoca a ocupação física – e a interrupção – da dinâmica de poder em espaços de arte contemporânea predominantemente brancos.” (…) “Alexandre descreve o pardo como uma categoria racial ambígua usada para embranquecer e banalizar a identidade negra no Brasil; nessa categoria, uma pessoa é considerada “menos negra, mas ainda não branca”. Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil evitou leis segregacionistas durante o século 19 e, em vez disso, promoveu princípios eugenistas para embranquecer as populações sob o pretexto de tolerância racial. O termo pardo é um produto dessa história pesada”, prossegue a curadora.
O “novo poder”, portanto, significa tomar a arte contemporânea e o capital intelectual a ela associado como plataforma de amplificação da luta antirracista e da justiça social, contrapondo-se ao poder vigente, daí o “novo”. A maior parte das obras já produzidas desta série retrata visitantes negros em espaços expositivos (de poder), contemplando obras que são reiteradamente abstratas, por exemplo, a Monalisa de Da Vinci é substituída por uma folha de papel pardo emoldurada em citação do videoclipe de Beyoncé e Jay-Z.
“Nesses momentos de observação autoconsciente do visitante junto aos temas de Alexandre, ele cria uma mise-en-abîme, ou técnica formal que reproduz uma cópia dentro de uma cópia. Neste caso, é uma galeria dentro de uma galeria, uma pintura dentro de uma pintura, um público consciente de outro público, vigiado por guardas de museus humanos e guardas de museus representados, cada um vigiando seus respectivos públicos sentados, posando, fotografando e contemplando a arte. A maioria das figuras de Alexandre nestas pinturas volta-se para dentro, com a exceção ocasional de um vigilante que observa a materialidade das obras em papel pardo, tal como o faz um visitante. Ao ver essas obras, visitantes e figuras pintadas compartilham espaço como um público coletivo”, reflete Alessandra Gómez.
Nada mais distante da concepção que Inhotim deu ao conceito, ao transformá-lo em título de um dos núcleos da exposição Quilombo. O texto de parede, que traz o infeliz subtítulo “Reformulando uma Vanguarda”, informa que “mesmo lançada em um período em que o termo ‘empoderamento’ ainda era um pensamento distante, Quilombo foi uma publicação para ‘negros como modeladores de suas próprias condutas’. Um dos temas debatidos em suas páginas trazia o negro enquanto agente propositor das artes e da cultura no país. Esse mesmo interesse, por sua vez, é observado nas narrativas de artistas contemporâneos. Ao propor uma nova inserção ideológica dentro desses circuitos, essa produção tem constituído uma vanguarda que dita outras metodologias, marcadas por uma entrada irrevogável nesses espaços”. Inhotim não entendeu a proposição de Alexandre, nem parece ter se interessado em pesquisar a fundo os múltiplos significados da obra que adquiriu para seu acervo. Apropriação indébita, falta de transparência, e desrespeito ao artista que solicitou inúmeras vezes que a obra fosse retirada da mostra. A pergunta que fica é: por que não retiram a obra, por que não se retratam, por que insistem em fazer o jogo do colonizador?
NOTA DE EDIÇÃO
Este artigo foi editado em 5/12/22 para refletir as seguintes correções:
No parágrafo 4, “papel kraft” foi substituído por “papel pardo”, que é o tipo de papel utilizado nas obras de Maxwell Alexandre;
No parágrafo 6, a primeira declaração atribuída no texto original a Julieta González é, na verdade, uma afirmação de Lorena Vicini, gerente de comunicação do Inhotim, que concedeu entrevista junto de González ao Globo, e o jornal creditou erroneamente a fala à diretora artística;
No parágrafo 7, onde se lia “dando a entender que, por isso, não deve retirá-la da mostra”, corrigimos a frase, substituída por “explica que a decisão de retirá-la da mostra demanda tempo”, para conferir maior exatidão ao que a curadora afirmou (e que foi suprimido na reportagem ao jornal), ou seja, que a decisão sobre remover a obra envolvia diferentes conversas entre a equipe, não cabendo a uma única pesssoa decidir, e que estavam em meio a este processo interno (de fato, no dia 2/12, o instituto anunciou que a obra vai ser retirada);