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Intervenção de Cauê Alves, do Coletivo Projetemos em Belém (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 27/07/2020 - 8:26
Escrituras urbanas
Com a Amazônia em chamas e recordes de mortes pelo coronavírus, artistas reinventam atos, poéticas e estéticas de protesto
Paula Alzugaray

Entre março e maio de 2020, no início do período de isolamento social para conter o contágio do coronavírus, a crise brasileira atingiu um status tríplice – sanitária, política e econômica – sem precedentes. No fim de maio, a América Latina tornou-se o novo epicentro da pandemia, com o Brasil ostentando recordes macabros de mortes diárias, de transmissão do vírus e de desmatamento da Amazônia. 

Com a extinção e o enfraquecimento de mais de 50 órgãos de participação social, no último ano, consolidando a aversão do governo federal aos ativismos sociais, a sociedade busca reinventar suas formas de resistência e manifestação. As estéticas de protesto, que historicamente passam pelo panfleto, o lambe-lambe, a faixa, o cartaz, a bandeira, a pichação ou o jornal, ganharam nestes três primeiros meses de isolamento social novas e contundentes expressões.  

Pano Preto na Janela (2020), de Julio Villani (Foto: Cortesia do artista)

Porrada com luva de pelica
Incitado pela campanha difundida em redes sociais – Pano Preto na Janela pelo Fora Bolsonaro! –, Julio Villani manifestou seu luto pelos desmandos da política brasileira, mas não da janela de sua casa-ateliê em Paris, onde reside há 38 anos. O artista pendurou seus panos pretos entre as janelas da fachada da Embaixada do Brasil na capital francesa. Em cada uma das sete faixas, uma mensagem de desagravo e indignação. A primeira reproduz o texto do mandatário nacional diante dos números crescentes de mortes no País, “e daí?”, contra um fundo de cruzes vermelhas. Em outra, uma arma atira contra as palavras dignidade, justiça, respeito, memória, integridade. Os atentados às etnias indígenas são denunciados numa faixa em que nomes de grupos ameaçados são emaranhados em labaredas ascendentes. A última, uma bandeira branca, afirma: Um Outro Brasil É Possível.

Julio Villani elabora uma pesquisa artística que integra elementos das tradições construtivista, neoconstrutiva e popular. Dada a sofisticação da fatura, a intervenção Pano Preto na Janela (2020) não poderá ser tachada de “vandalismo”, como se costuma dizer de muitas manifestações políticas e estéticas que têm a cidade como suporte ou palco. A obra entra para a história da arte de protesto.

Ativismos projetados
Na ausência da rua para expressar o descontentamento com o estado das coisas, o ativismo literalmente sobe pelas paredes e toma as empenas dos edifícios das cidades. Praticados por artistas isolados em seus apartamentos, as projeções de textos e imagens mobilizam um eficiente sistema de comunicação, dentro do âmbito do que Giselle Beiguelman chamou de “estéticas do confinamento”, em artigo da série Coronavida, publicada entre março e abril no site de seLecT.

Formado por mais de 100 VJs de todo o País, o coletivo Projetemos autodefine-se como uma rede mundial de projecionistas livres, que transcende fronteiras geográficas e envolve ações simultâneas em várias cidades. A linguagem encontra antecedentes na Homeless Projection, de Krzysztof Wodiczko, ou nos slogans da série Truisms, de Jenny Holzer. Mas, nas sequências de slides projetados, essa nova “ágora dos tempos da coronavida” descortina crônicas da vida brasileira, em abordagens críticas que complementam as notícias de jornal sobre a catástrofe nacional de todos os dias. 

Amazônia Aumentada (2019-2020), de Roberta Carvalho (Foto: Cortesia da artista)

Outro projeto de ativismo projetado é Amazônia Aumentada (2019-2020), da artista paraense Roberta Carvalho, residente em São Paulo, onde desenvolve um mestrado em artes na Unesp. A paralisação das demarcações de territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, somada às queimadas na Amazônia e os processos etnocidas promovidos pelo governo federal, levou a artista a iniciar, durante a quarentena, uma série de projeções de sua pesquisa com realidade aumentada sobre imagens que captou ao longo de uma década em regiões ribeirinhas do Rio Guamá, no Pará.

Série Você Está Aqui (1997-2020), de Tadeu Jungle (Foto: Cortesia do Artista)

Poemas políticos

Série Você Está Aqui (1997-2020), de Tadeu Jungle (Foto: Cortesia do Artista)

O poema vivo mutante VOCÊ ESTÁ AQUI, de Tadeu Jungle, nasceu como um pequeno adesivo, em 1997, e, desde então, vem se deslocando por diferentes mídias e suportes, assim como um texto se movimenta em um cartaz de manifestação de rua. Além de migrar de um suporte a outro – o último deles foi a empena lateral do MAC-USP –, o poema ganha elasticidade interna e é transmutado de acordo com os acontecimentos do momento. Na ocasião do isolamento social e dos panelaços contra o governo Bolsonaro, o slogan circulou pelas redes sociais em diferentes composições: foi infestado pela representação gráfica do coronavírus, e foi para as janelas. A mais recente versão, em formato de QR Code, leva o texto para a dimensão da realidade aumentada. É só apontar a câmera do celular (e ter uma conta no Facebook) para trazer o poema VOCÊ ESTÁ AQUI para a palma de sua mão.

Desde o início do confinamento, o poeta Lucas Lins publica um poema por dia em suas redes sociais, como registro da vida durante a quarentena. Morador de Cidade Tiradentes, distrito no extremo leste de São Paulo e um dos maiores conjuntos habitacionais da América Latina, Lins parte da experiência do isolamento social para discutir a violência do estado, questões raciais e desigualdade econômica, que se tornaram ainda mais dramáticas com a circulação do coronavírus. O poema aqui selecionado serve como antídoto contra os discursos de ódio que temos tido de tragar. 

Poesia Pra Matar O Corona (2020), de Lucas Lins (Foto: Cortesia do artista)

Quarenta instruções de performance foram elaboradas pela artista e poeta Katia Maciel para as infindáveis horas de uma quarentena que não cessou em seu quadragésimo dia. Loopsdequarentena apropria-se de 40 frames de filmes – talvez em remissão à sugestão de rever os clássicos, depois que o mundo parou? Já os textos que acompanham as imagens são instruções poéticas de como deixar que o conteúdo cinematográfico se espalhe pela casa, desarrumando camas, esparramando cobertas, criando asas. Feitos para ser repetidos de forma cíclica e contínua, quando o isolamento social entrar em seu segundo ou terceiro ciclo de quarentena, os Loopsdequarentena convidam à dança, ao desenho e ao absurdo. Conduzem ao labirinto em que se tornou a vida doméstica, que deixou de ser prosaica com o advento da pandemia…

Frames do ensaio Loopsdequarentena (2020), de Katia Maciel (Foto: Cortesia da artista)