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Retrato de Madame Dupin (1947), de Leonora Carrington (Foto: cortesia Bienal de Veneza)
Postado em 21/04/2022 - 10:30
“Está na hora de você reconstruir o mundo”
Não limitar Leonora Carrington e Bispo do Rosário a suas patologias pode estimular um florescimento e redirecionamento na leitura de suas obras

Desde a década de 1980, o artista pernambucano Paulo Bruscky coleta e coleciona objetos e imagens encontrados, compondo a série Artistas Achados e Apropriados.  Alguns deles já foram expostos em São Paulo, no Sesc Belenzinho, em 2016, e em versão reduzida, em 2021, na sede nova-iorquina da Galeria Nara Roesler. Cada peça coletada faz referência a uma obra ou artista de peso da arte contemporânea e moderna: uma moldura de plástico com relevos do Mickey Mouse está para Nelson Leirner assim como um pedaço cilíndrico de madeira branca está para Sergio Camargo, e assim por diante, formando uma pequena galeria de vulgarizações no sentido estrito: joga-se para o mundano o mesmo olhar que costuma ficar reservado a objetos com status de arte, o que acaba sugerindo que os originais têm mais coisas em comum com dejetos do que se gostaria de admitir. Dentre as coletas de Bruscky, chama atenção a que representa Arthur Bispo do Rosário (Sergipe, 1933 – Rio de Janeiro, 1989).

Uma jaqueta surrada, trabalhada, mas não luxuosa, com as cores do bordado patchwork já um tanto desbotadas e, assim como os materiais usados pelo próprio Bispo ao longo da sua vida, resgatada do descarte alheio. Espelhando o procedimento de criação da obra e do artista retratado, foi no inventário de objetos rejeitados que surgiu um potencial de ignição. Esse potencial, em Bruscky, aponta para a história da arte; em Bispo do Rosário, para sua cosmogonia espiritual. Assim, a atribuição das criações e da visualidade exclusivamente ao seu quadro esquizofrênico, o que é feito com frequência, é um reflexo descuidado. Independentemente das motivações e da ciência disto, Bispo está em sintonia com as discussões estéticas que vinham se consolidando pós-década de 1960, como a arte pop e o novo realismo, influenciando artistas como o próprio Bruscky.

Documentação da obra de Arthur Bispo do Rosário, Museu Bispo do Rosário – Arte Contemporânea, Rio de Janeiro.

A ação repetitiva, persistente, alheia ao juízo de inutilidade ou inexplicabilidade: tudo isso é encontrado em várias outras ações criativas ou mesmo inerente à prática artística. Quando ela é atravessada pelas notícias biográficas, o enfrentamento e a fruição da visualidade que é produzida evidenciam dificuldade de se desvencilhar de cacoetes como a procura, dentro das obras, de evidências para loucura, seja ela expressão de um gênio puro, bruto e desenfreado, seja justificativa para a criação de personas como a do artista-louco (termo retirado de artigos científicos ou críticos sobre Bispo).

Trajeto institucional
Arthur Bispo do Rosário figura como tema de Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto, a primeira grande exposição do ano do Itaú Cultural, em São Paulo. A curadoria é de Ricardo Resende e Diana Kolker, respectivamente, diretor e curadora pedagógica do Museu Bispo do Rosário (mBrac), em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. A abertura da exposição em 18/5 coincide com o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, data que relembra a atualidade do debate sobre saúde mental e rememora as conquistas do movimento que reivindicou, na segunda metade do século 20, o fim do isolamento dos pacientes, fim dos eletrochoques e dos manicômios.

Resende explica que a exposição é composta de três núcleos: inicialmente, a obra de Bispo do Rosário organizada segundo seu ambiente original, isto é, sua cela na Colônia Juliano Moreira (CJM), onde morou a maior parte da sua vida. Depois, o entrecruzamento da visualidade de Bispo com artistas contemporâneos que produziram obras com relações plásticas ou influências diretas dessa construção de mundo, como Carmela Gross, Leonilson, Rosana Paulino, Monica Nador e Jaime Lauriano. Por fim, o terceiro núcleo articula as experiências modernas com a arte manicomial, com nomes como Antônio Bragança, Almir Mavignier e Flávio de Carvalho.

Segundo Resende, não se deve perder de vista as condições que desencadearam a obra de Bispo, em um deslocamento do contexto de produção visual feita dentro do manicômio, ou mesmo da sua situação de vida vulnerável, em meio ao racismo e à pobreza. Nessa chave, é importante lembrar que as aproximações da figura de Bispo do Rosário e do seu acervo ao meio artístico são distantes das suas intenções de criação: seus trabalhos tinham finalidade ritualística. Assim, o valor sagrado cede lugar ao valor artístico. Idealizado para a ocasião da sua ascensão aos céus, O Manto da Apresentação (título atribuído) é sua obra mais icônica e foi bordada e trabalhada ao longo de décadas na CJM, a partir de um cobertor. “Quando eu subir, os céus se abrirão e vai recomeçar a contagem do mundo. Vou nessa nave, com esse manto e essas miniaturas que representam a existência. Vou me apresentar”, dizia.

A obra de Bispo do Rosário só veio a público em 1989, logo após sua morte. A função religiosa dos objetos significava para ele a impossibilidade de se separar deles, e foi assim que sua obra permaneceu conservada ao longo dos anos. Depois de sua morte, os trabalhos foram abrigados pelo então Museu Nise da Silveira, hoje Museu de Imagens do Inconsciente (MII, Rio de Janeiro). Seis anos mais tarde, em 1995, Bispo já estava entre os representantes do Brasil no pavilhão do País na Bienal de Veneza.

A ligação que existe entre obra e papel institucional nas discussões sobre saúde mental tem uma importância grande no caso de Bispo do Rosário; foi a existência do debate antimanicomial que tornou a sobrevivência da sua obra possível e hoje a existência dela atrai atenção para o debate. Dessa forma, acervos como os de Bispo e outros ajudam a dar visibilidade às questões adjacentes ao seu trabalho e instituições partem desse vento favorável e usam suas infraestruturas, investimentos e patrimônios para dialogar e oferecer retorno para a sociedade, extrapolando questões sobre arte.

Verso do Manto da Apresentação de Arthur Bispo do Rosário; à direita, Escovão e Vassouras (títulos atribuídos)

Um dos estopins para o início da obra de Bispo do Rosário foi a escuta de vozes que diziam: “Está na hora de você reconstruir o mundo”. Um mundo, segundo relatos, utópico, sem miséria, fome e doenças. Nesse sentido, os projetos visando o fortalecimento de ações no campo da saúde mental expressam o sucesso das suas crenças messiânicas: a influência da sua obra no Brasil e no mundo de fato está girando engrenagens em favor de discussões e ações nessa reconstrução de mundo.

Escritos de Fanon 
A reforma psiquiátrica brasileira bebeu na fonte da reforma psiquiátrica italiana e as práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que propôs uma reviravolta no tratamento de seus pacientes, partindo de premissas como o acolhimento, reintegração social e serviços de saúde ligados às comunidades locais. Como parte da fundamentação de Basaglia, por sua vez, são citados os escritos do psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1925-1961), que incluiu na equação de reavaliação dos tratamentos violen- tos dos manicômios os aspectos raciais e coloniais da sociedade europeia, onde trabalhava. Nos textos brasileiros de articulação da Reforma, no entanto, Fanon não é citado.

Subjetividade e Autonomia
A 59a Bienal de Veneza abre suas portas em 23/4. O Leite dos Sonhos (Il Latte del Sogni / The Milk of Dreams) intitula um livro escrito pela artista inglesa Leonora Carrington, ligada ao surrealismo nos anos 1930, e é o tema escolhido para esta edição da Bienal. Na lista de 213 artistas participantes paralelamente aos pavilhões nacionais, alguns nomes travam uma relação magnética entre si, que se nota pelas datas de nascimento próximas dos anos 1900, no eixo da Europa Ocidental: Carrington, Djuna Barnes, Ovartaci, Nadja, Toyen… Todas mulheres do modernismo cujas obras vêm sendo revisitadas e reabilitadas. Em matéria de estigmatização, essas artistas a conheceram em vida por mais de um motivo, mas a patologização ocupa lugar alto no pódio, fosse ela clínica ou atribuída pelos homens próximos, sob o grande guarda-chuva da histeria, a explicação instantânea para a desobediência feminina. Duradouros apagamentos históricos, atribuição de rótulos de arte menor, eclipsamento por seus pares ou amantes masculinos e internações em manicômios são alguns dos palpites seguros no bingo biográfico dessas mulheres que cultivavam produções artísticas na primeira metade do século 20, nos centros do capitalismo. A recuperação dessas obras na Bienal de Veneza vem como consequência de um processo de revisão das narrativas de musa louca metida a artista. 

Kate Zambreno, pesquisadora e autora dos EUA, publicou, em 2012, um longo levantamento das trajetórias dessa geração de mulheres no livro Heroines (MIT Press). Segundo Zambreno, o silenciamento das vozes artísticas femininas no modernismo começava muitas vezes dentro dos seus relacionamentos amorosos, não raro com homens artistas. Nessas dinâmicas prevalecia a pressão sistemática para que as autoras abandonassem suas ambições e continuassem no papel subalterno de inspiração aos gênios do entorno, isto é, sendo personagens para as obras de seus cônjuges, caladas. Nadja é sempre de André Breton, não dela própria; ou assim foi até agora. 

No texto de apresentação da 59a Bienal, a curadora Cecilia Alemani coloca a transformação como o principal eixo conceitual da mostra, e dela ramificam temas como “a representação de corpos e suas metamorfoses, a relação entre indivíduo e tecnologia, a conexão entre corpos e a Terra”. Essa teia de articulações é estruturada sobre uma galeria de autoras mulheres de vanguarda. “Os trabalhos dessas mulheres do início do século 20 – exibidas em um grupo que lembra as exposições surrealistas – sintetizam um domínio do maravilhoso, onde anatomias e identidades podem se deslocar e alterar, seguindo o desejo por transformação e emancipação”, aponta Alemani. 

A emancipação era almejada por essas mulheres tanto em termos de subjetividade e criação como em sentido muito pragmático, de autonomia de suas vidas. Em especial para a geração surrealista, a relação com instituições psiquiátricas era violenta e os valores patriarcais de submissão em ressonância com as concepções comportamentais da época produziam opressões grotescas. O isolamento necessário para a escrita de homens era suficiente para configurar um distúrbio em mulheres, vide Virginia Woolf, que foi aconselhada a parar de escrever. Em certos contextos também eram recomendados os eletrochoques e a internação, aos quais foi submetida Leonora Carrington. Ela e Bispo do Rosário tinham ainda a camada do contato com temas espirituais, que podia agravar o tratamento já violento: Bispo em uma chave messiânica, Carrington em uma proximidade com o ocultismo e o misticismo. Na Europa e no Brasil, seria necessário um processo de décadas de reavaliação de toda a brutalidade, considerada até então tratamento eficaz, e o desenvolvimento de uma nova abordagem da saúde mental. 

Nesse ponto, a ideia de alienação, um sinônimo antigo para loucura e nome abandonado da Colônia Juliano Moreira, coloca em rota convergente esses mundos tão distantes. A alienação enquanto privação e deslocamento. A elaboração visual de uma imaginação muito particular, ávida por liberdade para florescer tanto na forma como na substância, demanda acolhimento. Kate Zambreno cita Agnes Richter, uma costureira austríaca que, durante sua internação, passava seu tempo bordando textos tão densos nas jaquetas de seus uniformes que se tornavam ilegíveis. Uma articulação de palavras e plasticidade que lembra tanto Bruscky como Bispo. Ao pesquisá-la, surgem alguns rótulos como artistas visionários ou artistas marginais. Libertar essas personalidades de suas patologias, e as obras, dessa âncora de leitura, pode estimular um novo florescimento na leitura desses trabalhos e na relevância desses nomes.

Obra sem título da artista dinamarquesa Ovartaci em cartaz na 59a Bienal de Veneza