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Antonio Manuel (Foto: Bia Caillaux)
Postado em 23/11/2015 - 11:04
Exercício experimental da cladestinidade
Exposto no Pavilhão Brasileiro da 56a Bienal de Veneza, com a instalação Nave, Antonio Manuel fala sobre um momento fundador de seu trabalho artístico: as intervenções em páginas e bancas de jornal
Ana Maria Maia

Irônica e posterior, a assinatura do artista, lado a lado com o crédito do fundador do jornal, é a revelação do seu feito. Antonio Manuel infiltrou-se no parque gráfico de O Dia e, entre outras intervenções, produziu uma série de dez capas em que, a partir da matriz original, inseriu novas fotos e manchetes de teor ora ficcional e absurdo, ora dedicado a repercutir questões da arte dos seus contemporâneos. A distribuição de alguns exemplares dessa versão do jornal nas bancas do Rio de Janeiro completou o ciclo do trabalho e sugeriu que, embora tomando uma escala diminuta diante das proporções reais da mídia de massa, aquele intervalo quixotesco entre a arte e o mundo poderia ser um lugar pertinente para o artista.

O mesmo artista que, em 1970, após aparecer nu no Salão de Arte Moderna para a performance O Corpo É a Obra, inspirou a máxima de Mário Pedrosa sobre “arte como exercício experimental de liberdade”, experimentou também certa “clandestinidade” para investigar brechas nos discursos hegemônicos. Como esfera pública de encontros e confrontos, e talvez por isso como labo- ratório político, estético e discursivo, a imprensa motivou uma série de intervenções de Antonio Manuel, desde o fim dos anos 1960. Nesta entrevista, o artista recupera o percurso de negociações envolvidas em cada uma dessas iniciativas e o contexto histórico que as impele – e a toda uma geração de artistas – a assumir direcionamentos contra-culturais e antimercadológicos.

O que representava o jornal nos anos 1970? Antonio Manuel: Hoje em dia o jornal vive sua decadência, tem seu sentido social esvaziado, seu conteúdo é carente de aprofundamento; mas, nos anos 1970, tinha uma comunicação imediata e grande representatividade, e uma importância político-social muito grande ? era um veículo poderoso. Hegel dizia que o jornal é a oração matutina do homem. O jornal da- quela época cumpria essa função de agendar o leitor logo de manhã sobre um conteúdo político, social, estético… Era um veículo completo, que circulava pela cidade, que tinha um poder de comunicação com um público amplo, tinha um conteúdo, uma manchete, uma diagramação e ruídos gráficos que me interessavam.

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Amarrou um Bode na Dança do Mal, 1975, intervenção sobre jornal. Texto publicado originalmente no jornal Nossa Voz.(Março, Abril, Maio e Junho 2015) (Foto: Mario Caillaux)

A relação com a mídia é fundamental para o seu trabalho. Quais as principais etapas e estratégias dessa pesquisa? 

Primeiro surgiram os Flans, que começaram em 1967 e foram apropriações de matrizes gráficas dos jornais sobre as quais fazia intervenções em pintura. Depois vieram os desenhos sobre páginas de jornal (Sem Título, 1967), e logo a reimpressão desse conteúdo sobre papel Fabriano, um suporte mais resistente para desenho e pintura. Assim, eu comecei a ir ao jornal e participar de sua dinâmica de impressão. Ia de madrugada buscar os Flans, ou então tentar imprimir o jornal em outro papel. Essa já era a minha maneira de estar dentro desse veículo, de conhecê-lo por dentro. O resultado de alguns trabalhos iniciais contou com certa liberda- de para deformar essa realidade, substituindo imagens, anulando textos, tornando meu ponto de vista talvez mais direto através do meu desenho e do modo como eu podia valorizar ou ocultar alguns textos e imagens. Daí até chegar à série Clandestinas (1973) ou no jornal De 0 às 24 Horas (1973), as coisas foram se aprofundando, também, a ponto de virarem uma interferência direta no processo editorial do veículo, com a criação de manchetes, fotos e pequenos textos. Isso acontecia dentro do próprio jornal, na oficina de impressão ou na redação, envolvendo os operários.

Havia um “espírito do tempo” que levava esses seus trabalhos e obras de outros artistas a acontecerem. A ideia era de uma existência social parasitária, marginal, que nem por isso era apartada de um pensamento sobre o sistema e o comum. Dentro desse ambiente, qual o sentido de clandestinidade que você emprega no seu trabalho? 

Eu me lembro, lá pelos anos 1960, Hélio Oiticica, Nelson Motta e eu recebemos um livrinho vindo de Londres com maneiras de subverter os sis- temas. Era uma coisa marginal, contra o sistema político lá na Inglaterra. Eles ensinavam como fazer uma ficha para usar o telefone público ou bur- lar o bilhete de ônibus. Essa cartilha reunia tudo o que era contra o sistema e o status quo, táticas para uma guerrilha cotidiana. Isso transformou muita gente, foi muito forte. Quando criei as Clandestinas, queria também, de alguma forma, reagir ao sistema político, ao sistema estético, de botar o trabalho nas ruas, fora das instituições oficiais ou chapas-brancas. Fazia isso “pegando carona” no jornal e, de alguma maneira, deturpando seu conteúdo real. Eu ia para a gráfica do jornal e intervinha sobre a pá- gina de capa, abria espaços na diagramação, atribuía outras manchetes e fotos, às vezes também sobrepunha às chamadas de texto. Era como se estivesse criando um jornal clandestino dentro do próprio jornal O Dia. E, finalmente, eu levava essa outra versão do jornal para as bancas, criando assim uma duplicidade, uma falácia que era difícil distinguir da realidade, visto que parte do conteúdo do jornal era mantida.

Você era também clandestino na gráfica do jornal. Isso amplia o sentido do trabalho para o espectro do real, para a atividade artística radical diante das relações de trabalho no sistema capitalista. Como sua entrada no jornal foi negociada e quando precisou parar? 

A série acabou porque o diretor, o dono do jornal, foi à oficina e me encontrou lá, com vários operários se ocupando com o meu trabalho. Ele não tinha sido avisado antes, o filho é que tinha me autorizado, que tinha me permitido trabalhar lá, de maneira completamente informal. Quando viu, mandou suspender tudo. Eu estava fazendo o Flan Poema Classificado (1975). Esse foi o último trabalho e o fim da série de Flans. Fiquei esses anos no ambiente do jornal e, em retrospecto, posso dizer que todos esses trabalhos tinham seu sentido marcado pelo grande perigo de se estar “dentro do fogo”, de não estar fora, de fazer a crítica de dentro do sistema empresarial, político. Mesmo antes de o diretor descobrir, eu enfrentei censura lá dentro. Só podia sair do jornal mostrando tudo o que eu tinha feito no dia.

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Flan Dura Assassina, 1968 (Foto: Divulgação)

Na exposição De 0 às 24 Horas, você declarou o jornal como lugar para exposição de arte. Depois de ter sua mostra no MAM-RJ cancelada, levou as propostas para as páginas de O Jornal. Que prolongamentos ou antagonismos você identifica entre o museu e a mídia de massa? Onde você acha que o trabalho de arte se torna eficaz?

Para De 0 às 24 Horas, o jornal foi muito mais eficaz do que seria o próprio MAM. Em 1973, o clima político estava muito tenso e a direção do museu tomou a posição de censurar algumas obras que participariam da minha exposição. Inconformado, procurei deixar o trabalho que seria um bode vivo no foyer, fazendo uma associação entre bode e body (corpo) e trazendo a lembrança da performance O Corpo É a Obra, em que me apresentei nu no museu durante o Salão de Arte Moderna de 1970. Essa ideia também foi vetada e eu achei que o melhor seria publicar os projetos junto a alguns outros textos, como um de Décio Pignatari, maravilhoso, sobre Clandestinas. Procurei O Jornal e negociei para que aceitassem essa proposta e me dessem um encarte de seis páginas inteiras, nada menos que isso. O editor, Washinton Novaes, bancou a ideia em retaliação à demissão de Reinaldo Jardim daquele jornal, três dias antes. Foi minha sorte. Chamei a iniciativa de Exposição de Antonio Manuel: De 0 às 24 Horas. Era uma mostra minha para estar nas bancas e, dessa maneira, rom- per com sistemas oficiais da arte daquele período. O título sugeria a duração de um dia apenas. Era uma obra descartável, embora pudesse ser guardada. A mostra no jornal cumpre a função de disseminar um ruído de informação de forma relâmpago, com tiragem muito grande, de 60 mil exemplares. Nesse sentido, assemelha-se a ações de guerrilha.

Como pensar táticas de desaparição a partir do seu trabalho? Vale considerar a desaparição ou a diluição no social como categorias para a arte? 

Nos anos 1970, o anonimato foi necessário devido à censura. Na Bahia, depois de ter um trabalho meu fotografado dentro de um aparelho – que eram os apartamentos nos quais os estudantes se juntavam para contestar o regime –, percebi que tinha de voltar para o Rio imediatamente. Vim de ônibus e não podia ser reconhecido. Estava com medo de ser preso, por isso escrevi um texto narrando a situação e botei numa caixa de fósforos que vim segurando ao longo de todo o trajeto. Se me pegassem, eu largaria aquela caixa discretamente, com a intenção de que alguém a descobrisse. Essa caixa de fósforos era quase uma Urna Quente (1968) ? caixas hermeticamente fechadas que depositei no Aterro do Flamengo (no evento Apocalipopótese) e que precisavam ser quebradas para se descobrir o seu conteúdo. Em várias coloquei recortes de jornais correntes, com situações políticas dramáticas. Não sei se a desaparição, mas a impossibilidade, ou a dificuldade, de aparição está presente no meu trabalho dessa época por motivos contingenciais. Na instalação Fantasma (1994), que é posterior, abordei a perda de identidade involuntária de uma testemunha da chacina de Vigário Geral, que apareceu em uma fotografia no Jornal do Brasil, com o rosto coberto por um pano branco, enquanto dava entrevista para toda a imprensa. Inseri a imagem do fantasma rodeado por microfones nesse labirinto feito de pedaços de carvão suspensos, nessa cosmogonia em que há poesia, mas também choque, energia produtiva, além de risco de ser manchado por aquela matéria porosa e preta.

Dos anos 1980 para cá, seu trabalho adentrou o terreno da instalação e assumiu elementos des- construtivos. Que sentidos podem ser emprega- dos para essas mudanças? 

Eu queria abstrair toda essa carga de imagens massificadas e violentas que nos bombardeiam todos os dias, queria desaparecer com elas ou mesmo anulá-las. No trabalho Até Que a Imagem Desapareça (2013), um dos que seriam apresentados na Bienal de Veneza daquele ano, monto um pequeno laboratório de revelação fotográfica em que deixo um líquido gotejar sobre algumas fotografias apropriadas de jornais. Essa é a minha forma de dizer que esses relatos não servem, que devem ser jogados fora, pelo menos para mim. É o contrário de revelar, é “desrevelação”. Se, nesse trabalho, o caminho rumo à abstração ganhou teor de apagamento, na intervenção Frutos do Espaço (1980), que montei no jardim da Catacumba da Lagoa, no Rio, tornou-se um conteúdo em aberto que respeita a natureza, os imaginários pessoais dos visitantes e a memória daquele lugar, que era uma fa- vela. Inseri no lugar esculturas feitas em ferro vazado, com a forma das colunas diagramadas dos jornais. Embora tenha criado a metáfora de uma estrutura de narração e visibilidade, como a que acontece na grande imprensa, a presença do trabalho no local era transparente e totalmente passível de interferências do entorno.