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O projeto House of Seneb, de Tabita Rezaire, centrado na noção de tecnologias de cura africana, é feito em colaboração com outros artistas e foi apresentado no aarea em 2019 com um vídeo 3D de Alicia Mersy (Foto: Divulgação / aarea)
Postado em 21/12/2020 - 8:14
Expectativa x realidade
A pandemia reacende o debate sobre a produção e a preservação da net art e nos lembra como avançamos pouco na inserção desse gênero que foi apontado, há um quarto de século, como uma linguagem promissora

“O artista plástico José Roberto Aguilar, diretor da Casa das Rosas, foi picado pela mosca da internet. Acha que uma nova linguagem está em gestação na rede mundial de computadores”, diz uma reportagem da Folha de S. Paulo, em 1996. Outra, publicada um ano depois, enfatiza a novidade de uma mostra que poderia ser vista virtualmente: “Se você não puder ir até a Casa das Rosas para ver BitFoto, a nova exposição da instituição, tudo bem. Fisicamente ela nem existe mesmo. A exposição está em cartaz em um site na internet”.

Um quarto de século depois dessas experiências, pouco sobrou da nova linguagem que estava em gestação, pelo menos em relação ao que circulou nas redes da Casa das Rosas. Como a instituição não comporta uma reserva técnica, a ideia de um acervo virtual mostrou-se, à época, sedutora. Ninguém estava preparado, no entanto, para enfrentar uma mudança de gestão, entre 1999 e 2000, que resultou na desativação do servidor da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, onde os projetos e exposições estavam hospedados. O que se salvou, segundo Lucas Bambozzi, artista que estava à frente da coordenação de novas mídias do espaço, coube em um CD com 670 MB – o conteúdo, entretanto, não é operacional, restringe-se a arquivos de vídeos e fotos. “A gente tinha a ideia desse museu virtual e não nos demos conta de que todo esse acervo precisaria ser preservado de outra maneira”, explica Bambozzi. “Foi um fim trágico, um golpe e, ao mesmo tempo, uma tomada de consciência de como essas tecnologias são frágeis e tornam-se rapidamente obsoletas.”

As atividades na Casa das Rosas foram possíveis por meio de um apoio da marca HP, que forneceu computadores ao espaço, e da Fapesp, que possibilitou acesso a uma internet dedicada de 64 kbps, conexão em tempo integral que só passou a ser comum a partir dos anos 2000. Para se ter uma ideia da dimensão do que aconteceu ali, vale lembrar que o espaço abrigou a primeira mostra internacional competitiva de net art, em 1996, na qual um dos trabalhos premiados, My Boyfriend Came Back from the War, da artista russa Olia Lialina, é referência no gênero ainda hoje. No trabalho, que foi remixado por vários artistas, Lialina criou uma narrativa hipertextual utilizando múltiplas janelas com conteúdos simultâneos – o site em preto e branco contrariava o exagero de cores que dominaram a Web 1.0.

Em Andar em Círculos (2018), Marcius Galan utilizou um GPS para
registrar no aarea suas caminhadas pelo mesmo perímetro (Foto: divulgação / aarea)

RECONSTRUIR PARA PRESERVAR
Considerando o pioneirismo do Brasil dentro desse contexto, que inclui também um núcleo dedicado à net art na 25ª Bienal de São Paulo (2002), com curadoria de Christine Mello, era de se supor que haveria uma inserção dessas obras no sistema de arte, não só em exposições como também em acervos, mas a realidade que vimos nas últimas duas décadas não foi condizente com essa expectativa. No acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, uma das poucas – senão raras – instituições brasileiras que possuem obras de net art em sua coleção, há apenas trabalhos de Giselle Beiguelman que foram doados ao MAC USP em 2015. “Foi o primeiro museu brasileiro a ter uma obra minha. Eu já tinha obras no acervo da ZKM, que é o principal museu de arte e mídia do mundo, e em outras coleções no exterior, porém nada ainda no Brasil”, diz a artista. Desde a aquisição, no entanto, o museu não incorporou ao seu acervo nenhum outro trabalho do gênero.

Uma das questões que se colocam para a inserção da net art em coleções é a sua dificuldade de preservação, com a necessidade de atualizações constantes. Para O Livro Depois do Livro, por exemplo, ficou estabelecido que a obra não deverá ser restaurada no sentido de emulação do original, mas que, para preservar a sua poética, ela será infinitamente reconstruída. Um dos empecilhos de restauro desta peça foi o fato de que, em sua primeira versão, uma página falsa entre as páginas criava uma espécie de fade, impedindo que as pessoas utilizassem os recursos de ir e voltar do browser. Com a velocidade da internet atual, no entanto, essa opção se perdia.

Agora, para as obras mais recentes, como I Love Your Gif, de 2013, e Coronário, comissionada pelo programa IMS Convida neste ano, Beiguelman conta que se preocupou em utilizar códigos mais abertos, com flexibilidade à diversidade de equipamentos e passíveis de ser atualizados com mais facilidade. “A net art é uma obra incontrolável em termos de conservação, você pode refazer a programação, criar outras semelhantes, mas o ambiente on-line de uma época não se recupera”, diz. “Os museus em geral, e os brasileiros em particular, resistem porque é algo que demanda investimento contínuo.”

OBRAS NATO DIGITAIS
Ainda que a pandemia tenha jogado luz sobre uma produção on-line, com programas como o IMS Convida, do Instituto Moreira Salles, que acabou por constituir um acervo de obras nato digitais, desenvolvidas exclusivamente para a plataforma, a preocupação curatorial, neste caso, não estava centrada no suporte, o que resultou em uma gama de trabalhos e artistas que não estão necessariamente interessados em explorar os recursos dessa linguagem. “O que se procurou foi uma grande diversidade em termos de identidade racial, social, cultural, antropológica”, explica João Fernandes, diretor artístico do IMS. A coleção que se constitui, de todo modo, é inteiramente digital, já que, por mais que algumas obras incluam desenhos ou pinturas em sua produção, o Instituto torna-se detentor unicamente da cópia digital – os parâmetros de conservação de cada um dos trabalhos ainda não estão fechados e devem ser assunto de discussão de uma série de debates que o Instituto pretende promover em torno do programa, como uma espécie de “metaconvida”.

Do mesmo modo, o Itaú Cultural, instituição que lançou programas emergenciais diante da crise, também não promoveu à net art ao centro das discussões. Com 18 peças em sua coleção de arte cibernética, constituída por obras que abordam a tecnologia e suas possibilidades de interação, o Itaú não conta com nenhum exemplar web based, embora lide com questões igualmente desafiadoras na preservação desse acervo. A instalação interativa Desertesejo, de Gilbertto Prado, por exemplo, que funciona em um ambiente virtual, precisou ter sua programação completamente reconstruída para continuar a ser exibida. Criada em 2000, ela utilizava um plugin VRML que deixou de ser atualizado e, por isso, sua estrutura precisou ser refeita usando um ambiente de desenvolvimento de videogames, o Unity 3D. “Ainda que se tenha respeitado a identidade visual e a experiência original, se a gente comparar a um restauro tradicional, seria como repintar um quadro novamente”, explica Marcos Cuzziol, gerente do Núcleo Inovação do Itaú Cultural.

Assim, enquanto museus estrangeiros têm ampliado o campo de discussão sobre a net art – como a Tate, em Londres, que comissiona o gênero desde 2000, e o Whitney Museum, em Nova York, que criou um acervo para essa produção e por onde passaram mais de cem obras no projeto artport –, as instituições brasileiras parecem não ter a mesma pretensão. A assessoria do Inhotim, por exemplo, afirmou que a aquisição de novas obras não é uma prioridade neste ano, período em que o Instituto está focado em desenvolver projetos já previstos, como o pavilhão da Yayoi Kusama, que será inaugurado em 2021. Nas 1.791 obras que o espaço possui, entre esculturas, pinturas, instalações, obras audiovisuais, fotografias e desenhos, não há net art. A Pinacoteca do Estado de São Paulo também não prevê nenhuma aquisição a curto prazo – a instituição possui uma coleção de 10.400 obras, entre esculturas, desenhos, instalações, vídeos e performances. E assim é com o Museu de Arte de São Paulo, os museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro e quase todos os outros espaços no Brasil. “Durante um tempo houve um desinteresse, uma ignorância voluntária, mas, a partir do momento em que começam a acontecer aquisições no MoMA e no Guggenheim e a net art passa a fazer parte de um pensamento legítimo dentro da arte contemporânea, acho que os curadores que torciam o nariz têm de se colocar em relação ao que pensam sobre isso”, diz Bambozzi.

Meta4walls, de Lucas Bambozzi, exposta na 25a Bienal de São Paulo, com curadoria de Christine Mello (Foto: Cortesia do artista)

SEM INTERLOCUÇÃO
Uma das iniciativas mais relevantes nesse sentido é o aarea, que comissiona trabalhos desenvolvidos especialmente para a internet. Ativa desde 2017, a plataforma já exibiu obras de 30 artistas e, embora o site não dê acesso a esse arquivo, sua preservação não deixa de ser uma preocupação constante, já que cada trabalho representa um desafio diferente para a conservação. Há desde casos que se aproximam da performance, como Arquivos Anexos (2017), de Fabio Morais – no qual o artista escreveu uma ficção on-line, dando ao público o acesso ao editor de textos do seu computador –, até outros em que o desafio é a dependência de diferentes canais ou a obsolescência da própria tecnologia. Em A Sonata dos Espectros (2018), por exemplo, a artista Cinthia Marcelle deixava que os visitantes criassem uma playlist ao escolher links de músicas do YouTube. “A gente fica à mercê das políticas de uso de cada empresa. Se o YouTube muda sua política de uma hora para outra, é um risco que precisamos assumir”, explica Adriano Ferrari, programador do aarea. “Em um restauro, teríamos de pensar em outras maneiras possíveis, como utilizar o Deezer, o Spotify, ou criar um acervo de música que fosse ligado à própria obra.”

A vontade de Livia Benedetti e Marcela Vieira, criadoras da plataforma, em relação à sua história, é que esse arquivo se torne público e tenha uma vida para além do aarea. “Começamos uma conversa com o Centro Pompidou, com o Whitney Museum, mas aqui não encontramos interlocução, os museus não querem falar com a gente”, diz Marcela Vieira.

E é nessa mesma busca que agora partem os artistas Lucas Bambozzi e Denise Agassi com o projeto ://backup, que está ainda em gestação, mas tem o objetivo de criar um espaço para que os trabalhos de net art possam continuar existindo. A ideia surgiu no momento em que Agassi esqueceu, durante uma viagem, de pagar o domínio plataforma.midiamagia.net – hoje fora do ar – e quase perdeu todos os trabalhos que estavam ali armazenados. “Consegui baixar pouco antes de tudo se perder, mas me dei conta de que, se acontecesse algo comigo, tudo desapareceria”, diz.

Foi a partir do susto que ela iniciou uma série de conversas com artistas e curadores para pensar em formas mais perenes de conservação. O ://backup prevê então um resgate da memória dessa produção dispersa, com a disponibilização de obras que ainda poderiam ser acessadas e a emulação de outras que não conseguem mais ser reativadas. “Quero criar um jazigo, uma lápide, um obituário, morrer dignamente em um lugar para onde possam olhar e pensar”, brinca Bambozzi, que diz gastar, desde 2000, cerca de R$ 1 mil por ano para manter seus trabalhos on-line “de uma forma precária”. Postcards (2000), por exemplo, está no ar no domínio comum.com/diphusa/postcards, mas sem a funcionalidade original, já que as imagens pedem um plugin que não pode mais ser aberto. O próximo passo do projeto, no entanto, não parece nada fácil: será a busca de aportes institucionais ou, mais uma vez, formas independentes e colaborativas de viabilizar a permanência da net art.

Vista On Vista Off (2010), de Denise Agassi (Foto: Cortesia da artista)