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Postado em 16/01/2013 - 9:30
Fantasmas do Pop
Nina Gazire

Grimes, Ariel Pink, John Maus, Rainbow Arabia, Dudu Tsuda e Flying Lotus são alguns dos músicos assombrados por demiurgos superstars; conheça o mirabolante fenômeno da “hauntologia”

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Legenda: Ariel Pink e sua banda Haunted Graffiti usam o som lo-fi como estética.

O pop morreu. Ele deu seu último suspiro no dia 25 de junho de 2009, quando Michael Jackson, o artista mais rico da história – único a faturar US$ 7 bilhões ao longo da carreira – teve uma parada cardíaca na sua mansão na Califórnia. Na realidade, o pop já andava meio moribundo mesmo. Michael Jackson havia se tornado uma espécie de zumbi: de negro com ginga e groove a um homúnculo que se escondia por trás de um chapéu e uma máscara; de pele alva, quase ciano.

Segundo o teórico e blogueiro britânico Mark Fisher, a morte de Jackson foi o sinal dos tempos. Desde 2003, Fisher vem se dedicando a escrever em seu blog – que assina com a alcunha de K-Punk – sobre o status quo da cultura, em especial sobre o estado da música pop. Para Fisher, a morte corporal de Jackson foi apenas um evento simbólico. Sua verdadeira morte deu-se – como uma forma de profetizar aquilo que ele se tornaria – quando o cantor se transformou em lobisomem e dançou com zumbis no videoclipe de Thriller, faixa do álbum homônimo que até 2006 permaneceu no Guinness Book como o mais vendido de todos os tempos.

Assim como outros teóricos culturais mundo afora, Fisher vem trabalhando desde 2006 com a apropriação do conceito de “hauntology” para definir o cenário da cultura pop midiática. Em português, significa “fantasmagologia”, mas costuma ser traduzido por “hauntologia”, e o termo em francês – cunhado pelo filósofo Jacques Derrida – vem da junção das palavras haunt (assombrar) e ontology, campo da filosofia que estuda a realidade e a natureza do ser. Derrida pensou no trocadilho para designar os fantasmas e os espectros do comunismo, que ainda assombravam o mundo após a queda do Muro de Berlim.

O pop musical chamado de “hauntológico” define uma espécie de espírito dos tempos. A música atual é feita de partes virulentas que um dia emanaram de demiurgos superstars: Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, James Brown, Kraftwerk, Sex Pistols, Jimi Hendrix, Janis Joplin, e por aí vai. E a música pop, que um dia foi sinônimo de novidade, inventividade cotidiana e que flertava com o popular, tornou-se remix, pastiche, influência, sample. Há um fantasma de Madonna assombrando Lady Gaga, há um fantasma do U2 assombrando bandas como Coldplay e Muse, e um encosto do krautrock – rock produzido por bandas alemãs durante a década de 1970 – nas costas de bandas como Radiohead e Deerhunter.

Nem mesmo o punk rock escapa da onda fantasmagórica. O movimento que um dia tentou, por meio do improviso e do anarquismo sonoro, contestar a comoditização do rock-n’-roll não ficou livre de se tornar um espírito etéreo molestador dos inúmeros riffs “guitarrísticos” de bandas como The Strokes e Arctic Monkeys. Não que a hauntologia signifique necessariamente o fim do gênio criador da musicalidade. O que se descobriu foi que essa ideia de som original era uma falácia. “O autor está morto”, escreveu Roland Barthes certa vez, condenando à morte também o deus da guitarra flamejante.

O vodu dos teclados

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Legenda: DJ Flying Lotus

Em 1964, durante um congresso realizado no Columbia-Electronic Music Center, em Nova York, o engenheiro e inventor Robert Moog mudaria para sempre o mundo da música. Na ocasião, apresentou o sintetizador Moog, também conhecido como Moog Modular Synthetizer, uma espécie de piano unido a um sistema elétrico, ou seja, um aparelho analógico que criava sons a partir do teclado acoplado.

O sintetizador, vale por uma banda. Seus circuitos podem guardar os sons de todos os instrumentos musicais e também os samples (trechos de músicas prévias. Ele é a égide do estilo faça-você-mesmo e o assassino da noção de originalidade no mundo da música. “É um instrumento de natureza transgênica. Sua flexibilidade e abrangência são propensas à diversidade de naturezas estéticas díspares. Nele está incrustada a rave, o dubstep, o g-funk, o hip-hop, o techno e, claro, o pop como um todo”, comenta Fisher em seu blog ao descrever a música do DJ Flying Lotus em post recente.

Seu primeiro álbum, 1983, foi lançado em 2006 e já trazia a veia transgênica na qual a música pop vem pulsando. Batidas de nu-jazz são misturadas aos sons chip-tune – estilo musical em que os sons são criados com microchips, bem ao estilo videogame.

Sua música é uma espécie de Atari indo de encontro não só do jazz, mas de outros contemporâneos da música eletrônica, como Aphex Twin, e até mesmo o rock do Radiohead, do qual o DJ remixou a música Reckoner.
Com mais de quatro álbuns lançados, Flying Lotus é um dos exemplos do que a cultura ou, mais especificamente, a música pop se tornou. Mesmo sendo considerado um músico experimental e um virtuoso, e sem alcançar níveis de fama astronômica como Michael Jackson, o som de Ellison é definido por sua multirreferencialidade. Não só devido aos diferentes estilos musicais remetidos, fermentados pelos sintetizadores e pickups, mas também pela menção aos seus colegas da música. Escutar um álbum do artista é uma experiência e atestado desse estado quântico da cultura: já se ouviu isso antes, porém não se sabe muito bem onde. E ao mesmo tempo tem-se a certeza de estar diante de algo completamente sui generis.

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Legenda: O brasileiro Dudu Tsuda mescla Satie e Esterolab.

No Brasil, os sintetizadores tiveram vez a partir dos anos 1960, quando Lafayette, depois de tocar com outro rei do pop, Roberto Carlos, passou a executar versões românticas e sucessos da Jovem Guarda no seu órgão Hammond. Bebendo na fonte romântica de Lafayette, o músico e artista paulistano Dudu Tsuda lançou recentemente o disco Soloworks, produzido com referências da clássica chanson française. Tsuda mistura o passado aos teclados eletrônicos de uma música não tão distante no tempo, a da banda Stereolab. Na música Le Jour Où Erik Satie A Recontré Stereo Lab, propõe uma genealogia sonora que vai do piano minimalista de Satie aos seus descendentes eletrônicos, como é o caso da banda inglesa. No álbum também é possível ver a fantasmagoria com a qual a máquina de fazer música dá vida ao cantor Serge Gainsbourg. A da voz aveludada de Tsuda é de estilo semelhante ao do mestre francês e está acompanhada por teclados de estilo retrô.

Música digital, estética VHS

Gaga

Legenda: Lady Gaga assombrada pelo fantasma de Madonna.

Mais do que simplesmente trazer ao presente fantasmas do passado, encarnando-os como espírito do novo, o pop atual possui uma diferença em relação ao seu mito de origem. Apresentado como uma espécie de versão universal da cultura popular – antes territorializada pelos limites do capitalismo norte-americano –, hoje o pop é de natureza multicultural. Nos anos 1980, Madonna voltou-se brevemente à música latina para mostrar, ainda que de maneira estereotipada, sua visão desse ritmo no hit La Isla Bonita. Quase 30 anos depois, Lady Gaga resolveu trazer à tona sua verve latina com a música Alejandro, em que fazia referências explícitas ao espectro que tanto a assombra. O resultado foi muito mais impactante visualmente, já que numa tentativa de inovar pela repetição o videoclipe de Alejandro fazia um mashup direto da estética VHS de videoclipes como Like a Prayer e o próprio La Isla Bonita.

A música pop mercadológica estaria perdendo a memória, sofrendo de um Alzheimer coletivo, em que as únicas lembranças boas são aquelas que foram sucesso de marketing na passada era analógica? Mark Fisher discorda. Há uma série de artistas crescidos durante os anos 1980 que incorporam os fantasmas de maneira muito mais irônica e incidental. Os sons da cumbia, o funk carioca, a música árabe, o kuduro e o reggaeton viajam pela internet tornando-se entidades que vão sendo apropriada pelo mainstream. A cantora M.I.A, nascida no Sri Lanka e radicada na Inglaterra, incorporou as batidas do DJ Marlboro em seu disco Arular, sucesso de 2005.

Mas é da canadense Claire Boucher o mais novo título de rainha dos teclados multiculturais. Sob o nome Grimes, seu projeto musical começou quando ainda cursava a faculdade em Vancouver. A cantora, de apenas 24 anos, tem sido apontada como a mais nova esperança da música pop, como se esta necessitasse de um renascimento. Entre as influências de Grimes estão a música new age de Enya, a eletrônica experimental de Björk e, sobretudo, a sonoridade do pop-chiclete coreano, que, por sua vez, foi enormemente influenciado pelas boys bands americanas dos anos 1990.

Estética Mangá

Grimess

Legenda: A canadense Claire Boucher, mais conhecida como Grimes, é a nova rainha dos teclados multiculturais: bebe nas fontes do new age, do pop-chiclete coreano e da experimental Björk

Grimes tem sido a principal atração de festivais que comumente apontam referências para o mercado musical, como o CMJ, em Nova York, onde tocou no mês de outubro, e o Pitchfork Festival, promovido pelo site especializado em música indie Pitchfork. Acompanhado de teclado e sintetizadores, seu som é ao mesmo tempo etéreo, dançante e abastecido por vocais que parecem vir de uma garotinha japonesa de 10 anos. A paixão pela cultura pop oriental também está estampada em seus videoclipes, em que se veste como as fashionistas do distrito de Harajuku, localizado em Tóquio, fazendo referência ao universo dos mangás e animes. Outra banda, menos conhecida que Grimes, é Rainbow Arabia, formada pelo tecladista Denny Preston e sua esposa, Tiffany. A dupla também mescla ritmos marroquinos e música oriental ao pop dançante. Com estilo semelhante ao da canadense, Tiffany Preston possui vocais agudos e infantis. A banda, que se apresentou no Brasil no início de 2010, gravou videoclipes coloridos e de estilo retrô. Além disso, Denny e Tiffany compartilham com o DJ Flying Lotus o efervescente cenário multicultural de Los Angeles.

Dessa cidade surgiram outros nomes que ganharam destaque no cenário da música global. Não tão multiculturais, porém não menos acompanhados por espectros musicais, são Ariel Pink e sua banda Haunted Graffiti, e o músico John Maus. Pink, nascido em 1977, produzia suas músicas de maneira amadora desde os 11 anos de idade. Seu som lo-fi, feito propositalmente com baixa qualidade, parece saído das fitas cassete guardadas no porão de sua ensolarada casa, nos subúrbios de Beverly Hills.

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Legenda: John Maus (acima) e Ariel Pink aderem à estética retrô do VHS.

Assim como Ariel Pink, Maus é formado pelo California Institute of the Arts (CalArts) e também usa amplamente teclados e sintetizadores para criar uma sonoridade semelhante ao estilo HNRG. Também conhecido como high energy, esse é um tipo de música eletrônica que surgiu nos fins da década de 1970, vindo da disco music, e que permaneceu muito tempo no ostracismo das pickups. Como Lady Gaga, Maus e Pink se apropriam da estética retrô do VHS, mas sem a posterior limpeza digital perpetrada por Gaga. O VHS é o suporte para seus videoclipes que, para os desavisados, poderiam muito bem ser um trabalho de faculdade realizado por algum jovem lá em 1985.

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Entrevista exclusiva com Grimes

*Publicado originalmente na edição impressa #9.