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Da série Oriki, Saudação à Cabeça (2014), de Nádia Taquary (Foto: Sergio Benutti, Divulgação)
Postado em 27/09/2017 - 1:59
Filho de Odé e filha de Yemanjá
Ayrson Heráclito conversa com Nádia Taquary sobre os signos culturais e sagrados de matriz indígena e afro-brasileira enredados na escultura da artista baiana

As poéticas de Nádia Taquary e de Ayrson Heráclito encontram-se no passado colonial do Brasil – no que nele existiu de sofrimento e riqueza. Em seus trabalhos, ambos abordam a negritude e a história do escravagismo. Heráclito escava o passado para refletir sobre as condições sociais do presente. Taquary tem na base de seu trabalho plástico a pesquisa de adornos corporais de povos africanos e peças da joalheria luso-afro-brasileira, feitos e usados pela população negra no Brasil do século 18, como símbolos de poder e magia.

Baianos, residentes em Salvador, eles se encontram em trânsitos atlânticos. Heráclito, que atualmente apresenta na 57ª Bienal de Veneza a série Sacudimentos – baseada em rituais de limpeza do candomblé, com o sentido simbólico de exorcizar a dor do passado colonial em dois monumentos arquitetônicos da Bahia e do Senegal (leia review na página 112) –, foi o curador da primeira individual de Nádia Taquary. Nela, a artista explorou o balangandã, que era utilizado como pecúlio por negras alforriadas. Elas guardavam nos quadris o dinheiro de seu ganho na forma de amuletos e talismãs. Com a penca de balangandãs, quando farta, compravam a alforria de um parente. Por isso, esse era um símbolo de superação e liberdade.

O deslumbramento “como tática para a conquista da liberdade” é, segundo o artista e curador, o conceito-chave da obra de Nádia Taquary. Nesta conversa, que aconteceu ao longo de duas visitas que eles fizeram um ao outro, Heráclito, generosamente, apresenta a artista para seLecT.

Obra da série Oriki, Saudação à Cabeça (2014), uma homenagem às cabeças que na religião afro-brasileira fazem a conexão entre dois mundos: àiyê e orun (Fotos: Sergio Benutti, Divulgação)

 

Ayrson Heráclito: Sua obra lança um olhar para a “joia de crioula” e para a história dos processos coloniais no Brasil. Poderia explicar como isso surgiu?
Nádia Taquary: A joalheria afro-brasileira, acredito que entrou em minha vida por uma questão de memória afetiva. Quando criança, meu pai me presenteava com cordões, pulseiras e pingentes. Já adulta, estudando a joalheria luso-afro-brasileira, entro em contato com a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, o maior acervo de “joia crioula” do Brasil. Lá, me deparo com as “pulseiras de placa” de minha infância, as cruzes em filigrana, os cordões de “elo português”, pingentes de coco e ouro… Isso me tocou profundamente, começando aí a minha pesquisa sobre essa temática. Desde sua saída da Costa do Ouro, trazida por Portugal, até a sua chegada e disseminação na Bahia. Diante disso, foi imediata a criação de uma poética artística. O entendimento da joalheria como um produto que reúne de forma nítida o variado leque das misturas que serão responsáveis pela formação do povo brasileiro, estava nela explícito. Sendo um fenômeno mestiço, que promove um encadeamento de técnicas portuguesas, mas com a estética africana. A mão é afro-brasileira! Temos de lembrar que esses artífices eram ourives africanos, com seus fazeres e saberes, que aqui foram escravizados para aprender as técnicas portuguesas, como a filigrana e outras. Contudo, ao burlar o controle lusitano, na hora de produzir para si, esta nova produção incorporava a intensidade, o tamanho, um conjunto de características da sua origem africana, sua etnicidade e sua ancestralidade. Quando olho para a “joia de crioula”, eu busco ressituá-la e reatualizá-la como um objeto que traduz muito do que somos, seu caráter de resistência, superação e empoderamento.

Dinka Orixá – Oxum (2017) (Foto: Sergio Benutti, Divulgação)

AH: Como você começou a estabelecer uma relação entre a tradição dessas peças com a produção de uma poética contemporânea?
NT: Bem, esse processo de reatualização deu-se a partir do momento em que, fazendo a pesquisa, procurei ver o que há dessa joalharia ainda hoje. Me deparei com um contexto comercial reducionista, ou seja, um pobre eco do que essa arte foi. Essa artesania, atualmente tratada como folclórica, passa a ser um mero souvenir: uma lembrança turística da Bahia. Muitas vezes tosca, distanciando-se do cuidado, do seu fazer apurado da ourivesaria de outrora. Nesse momento me lanço em métodos de produção que reconstroem universos de signos culturais que se referem às questões históricas e suas lutas de resistência negra no Brasil. Tento articular uma aproximação do objeto, trazendo seu sentido e sua estética primordial como referência, mas não o reproduzindo formalmente. Sendo assim, proponho outra construção por meio de uma tradução contemporânea. É isso que chamo de reatualização. Busco a fala do objeto e a possibilidade de contar uma história que passa por ele, mas não se encerra nele. Porque eu acredito que esse objeto de joalheria é fruto de toda complexidade que é a nossa história. Nossas incessantes tensões raciais, negociações, dores, dissimulações e intrincadas mestiçagens entre indígenas, portugueses e africanos. Tudo se reflete nesse adereço. Eu acredito. Nas minhas esculturas existe a presença de fios, que se remetem aos fios de contas sagrados do candomblé e das culturas indígenas, aos trançados de cabelos africanos, às bolas confeitadas portuguesas… todos esses elementos intimamente relacionados e indissociáveis. As tensões de ordens físicas e conceituais estão presentes nesses adereços escultóricos que se amplificam, se agigantam. Eles renascem em um mundo contemporâneo para contar outra possível história que não se encerra exclusivamente neles. Esse é o meu processo de criação, que se encaminha pela emoção e pelo contexto histórico e identitário.

AH: Como você já nos falou, os elementos da religião afro-brasileira são presentes em seus trabalhos. Fale um pouco mais sobre o sagrado em sua obra.
NT: Meu trabalho está diretamente ligado à chamada “arte tradicional africana” e indubitavelmente relacionado com o universo do sagrado. Sua estética é formada por uma diversidade de valores que agem sobre a vida do grupo que a produz. Muitos desses objetos são utilizados em rituais religiosos. Eles são objetos de crença, propiciatórios, ou que agem na proteção e na realização de desejos dos seus adeptos. Diferente de uma concepção europeia, ocidental, de arte, onde existe um valor meramente contemplativo. Evocar e traduzir essa linguagem me fascina. Sendo a minha maior referência estética e cultural, ela compreende uma dimensão filosófica que não separa o aiyê de orum (terra e céu – homem e espírito). Essas duas dimensões caminham juntas e a arte é o elemento que as liga. Quando construo uma peça em que enfio contas vermelhas, é impossível não referenciar a deusa Iansã. O mesmo com os longos fios de contas dourados, onde saúdo Oxum, turquesa, Oxóssi, e branco, Oxalá. Eu estou cotidianamente lidando com essas energias que advêm dos deuses afro-brasileiros.

Instalação que reflete o mito da divisão do mundo em natureza (àiyê) e mundo invisível (Foto: Andrew Kemp)

 

AH: Como o sistema de arte brasileira tem recebido seus trabalhos? E fale um pouco de suas referências artísticas.
NT: O mercado está se abrindo muito para a diversidade da produção brasileira, especialmente para a de matriz indígena e afro-brasileira. Meu trabalho vem encontrando aceitação generosa no circuito artístico nacional. Sou representada por uma importante galeria do Nordeste e tenho participado de feiras de artes. Além disso, respeitáveis críticos e curadores estão conhecendo e promovendo meus trabalhos. Relevantes coleções públicas e privadas estão adquirindo as peças, não só no Brasil. Trabalhei com uma galeria em Paris que realizou minha primeira individual na Europa. Atualmente, estou me preparando para uma experiência nos Estados Unidos, em um importante projeto, este ano, em Los Angeles, no Fowler Museum, intitulada Axé Bahia: The Power of Art in an Afro-Brazilian Metropolis. Os temas e os materiais das esculturas que faço despertam um fascínio atávico no público. Você mesmo, Ayrson, já escreveu sobre isso quando realizou a curadoria para a minha exposição Balangandã, Uma Poética da Esperança, no Museu de Arte da Bahia, em 2012. Lá, você destacava o deslumbramento como tática para a conquista da liberdade. Tenho aprendido muito com o seu trabalho artístico e suas formas de transmutações pela arte. Acho também que tem uma certa magia e encantamento de Oxum (risos). Tenho grande admiração pela escultura de Mestre Didi, na qual presencio o encontro entre a arte e a religião.

O grande artista J. Cunha e todos os ensinamentos que sua obra articula, os mestres Ruben Valentim, Agnaldo Santos e Mário Cravo Jr. E, me desculpe Ayrson, mas não posso deixar de citá-lo como importante referência nesta cena. As mulheres artistas negras que a Bahia tão bem nos legou, como Yêdamaria, Edsoleda Santos e a genial Emma Valle. Enfim, toda essa comunidade de sentidos e de artistas que constituem a nossa Roma Negra.