icon-plus
Frame de Cat Food (1967), de Joyce Wieland
Postado em 23/07/2020 - 10:48
Filmes que poderiam ter sido feitos no isolamento
Cineasta analisa como o cinema realizado sem grandes estruturas pode apontar para um novo caminho durante e depois da pandemia
Fernanda Pessoa

Muito se escreveu nas primeiras semanas de isolamento social sobre filmes de pandemia e pós-apocalipse, mas pouco se falou sobre um cinema que, no lugar de catástrofes e grandes produções, apresenta possibilidades para a atividade cinematográfica de agora, com trabalhos que poderiam ter sido realizados no isolamento. Considero aqui obras que desafiam a lógica industrial do cinema, em que são necessárias grandes equipes e orçamentos.

Pensar nesses filmes é também investigar referências para uma produção possível dentro do contexto de pandemia. Essa lista também se relaciona com meu atual contexto – cineasta confinada e com orçamento nulo, resultado do desmonte ao audiovisual promovido pelo governo Bolsonaro. 

Quatro eixos temáticos e formais se destacaram em minhas revisões de quarentena, que não pretende ser uma lista definitiva.

Diálogo e dialética
Soft and Hard (A Soft Conversation on Hard Subjects), 1985
Anne-Marie Miéville e Jean-Luc Godard

Esta obra faz uso de arquivos e abrange subgêneros como home movies (cinema caseiro) e filmes de diálogo. Concebido para a televisão, possui um tempo adequado (52 minutos) para a atenção durante a quarentena, período em que é difícil manter o foco por longos períodos. 

De pronto, faz-se necessário apresentar Miéville – o que não é o caso de seu codiretor. Parceira de vida e criação de Godard desde os anos 1970, codirigiu, roteirizou e exerceu outras funções em quase todos os filmes dele desde então. Nos anos 1980, passou a dirigir seus próprios curtas e, em 2000, o longa Après la Reconciliation.

O filme começa com Miéville e Godard falando ao mesmo tempo. Em seguida, cenas cotidianas da vida do casal, separados, depois juntos e, ao final, uma longa sequência de diálogo entre eles. A estrutura segue a lógica tese-antítese-síntese, típica da dialética francesa. Primeiro, os dois juntos são inteligíveis. Depois, cada um separado mostra seus pontos. Finalmente, os dois outra vez se fazem entender. Ouvimos Miéville em off: “Eles perderam contato com o mundo exterior”, e esse parece ser o contexto dos realizadores, isolados em uma pequena cidade suíça.

O título também remete à lógica em pares típica de Godard. Segundo o subtítulo, soft seria a forma, enquanto hard, o conteúdo. Os adjetivos também nos incitam a perguntar quem é “suave” e quem é “duro”. Como duplas dialéticas, essas definições não são imutáveis. Anne-Marie Miéville começa soft, ajeitando as flores, tarefa considerada feminina. Depois, edita na moviola – vale lembrar que a montagem no cinema é originalmente uma função feminina, uma vez que cortar filmes era considerado um trabalho semelhante à costura. Já Godard inicia suas cenas com um momento de “gênio criador”, onde anota ideias em um caderno antes de dormir. Depois, aparece como produtor, negociando ao telefone. Logo, assiste futebol.

Em seguida, ele simula jogar tênis em sketches cômicos, e pergunta: “Só porque faço filmes, e não filhos, sou menos humano?” A reflexão ressoa nos profissionais da cultura. Ter filhos não parece compatível com uma vida de instabilidade financeira, que consome tempo e energia. É revigorante que a reflexão venha de um homem, e não de mulheres, tantas vezes questionadas sobre maternidade e trabalho. 

No terceira e mais longo trecho, não há mais monólogos, mas um diálogo entre eles. Outros pares dialéticos se revelam: cinema e televisão, ver e escutar, feminino e masculino. Através dessas duplas de opostos não-excludentes, representadas em seu nível básico pelo próprio casal, o filme realiza uma complexa reflexão sobre o cinema.

No plano final, uma cena de O Desprezo (1963) é projetada junto com a sombra dos braços do casal. Remontando às origens da sétima arte e ao teatro de sombras, relembram que a vocação do cinema é projetar, no sentido mais amplo. A poética imagem ressoa hoje: a projeção caseira é a sala de cinema possível nesse momento. 

Subversão do doméstico como feminino
Marie Menken e Joyce Wieland

A tentativa de confinamento das mulheres ao espaço doméstico não vem de hoje.  A casa (e seus afazeres) ainda é o terreno relegado a elas. Avançamos nas lutas por direitos, mas há um longo caminho, inclusive no campo cinematográfico. Os filmes feministas dos anos 1960 e 1970 passam por esse cenário. Duas pioneiras da vanguarda norte-americana experimental, Marie Menken e Joyce Wieland, utilizaram o espaço de forma bastante diversa.

Menken, ucraniana radicada nos Estados Unidos, filmava em 16mm o corriqueiro, como revelam os títulos de seus curtas: Lights (1966) e Glimpse of the Garden (1957). Em Dwightiana (1959), ela faz uma animação em stop-motion com objetos de casa. 

A cineasta era considerada poética por seus contemporâneos, como Jonas Mekas. Bonita e sútil, como se espera que a arte feminina seja. No entanto, há mais do que pura delicadeza em seus filmes. Neles, o banal revela seu lado não visto normalmente. Com um uso aprimorado da câmera na mão, em um ritmo bem pensado, a cineasta realiza uma dança entre olho e imagem. 

Já Wieland, canadense, subverte o ambiente doméstico em sua função. Se o verbo domesticar significa “amansar para o convívio social”, ela transforma seu sentido por completo. Seus filmes têm um lado animalesco, seja na observação de um gato que come um peixe, em Cat Food (1967), seja na utilização da oposição entre ratos e gatos como metáfora para a militância comunista nos EUA dos anos 1960, em Rat Life and Diet in North America (1968). 

Neste curta, ela usa animais e objetos domésticos para construir uma parábola dos movimentos anticapitalistas da época. Os ratos são os revolucionários, oprimidos pelos gatos – patrões capitalistas. Spoiler: os ratos vão para o Canadá plantar ervas orgânicas e esquecem da luta. 

Sem abandonar o doméstico, em especial a cozinha, atividades diárias são convertidas em investigações estéticas, que revelam o contraditório do espaço caseiro, ao mesmo tempo libertador e aprisionante. 

Wieland afirma que a mesa da cozinha está na sua obra desde sempre, e que seu interesse é entender o que seria a arte da dona de casa, da esposa, da mãe. Ambas cineastas não escondem sua presença física. Menken incorpora a fumaça de seu cigarro, seu reflexo e a mão que movimenta a câmera. 

David James vê esses filmes como desenvolvimentos dos diários feministas dos anos 1970, “onde introspecção e autoconhecimento eram entendidos como a participação individual em uma cura histórica-coletiva”. Os curtas seguem o argumento feminista recorrente no período, que afirma que “o pessoal é político”.

Olhar e ouvir os idosos, sentir o tempo
Não é um Filme Caseiro (No Home Movie), 2015
Chantal Akerman

A escritora Conceição Evaristo, 73 anos, começou sua masterclass sobre roteiro afirmando a importância da troca entre jovens e mais velhos, pois os últimos têm histórias para contar, e esse é um momento de vulnerabilidade deles. 

É por isso que, dos vários filmes da cineasta belga Chantal Akerman que poderiam ter sido feitos no isolamento (como Hotel Monterey, 1972, filmado em um hotel abandonado, ou Là-bas, 2006, em um apartamento em Israel), o que me parece mais tocante hoje é No Home Movie

O título é irônico: um termo muitas vezes pejorativo para distinguir filmes caseiros, “amadores”, de profissionais. A cineasta Maya Deren fez uma reflexão sobre essa distinção, escrevendo que amador vem de amar, portanto, seriam obras feitas no amor, e não por razões econômicas.

Dessa forma, No Home Movie é tudo que seu título nega. Após seis minutos iniciais ao ar livre, entramos no ambiente caseiro e só saímos rapidamente em passeios de carro. Akerman filma a mãe, em idade avançada, em sua casa, com as filhas e a cuidadora, uma tia ao telefone. O filme é feito de longos planos estáticos bem enquadrados, com camadas dentro do próprio quadro, que lembram seu longa mais célebre, Jeanne Dielman (1975), mas também de planos errantes, que buscam o foco e super ou subexpõe a imagem. É um belo ensaio sobre as possibilidades ao retratar uma casa. 

A cineasta nos relembra da importância da história na sabedoria oral dos idosos, tão esquecidos atualmente. Ela conversa com sua mãe sobre o passado, as relações familiares, as tradições da família judaica que fugiu do holocausto. Quando precisa viajar a trabalho, liga por Skype para a mãe e a filma pela webcam, o que hoje é uma imagem corriqueira em nossas vidas no isolamento. 

“No Home Movie é lento, no ritmo dilatado da quarentena. Sobre sua filmografia, Akerman já afirmou que quer fazer o contrário de outros cineastas, que realizam “filmes para passar o tempo”: os seus fazem sentir o tempo”

Assim, Chantal Akerman afirma que as distâncias não existem mais. Sua mãe sofre com a interação virtual e diz que vê-la daquela forma a faz ter vontade de abraçá-la. Nesses meses de isolamento, compartilhamos da vontade e do impedimento.

No Home Movie é lento, no ritmo dilatado da quarentena. Sobre sua filmografia, Akerman já afirmou que quer fazer o contrário de outros cineastas, que realizam “filmes para passar o tempo”: os seus fazem sentir o tempo. 

Jogando com arquivos
Supermemórias, 2010, Danilo Carvalho
Love is the Message, The Message is Death, 2016, Arthur Jafa

Em Mal de Arquivo, Derrida aponta que a arqueologia estuda também resquícios de uma vida privada que revelam aspectos do funcionamento de uma sociedade. As imagens são, assim, tipos particulares de arquivo. 

Nos anos 1920, o cineasta francês Jean Epstein escreveu: “Quando o cinematógrafo completar um século, se tivermos agora os meios para estabelecer experiências e preservar a película, ele terá sido capaz de capturar aparências marcantes e altamente instrutivas do monstro da família”. 

“Dark, série alemã com viagens no tempo e mundos paralelos, ganhou os holofotes durante a quarentena por revelar o tal monstro da família, mas podemos fazer viagens ao passado familiar apenas mergulhando em nossos arquivos”

A palavra monstro é usada por Epstein no sentido de arquétipo. E, de fato, o cinema permite ver gerações de família se movendo e interagindo, além de encontrar ligações entre passado e presente. Sobre as projeções de filmes familiares, Epstein segue: “Ninguém nesta junção parecia livre (…) seja através de uma boca ou de outra, era a família que me respondia através de sua única voz, com seu modo de pensar permanente, que continuaria através de muitos corpos passados, presentes e futuros.” 

Dark, série alemã com viagens no tempo e mundos paralelos, ganhou os holofotes durante a quarentena por revelar o tal monstro da família, mas podemos fazer viagens ao passado familiar apenas mergulhando em nossos arquivos. É isso que faz Supermemórias, de Danilo Carvalho, feito a partir de registros caseiros em super 8mm dos anos 1970 e 1980, em Fortaleza. Por meio de um chamado público, o cineasta pediu para que lhe enviassem registros familiares e, como contrapartida, devolveu o material digitalizado.

Gravidez, casamento, aniversário, férias, passeios de domingo em desfiles militares. A junção de diversas histórias individuais conta uma história coletiva daquele período. O curta não usa narração, mas o som de um trecho invade o outro, criando a sensação de que se trata de uma mesma história.

O caminho inverso também é possível: olhar imagens públicas e/ou profissionais de fontes diversas para traçar uma história coletiva e ao mesmo tempo individual. É o caso do filme Love is The Message, The Message is Death, de Arthur Jafa, que ficou disponível online por dois dias em museus ao redor do mundo em junho, reafirmando sua atualidade. 

O artista e cineasta faz uso de imagens de arquivos diversos: redes sociais, filmes estadunidenses dos anos 1910, reportagens, sem se importar com marcas d’água, qualidade ou se estão filmados na vertical. Dessa forma, cria uma poderosa obra que traça um panorama da iconografia negra norte-americana, mas também revela aspectos sombrios de hoje, incluindo a violência policial e racial. Os 100 anos de imagens à qual Epstein se referia são usados por Jafa para contar a história da representação do povo negro, essa outra família, maior que a consanguínea e, que, nesse caso, é importante lembrar, foi durante muito tempo impedida de contar sua própria história.

Esses casos nos mostram que outros cinemas são possíveis e, mais do que nunca, necessários. Filmes feitos no isolamento já começam a aparecer, continuando essa história. Restrições não devem significar obras inócuas ou parecidas entre si. Os tempos difíceis muitas vezes são também os mais resistentes e criativos, e podem apontar para um cinema que, além de não depender de grande estrutura, vá além da narrativa hegemônica. Da minha parte, aguardo ansiosamente os realizados neste isolamento.

Ficha Técnica
Soft and Hard: https://www.imdb.com/title/tt0091980/
Glimpse of the Garden: https://www.imdb.com/title/tt1161419/
Lights: https://www.imdb.com/title/tt2318260
Rat Life and Diet in North America: https://www.imdb.com/title/tt0135623/
Cat Food: https://www.imdb.com/title/tt0188489/
No home movie: https://www.imdb.com/title/tt4881016
Supermemórias: http://portacurtas.org.br/filme/?name=supermemorias
Love is the Message, the Message is Death: https://www.imdb.com/title/tt7778656

Fernanda Pessoa é cineasta e artista visual. Realizou seu mestrado em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe Dubois. Em 2017, finalizou Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, seu primeiro longa documental. Seu segundo documentário, Zona Árida, recebeu Menção Honrosa no Dok Leipzig 2019 e estreia em streaming no segundo semestre deste ano. 

*Os textos de opinião não refletem necessariamente a opinião da revista e são de responsabilidade integral dos autores