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Postado em 31/10/2012 - 6:20
Fina trama de conceitos
Angélica de Moraes

A mostra coletiva Parque Industrial faz pensar sobre as relações de trabalho inscritas no mercado de arte

Carlos-garaicoa

Legenda: Louis Vuitton Voyage avec Karl Marx et Nous Voyageons avec Louis Vuitton (2009), objeto de Carlos Garaicoa exposto na galeria Luisa Strina (Foto: Edouard Fraipont / Divulgação)

Quantas vezes você já foi a uma exposição de arte e saiu frustrado, com a sensação de que as mais nobres intenções curatoriais resultaram em um amontoado de coisas que não chegam a se constituir em conjunto coerente? Relaxe, seus problemas acabaram. Visite a exposição Parque Industrial, na Galeria Luisa Strina, e terá satisfação garantida. Nela, a própria mercância da arte é analisada com muito humor, inteligência e precisas referências teóricas, sem citacionismos de brilhatura.

A autora dessa façanha é Julieta González, atual curadora-chefe do Museo Tamayo, na Cidade do México, e ex-curadora associada de arte latino-americana na Tate Modern (2008-2011). O visitante vai logo observar que todas as obras do elenco de 28 artistas ocupam postos-chave e convergem para um resultado finamente urdido ao longo de todo o percurso. Com isso instaura-se uma dupla fruição: as poéticas individuais respiram em espaço próprio, enquanto potencializam as obras do seu entorno. Não há uso ilustrativo nem panfletário dos trabalhos exibidos, não há construção de discurso que seja externo ao discurso de cada um dos artistas do elenco. Uma aula de curadoria, enfim.

A crítica ácida de Antoni Muntadas aos sistemas de vigilância e controle do indivíduo (Quarto dos Fundos, 1987-2012) estabelece de imediato o clima de toda a mostra, logo na entrada. A ironia de Muntadas soma-se aos objetos de Sylvie Fleury, exatas simulações em bronze de ícones do consumo: sapatos de luxo e sacolas de compras. Ou seja, a vigilância é (também) a guarda patrimonial. Para completar esse primeiro ambiente dos cinco organizados pela curadoria, uma assemblage de Carlos Garaicoa reúne uma bolsa Louis Vuitton com um livro dentro: nada menos que O Capital, de Karl Marx. Encadernado em vermelho, lógico. Marx é onipresente, seja no busto de pedra colocado no jardim da galeria, seja nas leituras entrecruzadas de ideias que derivam do marxismo.

Em entrevista a seLecT, Julieta González observa que organizou a mostra em torno das relações de trabalho que se inscrevem na prática mercantil, para se contrapor “à sensação crescente de que o espaço da galeria anula qualquer discurso político porque exerce efeito de achatamento da radicalidade presente nos trabalhos”. Já que a galeria protagoniza de qualquer forma a exposição que se inscreve nela, a solução foi incluir esse protagonismo e semantizá-lo no corpo da proposta curatorial. “Resolvi somar o aparato produtivo da galeria ao percurso da exposição”, observa González. Assim, entre os ambientes visitados estão os escritórios dos funcionários da galeria. O que inclui a sala/acervo onde Luisa Strina recebe os clientes. Nesta sala, para não deixar dúvidas, a curadora colocou a inscrição/título: “Onde se gasta a mais-valia”.

A mostra foi articulada como uma peça em cinco atos/salas. Cada uma delas (com exceção da sala de entrada) tem inscrito nas paredes o título de um dos capítulos do romance Parque Industrial, de Patrícia Galvão. A citação de Pagu, personagem da vanguarda modernista brasileira, visou “ter um símbolo de São Paulo na mostra e também porque ela, ao escrever o romance Parque Industrial, fez uma obra de arte e não uma propaganda política, o que, aliás, causou sua expulsão do Partido Comunista”.

Perpassam quase toda a mostra trabalhos em tecido, tapeçaria ou bordado, referências ao marco zero da industrialização: o desenvolvimento da indústria têxtil inglesa no fim do século 18, a chamada Revolução Industrial. Mesmo momento histórico que iria gestar o movimento operário e a luta capital versus trabalho, analisada por Karl Marx.

Uma das obras mais emblemáticas do percurso é de Renata Lucas (Sem Título, 2010-2012), que fixa um tapete no chão com uma camada de cimento. Uma exposição, enfim, que estabelece novo marco de competência curatorial no âmbito das galerias. Arte é, afinal e antes de tudo, uma máquina de pensar. Embora também possa ser e seja máquina de acumular capital.

*Publicada originalmente na edição impressa #8.