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Galciani Neves (Foto: Leandro Muniz)
Postado em 14/07/2020 - 10:10
Galciani Neves: Por um museu transversal
Anunciada como nova curadora do MuBE, Galciani Neves quer colocar a diversidade como um dos pilares da instituição
Leandro Muniz

Desde o começo de julho, a curadora e professora Galciani Neves é a nova curadora-chefe do Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE), que por cerca de quatro anos esteve sob o comando de Cauê Alves, nomeado curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Após um processo de seleção – feito, em sigilo, por meio de convites para diferentes curadores, e que envolveu a análise da história da instituição e a proposição de novas perspectivas para o MuBE – Neves coloca a diversidade como um dos pilares centrais de seu projeto, junto à noção ampliada de escultura, ecologia e arquitetura. Em entrevista à seLecT, mais do que falar de projetos concretos, a curadora apresenta seus desejos para o futuro do museu, ampliando a imaginação institucional a partir de uma compreensão transversal de assuntos como feminismo, ecologia e coletividade. 

Há uma ênfase por parte da instituição de que sua presença será uma forma da incentivar a diversidade. Como essa ideia deve se refletir na estrutura e na programação do museu?

Comecei a trabalhar no MuBE no começo deste mês e ainda estou me apresentando e sendo apresentada. Toda quinta-feira, o museu vem realizando conversas com artistas no programa MuBE Ao Vivo e minha primeira contribuição foi convidar cinco artistas brasileiras que têm a rua e o espaço público como condição de seus trabalhos para discorrer sobre suas produções. A primeira foi a Regina Parra, em 9/7, e ainda teremos Virgínia Medeiros, Alice Shintani, Elonora Fabião e Abigail Campos Leal. As conversas são só de mulheres e há um dado importante: o corpo de uma mulher na rua é completamente diferente de um corpo de um homem na rua. Em pesquisa de 2019, foi comprovado que, a cada hora, mais de 500 mulheres sofrem algum abuso ou violência. Então, a exposição desse corpo é completamente diferente, o que é central quando penso numa série de conversas com mulheres no espaço público. Claro que ainda não tem a diversidade que gostaria que tivesse, estamos engatinhando nisso, mas temos que continuar o caminho. Se o museu pode propor uma programação de cursos, quem a gente pode convidar? O que é a democratização dos espaços? Um exemplo: se podemos falar de uma cidade queer, não vamos chamar um especialista em cidade queer para falar como as pessoas podem lidar com a cidade, mas alguém trans, alguém que milita com isso, que está vivendo isso no dia a dia em um embate que passa pela experiência do corpo. É um exemplo simples, mas a diversidade no museu passa por aí. Outra coisa importante é o acesso ao museu: quem entra naquela instituição? Quem se interessa em ultrapassar a grade do Jardim Europa e como a gente quer conversar com as pessoas que não estão lá? Esse é também um desafio grande. 

“Quais saberes, experiências, desejos e alertas a gente conseguiria comunicar e debater diante de uma pandemia que é o reflexo dos passos do ser humano na Terra?”

Neste momento crítico que estamos atravessando, com demissões em instituições e fechamentos de espaços independentes, se tornou um desafio pensar a diversidade também na estrutura dos museus. De que forma isso ocorrerá no MuBE?

É uma pergunta que não posso te responder, pois já há profissionais contratados e a equipe é bem enxuta. Na curadoria, sou apenas eu; na conservação, está a Flávia Vidal, que também é produtora. Além disso, contamos com a Flávia Veloso como vice-diretora e diretora executiva; e com a Talita Paes na função de coordenadora do educativo. Em sua equipe, são seis educadores – Pedro Luís Carpinelli, Felipe Alonso Dans, Amanda De Sordi, Lucas Henrique, Teodoro Machado e Julie Dias –, que já estão no museu há algum tempo e fazem atividades muito diferentes. Eles têm formações em várias áreas para além das artes visuais (design, arquitetura, comunicação). Óbvio que dá vontade de incluir mais gente, mas não sei ainda o quanto será possível convidar outros profissionais. Por enquanto, não consigo operar tanto na equipe, mas consigo interferir na escolha dos colaboradores e das pessoas que a gente pode chamar para conversar.

Você citou o artista Luis Camnitzer, dizendo que “todo museu é uma escola” e que você gostaria de estreitar os laços do MuBE com a cidade. Considerando sua colocação sobre a diversidade da programação e a localização do museu no Jardim Europa – o que impõe barreiras de classe, assim como a arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, que já foi comparada à estrutura de um bunker –, como você está pensando, na prática, essa dinâmica de inclusão e abertura?

Vou ser muito sincera: ainda não sei, mas esses são os meus desejos para o MuBE. Em uma das fases da seleção, tive que apresentar minhas perspectivas para o museu, a partir de seu histórico e do seu funcionamento. Com a entrada do Cauê, em 2016, houve muitas mudanças, foi formado um outro conselho, outra diretoria e ele propôs e realizou muitas coisas. Quando o MuBE me perguntou que perspectivas eu tinha, considerei esse histórico e uma espécie de escopo de propósitos para a instituição, que pode ser ampliado a partir das pautas de diversidade e complexidade. Quando trago a necessidade da diversidade e da presença de pautas identitárias é porque, infelizmente, ainda temos que lutar e defender o óbvio. Então, quando pensamos na programação e no acervo de um museu, temos que pensar também no que deixamos de fora. É uma reflexão que tem que acompanhar os processos de alguém que está à frente da curadoria. Além disso, o MuBE é um museu de escultura e ecologia, localizado em um prédio do Paulo Mendes da Rocha, então esses são três pilares fortes. Isso faz com que os cursos de história da arte não possam ser só de história da arte, porque há uma noção de arquitetura e de meio ambiente muito presentes, o que é algo que também quero levar para a programação. 

E de que forma esses pilares serão sustentados nas atividades do museu?

Uma das minhas propostas é estudar o que está sendo dito e debatido sobre o antropoceno. Vamos trazer as perspectivas veganas, os saberes dos agrofloresteiros, entre outras pautas atuais, debatidas por estudiosos como o Bruno Latour. Em relação à noção expandida de escultura, que entendo como um dos pilares do MuBE, penso não apenas em Rosalind Krauss [ela se refere ao texto A escultura no campo ampliado, de 1979] , mas na construção de objetos no espaço e de um saber escultórico que é muito rico no Brasil. Temos as aparelhagens de Belém; as paneleiras de Vitória; as carrancas do Rio São Francisco; os barracões de carnaval em São Paulo e no Rio de Janeiro; os sambaqueiros do sul; o saber dos pescadores do nordeste; e toda a “indumentária” e produção dos povos da floresta, dos povos originários. Essas são questões que foram formuladas como flechas para nos guiar, mas ainda estou conhecendo as estruturas físicas e financeiras do museu. Vamos manter as atividades que já estavam sendo feitas desde o começo da pandemia, como as lives, os ateliês virtuais com o educativo e talvez visitas virtuais com os alunos de escolas. O museu também acabou de abrir a exposição Obras-Projeto: Novo Acervo do MuBE, em uma curadoria do Cauê Alves. É uma exposição importante, que seguirá sendo trabalhada, discutida e apresentada ao público.

“O museu pode revelar a noção de coletividade nas nossas ações e ajudar na construção de questões mais humanitárias para que que o público entenda de uma vez por todas que tudo está interligado”

Os museus em geral têm discursos progressistas, mas a pandemia evidenciou ainda mais o quanto a programação e as estruturas institucionais são excludentes. Quais seriam as respostas do MuBE para esse momento?

O museu fala da necessidade de colocar o meio ambiente como protagonista. Se estamos em uma crise sanitária, ecológica, cultural e econômica, ou seja, uma crise humanitária, entendo que um museu que possui a ecologia em seu nome tem uma tarefa muito importante nesse debate. Quais saberes, experiências, desejos e alertas a gente conseguiria comunicar e debater diante de uma pandemia que é o reflexo dos passos do ser humano na Terra? Vi a live Sonhos para adiar o fim do mundo, com Ailton Krenak e Sidarta Ribeiro, na qual Krenak dizia que a noção de humanidade que temos já não faz mais sentido e que o corpo do ser humano foi decretado pelo planeta como um corpo indigesto. Nessa mesma conversa, ele falou uma coisa linda: em algumas etnias, as pessoas sonham juntas sobre a mesma coisa, não apenas no sentido do desejo, mas do sonho mesmo, e isso aborda um fluxo de afetos e de possibilidades que abrimos quando pensamos juntos. Estamos no planeta há pouco tempo e nosso impacto é gigantesco. Não temos recursos renováveis e não conseguimos dar passos para trás, mas quais são os debates que podemos formular e com quem a gente pode conversar para diminuir o impacto ou formular um presente que seja mais compartilhado? De algum modo, todo mundo que está refletindo sobre o nosso tempo está falando de coletividade e de estar junto. Talvez a gente ainda não tenha entendido o que é isso, o que fica claro quando vemos, por exemplo, uma foto de centenas de pessoas em um bar no Leblon nesse momento de pandemia. Aquelas pessoas estão ali porque têm plano de saúde. O sentido de coletividade numa quarentena – em que o privilégio de estar ou não em casa já é completamente desigual – também passa por quem ocupa o espaço da rua dessa maneira, o que acaba desmascarando um sistema que está falido há muito tempo, pois é um sistema calcado em privilégios. A classe média acha que não usa o SUS, mas a água que chega limpinha dentro das casas tem a qualidade controlada pelo SUS. Tudo está conectado, todos os impactos e pegadas deixam rastros, mas acho que a gente, enquanto sociedade, ainda não entendeu. O museu, nesse sentido, pode revelar a noção de coletividade nas nossas ações e ajudar na construção de questões mais humanitárias para que que o público entenda de uma vez por todas que tudo está interligado. A arte como uma atividade social e política, nossas questões no campo afetivo, nossos desejos de mundo, tudo isso está conectado e talvez seja a primeira lição que temos a aprender com essa pandemia, porque talvez ainda não tenhamos aprendido.