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Postado em 04/08/2014 - 5:50
Herança artística: como lidar, o que priorizar?
Ana Letícia Fialho

Uma entrevista com Daniel McClean, advogado e curador especializado em direito da arte e administração de espólios de artistas

https://www.youtube.com/watch?v=9nzzLdiI9eg

Legenda: Vídeo da famosa performance Auto-Destructive Art, realizada em 1965 por Gustav Metzger, artista assessorado atualmente por McCLean

A forma como espólios de artistas são administrados na América Latina (e não só no Brasil) é, via de regra, pouco profissional, e muitas vezes prejudicial ao reconhecimento da produção moderna e contemporânea histórica da região no plano internacional. Os interesses econômicos muitas vezes se sobrepõem ao respeito à integridade das obras e do pensamento do artista, como no caso em que se exploram comercialmente propostas concebidas para serem reproduzidas e compartilhadas de forma mais livre.

Há também uma falta de estratégias claras de gestão dos legados artísticos, o que se reflete, entre muitos outros aspectos, na ausência de um padrão de procedimentos e valores para se autorizar o empréstimo de obras, a reprodução de imagens e o acesso a informações para pesquisa e publicações. Tal problema é recorrente e objeto de constantes queixas da parte de instituições e curadores internacionais que expõem (ou desejam expor) artistas latino-americanos já falecidos. A falta de experiência e conhecimento para administrar o legado soma-se, às vezes, à ambição dos herdeiros em obter o máximo de vantagem comercial rapidamente, o que pode desvalorizar o conjunto da obra a médio e longo prazo.

A revista seLecT conversou com Daniel McClean, advogado inglês especialista no assunto, a respeito dos principais desafios para quem administra o legado de um artista e deseja assegurar a sua valorização e reconhecimento de forma duradoura. Atualmente McClean assessora o artista Gustav Metzger a planejar o destino de sua obra e a criação de uma fundação que deverá administrá-la, exemplo que coloca a questão do espólio como algo a ser pensado pelo artista ainda em vida.

A administração de espólios de artistas exige uma série de responsabilidades que os herdeiros nem sempre estão preparados para enfrentar. Quais são os principais desafios dos pontos de vista ético, legal e administrativo que os herdeiros devem ter em mente?

Creio que o desafio mais importante é proteger o legado do artista – sua visão artística – de um modo que não faça concessões, mas que ainda permita crescimento e mudança. Se os espólios dos artistas forem demasiado protetores e não cooperativos, poderão prejudicar seriamente o legado do artista. Os museus não se inclinarão a fazer exposições dedicadas à obra de um artista e os editores não poderão reproduzir imagens de obras de arte em livros e catálogos. A conseqüência pode ser distanciar o artista da história da arte, do grande público e até do mercado.

Segundo minha experiência, a administração do espólio é muitas vezes uma experiência ambígua para os herdeiros. Por um lado, é algo com que eles se sentem comprometidos e orgulhosos e que molda sua identidade; por outro, também é um peso; algo a que eles estão amarrados e de que às vezes gostariam de escapar. A administração de espólios pode consumir um tempo incrível. Ao mesmo tempo, administrar espólios também pode ser caro (e o espólio talvez possua poucos ativos), o que pode pressionar os herdeiros e levá-los a agir de maneira que, infelizmente, prejudicarão o legado do artista.

Administrar um espólio envolve um leque complexo de questões históricas, estratégicas, jurídicas e éticas ligadas à arte. Muitas vezes há problemas de autenticação, catalogação, conservação, pesquisa e arquivo, e é necessário responder a essas questões de maneira coerente com as intenções do artista morto. Há também questões de como administrar os direitos de propriedade intelectual, como os direitos de reprodução. Um espólio também pode se envolver em batalhas sobre a recuperação de obras de arte não devolvidas ao artista quando ele estava vivo. Depois há as questões de como o espólio lida com o mercado de arte e, em particular, em que momento deve lançar obras no mercado e a que preço, e quem deve ser indicado para vendê-las. É importante também perceber que um espólio não pode seguir funcionando para sempre, que chega um momento em que não existem mais recursos e descendentes dispostos a administrá-lo. Os espólios e as fundações têm ciclos de vida próprios.

Alguns espólios e fundações, como o Arp Estate, a Fundação Henry Moore e a Fundação Andy Warhol, incentivam as bolsas de estudo e o desenvolvimento das artes dando verbas que vão além do âmbito do artista morto, por exemplo, para o estudo de escultura, para pesquisa e para a organização de exposições. Isto é muito positivo e também pode garantir que o legado do artista seja preservado em seu sentido mais amplo.

O espólio de um artista, idealmente, deveria ser capaz de gerar renda suficiente para, no mínimo, preservar e manter o legado disponível e em boas condições, aberto a pesquisas e empréstimos. Quando a família ou os herdeiros não estão preparados ou não querem administrar o espólio, quais são suas alternativas?

Se a família não quiser se envolver na administração do espólio (ou o artista antes de morrer não quis que os parentes participassem), a estratégia alternativa comum é criar uma fundação sem fins lucrativos. A fundação será dedicada a proteger o legado do artista e será dirigida por administradores, que podem nem ser membros da família. A fundação pode possuir ativos (por exemplo, obras de arte e materiais de arquivo criados pelo artista e seus direitos de propriedade intelectual), dos quais pode obter uma renda. Devido a estatuto de sem fins lucrativos, a fundação também poderá receber, em princípio, doações e verbas de terceiros sem pagar imposto de renda e para as quais o doador também pode ter direito a dedução fiscal (integral ou parcial). Esta pode ser uma fonte de renda importante para a fundação, que um espólio não tem o direito de receber. Há também, como nos Estados Unidos, importantes vantagens fiscais para herdeiros da família se eles criarem fundações e transferirem a propriedade das obras de arte e mesmo os direitos de propriedade intelectual à fundação enquanto viverem.

De maneira alternativa, o espólio de um artista pode decidir que criar uma fundação também representa um excesso de trabalho e despesas. Em certas situações, um espólio pode tentar simplesmente vender e/ou doar um corpo de obras de arte e materiais de arquivo para um museu, que se tornará o custódio do legado do artista.

Com freqüência, os herdeiros, por causa de necessidades econômicas ou ambição, acabam tomando decisões prejudiciais ao legado do artista. O que deve ser levado em consideração para garantir o aumento do valor econômico e simbólico de um artista em longo prazo?

Um dos desafios mais importantes é fazer o espólio ter uma visão a longo prazo. Em uma situação ideal, deve-se planejar o destino da obra antes da morte do artista. Atualmente, estou trabalhando com o artista Gustav Metzger (Alemanha, 1926) nesse sentido, planejando o destino do espólio e a criação de uma fundação. Tomando em primeiro lugar o valor econômico de um artista: em muitos casos, a obra de um artista quando ele ou ela morre está ainda subvalorizada pelo mercado, em relação ao valor que pode ver a alcançar. A tentação será de vender obras de arte abaixo do valor que potencialmente podem atingir para trazer receita para o espólio de forma mais imediata.

No entanto, este deve tentar evitar essa situação e conservar o maior número possível de obras, enquanto um mercado é criado. Esse é um desafio difícil e exige paciência. Também exige um plano estratégico, incluindo trabalhar com as galerias e os museus certos para elevar o perfil do artista. Em termos do valor simbólico do artista (que, é claro, influencia seu valor econômico), isto também exige um plano estratégico. O espólio precisa trabalhar com curadores para estimular exposições em instituições públicas de alto nível e precisa encorajar a pesquisa sobre o artista e publicações dedicadas a ele ou ela. 

Você tem trabalhado com espólios de artistas no Reino Unido, na Europa e nos Estados Unidos. Há diferenças significativas em termos de regulamentação e praxis entre eles? E o que prevalece quando as obras circulam no plano internacional?

Cada espólio tem diferentes interesses, diferentes tensões entre os familiares e diferentes objetivos. Assim, as diferenças não são tanto regionais ou jurisdicionais, quanto específicas a cada espólio. Entretanto, leis nacionais diferentes, em particular leis fiscais, podem afetar o comportamento dos espólios. Além disso, as restrições de patrimônio cultural nacional são muito importantes no que diz respeito a como as obras de arte, em especial as criadas há mais de 50 anos, podem circular no mercado de arte internacional. Para os espólios de artistas italianos, por exemplo, este pode ser um problema especial, pois as leis de patrimônio nacional são muito severas. Isto começou a ter um impacto na exportação da Itália de obras de Arte Povera de mais de 50 anos.

Existem taxas definidas que os espólios cobram para exibir obras e autorizar o uso de imagens? Elas variam conforme o objetivo ou o uso e o perfil da pessoa/instituição que pede autorização para usar as obras?

Há grandes divergências no modo como os espólios ou as fundações de artistas administram os direitos de reprodução. Alguns deles são liberais no modo como as imagens das obras podem ser usadas, permitindo que as obras sejam usadas por outros artistas e não cobram taxas quando as imagens são usadas em publicações escolares e em catálogos de exposições. Em contraste, outros espólios/fundações tentam aplicar altas taxas de direitos de reprodução, independentemente da utilização feita. Eu acho que é mais produtivo para o legado de um artista quando os espólios/fundações diferenciam entre os tipos de utilização das imagens e são mais liberais em relação a cobrar taxas para artistas, estudiosos ou pesquisadores que querem reproduzir a obra, essencialmente com fins não comerciais. Em longo prazo, isto beneficia o legado do artista, pois garante que sua obra circule mais amplamente.

A autenticação das obras de arte muitas vezes é feita pelos espólios e fundações dos artistas, mas esse é um campo complexo e polêmico, que já gerou muitos problemas. Pode falar sobre alguns destes?

A autenticação é uma das áreas mais controversas para os espólios e fundações de artistas. Recentemente, os conselhos de autenticação de Warhol, Basquiat, Motherwell e Pollock fecharam nos EUA, temendo a ameaça de litígio de colecionadores insatisfeitos com o que consideraram uma atribuição errônea de obras de arte. Isto causou uma crise no mercado de arte contemporânea e há um movimento em Nova York para reformar e reduzir a responsabilidade legal dos peritos em arte quando oferecerem opiniões sobre a autenticidade de obras de arte.

O xis da questão é que o mercado de arte precisa ter uma fonte de autoridade central com que ele possa contar para a autenticação de obras de arte. Sem esse padrão pode haver incerteza e podem proliferar falsificações. O problema, entretanto, é que quanto mais autoridade é depositada em uma única fonte (órgão ou pessoa), maior a tendência a erros e até corrupção (particularmente quando as opiniões não têm comprovação material). O dilema é como resolver essa tensão.

Em termos práticos, acredito fortemente na transparência. Muitos problemas surgem quando se tomam decisões por meio de procedimentos opacos. Por exemplo, um dos aspectos mais controversos do modo como o conselho de autenticação de Andy Warhol autenticou as obras do artista foi sua recusa a publicar os critérios em que basearam suas decisões. Isto gerou suspeitas entre os colecionadores descontentes e também no mercado de arte.

A autenticação de muitas obras de arte modernas e contemporâneas é extremamente complexa. Um dos maiores desafios é compreender o que a obra de arte realmente é. Não é apenas uma questão de eliminar as fraudes, o que é obviamente importante. Com obras de arte modernas e contemporâneas, a questão é mais sutil, deve-se levar em conta a intenções do artista e compreender o status (o lugar?) das obras. O que é um documento ou uma obra de arte? Que regras definem as edições das obras de um artista? Se uma obra é danificada ou destruída, pode ser replicada? Instruções deixadas pelo artista podem ser realizadas postumamente?

Todas essas questões apresentam grandes desafios hoje, e no momento não acho que estejamos muito equipados para encontrar as respostas certas. Para enfrentar essas questões desafiadoras, é preciso basear-se em diversos campos do conhecimento: a história da arte, o direito, a filosofia e mesmo a ética devem ser considerados de forma simultânea e coordenada.

* Daniel McCLean é chefe do departamento de Direito da Arte e Propriedade Cultural no escritório de advocacia Howard Kennedy FSI LLP, Londres, empresa que tem entre seus clientes os espólios de Matisse e Magritte