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Instalação do curta metragem XXI (2022), de Luiz Roque, na exposição principal com curadoria de Cecilia Alemani
Postado em 27/06/2022 - 3:38
Imaginário radicante
A 59a edição da Bienal traz mais representatividade de não brancos e mulheres

Abdias do Nascimento, artista, ator, editor, dramaturgo e político, dedicou sua vida à promoção da igualdade racial e valorização da cultura afro-brasileira. Após um painel sobre Estética da Negritude, em 1950, no I Congresso do Negro Brasileiro, organizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), ele criou o projeto do Museu de Arte Negra (MAN). O propósito do museu era promover e salvaguardar a produção artística, principalmente de autores afrodescendentes. A preocupação de Nascimento, que na época não era ainda artista plástico, previu a necessidade da criação de uma instituição que hoje chamamos de decolonial. No mesmo ano, acontece a primeira participação nacional brasileira na Bienal de Veneza, iniciativa de Ciccillo Matarazzo, responsável também pela criação da Bienal de São Paulo um ano depois, nos moldes do evento italiano.

A Bienal de Veneza é a mais antiga instituição a realizar exposições internacionais de arte. Com sua primeira edição em 1895, atualmente é a maior e mais prestigiosa exibição do circuito artístico. A 59a edição da mostra competitiva, inicialmente programada para acontecer em 2021, teve sua data adiada para o ano seguinte, devido à pandemia de Covid. É a terceira vez na história do evento que a data é remarcada, sendo os outros dois decorrentes das duas Guerras Mundiais. De forma prática, o evento é dividido na exposição principal da curadoria, que ocorre nas docas do Arsenale e no Pavilhão Central dos Giardini, representações nacionais organizadas pelas delegações de cada país participante, seja nos pavilhões do Arsenale e Giardini, seja em palácios espalhados pela cidade, e os eventos colaterais.

A instituição centenária tem, a curtos passos, tentado mudar sua cara branca, masculina e europeia. A edição atual tem curadoria de Cecilia Alemani, quinta mulher, e a primeira italiana, à frente da exibição principal em 127 anos de história, contando pela primeira vez com maioria de artistas mulheres e não binários. O título da edição é emprestado do livro de Leonora Carrington (1917-2011), The Milk of Dreams (O Leite dos Sonhos), no qual a pintora surrealista inglesa radicada no México descreve um mundo mágico em que a vida é constantemente repensada pelo prisma da imaginação. Diferente da última exposição principal, de 2019, curada pelo nova-iorquino Ralph Rugoff, que não teve participação de artistas brasileiros, entre os 213 artistas convidados pela curadora atual, cinco são do Brasil: Jaider Esbell, Lenora de Barros, Luiz Roque, Rosana Paulino e Solange Pessoa.

Pintura de Jaider Esbell no Arsenale

DESCORROMPER
Jaider Esbell, indígena Makuxi nascido em Roraima, no território atualmente chamado Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e falecido em 2021, não chegou a receber em vida o convite da curadora, que selecionou 13 pinturas, incluindo algumas da série que fazem referência a Makunaimî (em Pémon) ou Makunáima (na língua Makuxi), em que Jaider reivindica seu parentesco direto com aquele sobre o qual Akuli, pajé Pémon, narrou as histórias publicadas no início do século 20 pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg e que inspiraram o livro Macunaíma, do modernista Mário de Andrade, após sua viagem à Amazônia. Desse modo, Esbell tenta descorromper a imagem equivocada e trágica como esse antepassado foi inscrito no imaginário popular brasileiro.

Poema (1979), de Lenora de Barros, na exposição principal com curadoria de Cecilia Alemani

Lenora de Barros expõe no Pavilhão Principal a obra Poema (1979), foto-performance da artista interagindo com uma máquina de escrever usando a língua. Luiz Roque exibe dois vídeos, Urubu (2021), gravado da janela de seu apartamento durante a pandemia, e XXI (2022), curta-metragem hipnótico em clima de film noir, realizado em Buenos Aires. Rosana Paulino, homenageada pela Beija-Flor no Carnaval do Rio de Janeiro na mesma semana da abertura da exposição, traz uma série de desenhos em torno da representação do corpo da mulher negra. Solange Pessoa mostra uma série de pinturas de formas orgânicas, e um conjunto de esculturas em pedra-sabão espalhadas no jardim onde desemboca o longo percurso pelo Arsenale. Tais participações reforçam a qualidade e a relevância da arte brasileira no cenário internacional.

No Pavilhão do Brasil está a exposição individual Com o Coração Saindo pela Boca, do alagoano Jonathas de Andrade, que de cara posicionou duas grandes esculturas em formato de pavilhão auricular (orelha), na entrada e na saída da mostra, intituladas Entrar por um Ouvido e Sair pelo Outro. Partindo de expressões idiomáticas relacionadas ao corpo, de forma didática e humorada, o artista traz a linguagem da boca do povo para a mostra internacional. Destacam-se a obra que dá título à exposição, um coração inflável invadindo o espaço expositivo, e Dedo Podre, escultura que retrata um dedo indicador pressionando o botão “confirma” de uma urna eletrônica. Há um diálogo próximo com a Nova Figuração brasileira, que teve uma conotação política acentuada no con- texto da ditadura, deflagrada no mesmo ano de inauguração do Pavilhão Brasileiro em Veneza.

Duas representações nacionais que participam da Bienal há mais de cem anos tiveram pela primeira vez uma artista negra escolhida para ocupar seus respectivos pavilhões nos Giardini. Estados Unidos da América, com a afro-americana Simone Leigh, que também participa da curadoria principal, e Reino Unido, com a britânica de origem afro-caribenha Sonia Boyce. Outro fato inédito foi a premiação de duas negras retintas com o prestigiado Leão de Ouro por participação na exposição principal (Leigh) e melhor representação nacional (Boyce), respectivamente.

PRESENÇA BRASILEIRA RADICANTE
Vale ser citada também a participação de Antônio Tarsis, nascido em uma favela de Salvador, atualmente baseado em Londres, que figurou entre os 12 selecionados para a primeira edição do Biennale College Arte, chamada aberta internacional para artistas emergentes com menos de 30 anos, uma espécie de residência, com mentoria e suporte fornecidos pela Bienal de Veneza. E, nos eventos paralelos, Anna Bella Geiger, Alex Cerveny e Thiago Rocha Pitta participam da exposição curada pelo francês Nicolas Bourriaud na cooperativa curatorial internacional Radicants, enquanto Cibelle Cavalli Bastos expõe na iniciativa THE FAIREST.

O Museu de Arte Negra, nos moldes imaginados por Abdias do Nascimento, nunca conseguiu sair do papel, porém, vemos hoje um maior protagonismo e valorização da produção de indígenas, negros e mulheres no cenário das artes, e a Bienal de Veneza é um bom exemplo disso. Se a maior e mais antiga instituição está mudando, talvez seja um pequeno sinal de que o mundo pós-pandêmico possa realmente ser mais plural.

Pinturas de Solange Pessoa, no Arsenale