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Yube Inu, Yube Shanu (Foto: Cortesia)
Postado em 06/10/2021 - 9:47
Mahku e o mito do surgimento do nixi pae

Foi muito antes da iniciação de Mestre Irineu e da fundação do daimismo. O quanto antes é difícil discernir, dado que aqui entra em conta outra noção de tempo e de espaço. Sabe-se que é do tempo em que homens e animais ainda não eram diferentes, ou de quando o céu ainda estava muito perto da terra. Ou, ainda, do “tempo no qual não existia a angústia da certeza”, como disse certa vez Ailton Krenak sobre o tempo dos mitos.

Relata o mito que tudo aconteceu em uma aldeia do povo Huni Kuin (que na língua hantxa kuin, da família linguística pano, significa “gente verdadeira”), também denominado Kaxinawá. Foi nessa aldeia, às margens do Rio Jordão, no atual estado do Acre e território fronteiriço com o Peru, que surgiu há alguns milhares de anos onixi pae (“cipó forte”), mais conhecido como ayahuasca (em idioma de origem quéchua), a medicina de cura de uso xamânico entre muitos povos ameríndios.

Conta o mito Yube Inu Dua Busë que o ensinamento de como preparar o nixi pae veio do fundo de um lago, das mãos de um povo-jiboia e de uma encantadora mulher-jiboia, que levou um caçador Huni Kuin chamado Dua Busë pra viver com ela debaixo d’água. A história é cantada em rituais e recontada em pinturas, ou“telas-cantos”, como define o antropólogo e curador Daniel Dinato, traduções visuais dos huni mekas, os cânticos sagrados que conduzem os rituais com o cipó forte.

Pedro Maná integrante MAHKU (Foto: Cortesia)

A tela Yube Inu, Yube Shanu (2021), do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Makhu), narra com imagens o mito do surgimento do nixi pae. A obra foi apresentada em junho, na exposição Tudo É Perigoso, Tudo É Divino, Maravilhoso, com curadoria de Daniel Dinato, no espaço da Carmo Johnson Projects, em São Paulo. A história começa a ser contada no canto superior direito do quadro, onde um indígena descansa em sua rede. O acontecimento disparador da experiência iniciatória – o fascínio pela mulher-jiboia que copula com uma anta e depois o atrai para o fundo do rio – se dá no centro da pintura, ao lado de uma grande árvore envolvida por uma enorme jiboia.

Cleiber Bane pintando a obra Yube Nawa Ainbu (Foto: Cortesia)

Em todas a telas-cantos do Mahku, os acontecimentos parecem se dar concomitantemente. Não há, na estrutura do quadro, evidências visuais de ordem cronológica ou qualquer menção à linearidade. Mas isso não necessariamente se relaciona a uma concepção de temporalidades sobrepostas. “Isso tem relação com o fato de a ayahuasca abrir espaço para aquilo que chamamos de sinestesia”, diz Dinato à seLecT. “Acredito que os múltiplos estímulos sensoriais auxiliam a produzir uma espécie de colagem visual, com inúmeras imagens e pequenas narrativas simultâneas, um todo sem começo, meio e fim lineares.”

A série recente de pinturas produzida para a mostra apresenta outros huni mekas e detalhes do mito. Todas fazem uso abundante de grafismos, chamados kene, presentes na pintura corporal, roupas e adereços Huni Kuin. O corpo da jiboia é também presença constante, deslocando-se sinuosamente pelas regiões da tela, conectando trechos das histórias e, por vezes, emoldurando as cenas. “Acredito que o principal papel da jiboia é o da transformação”, continua Dinato. “Transformar-se para adaptar-se, viajar entre-mundos e comunicar esses distintos mundos. Nesse sentido, Makhu é Yube, a jiboia mítica, pois constrói caminhos, pontes e se desloca entre-mundos: o mundo dos ‘espíritos’ yuxin, dos Huni Kuin e dos não indígenas. As pinturas do Makhu são a ponta do iceberg de outra ontologia.”

Nai Mãmpu Yubekã em processo, estúdio estudio de Pedro Maná – Mahku (Foto: Cortesia)

Cores e mirações
O Mahku é formado por 12 artistas, entre eles Isaías Sales (Ibã Huni Ku˜i), Cleiber Sales Kaxinawa (Bane Huni Ku˜i), Pedro Macario Kaxinawa (Maná Huni Ku˜i), Leone Macario Kaxinawa, Acelino Sales e Kássia Borges (Rare Huni Ku˜i) – alguns pesquisadores ligados ao campus Floresta da Universidade Federal do Acre (Ufac). Suas telas – coletivas e às vezes assinadas por algum dos integrantes – são sempre traduções visuais dos cantos cerimoniais (músicas para “chamar a força”ou “chamar a jiboia”; músicas para guiar os participantes nos “caminhos da jiboia”; e músicas para conduzir ao final do ritual). Pintadas com acrílico sobre tela, referem-se também às “mirações”, visões decorrentes do consumo da ayahuasca.

Quando seLecT conheceu o trabalho do Makhu, seus integrantes haviam viajado de volta ao Rio Jordão e a dificuldade de comunicação nos impediu de buscar saber mais sobre sua experiência e procedimentos. Sobre o marcante aspecto cromático do trabalho, no entanto, cabe lembrar aqui o depoimento esclarecedor da artista Daiara Tukano, em sua participação no programa Fogo Cruzado da seLecT, em 5/5, sobre “Como expor arte indígena?” . Ao referir-se à longa e árdua caminhada de aproximação entre os artistas indígenas e os espaços institucionais da arte, Daiara deu uma “aula” sobre o uso das tecnologias “ocidentais” pelos povos indígenas, incluído aí o uso das cores.

“Quando usamos essa palavra ‘contemporâneos’, é preciso compreender que sempre fomos contemporâneos. Nós estamos aqui, no mesmo planeta, ninguém está saindo de um livro de história, ninguém está saindo de uma ópera de O Guarani, ninguém aqui é Iracema. Existem muitos estereótipos colocados nessa formação alegórica da figura do ‘índio’, entre muitas aspas, na cultura ocidental e na cultura brasileira, na qual não nos reconhecemos. Estamos falando de arte indígena e, no meu caso, de arte tukano. Qualquer coisa que eu fizer é tukano. Porque eu sou tukano. Independentemente da tecnologia que é usada”, disse a artista na mesa formada também pelo curador Paulo Miyada e a antropóloga Paula Berbert. “Ao pensar em como é possível descolonizar ou contracolonizar, dentro das nossas práticas e saberes, cabe qualquer tecnologia. Eu tenho dentro da minha arte uma pesquisa que vem muito da nossa cultura com relação à medicina. Nós somos um povo ayahuasqueiro, assim como o povo Huni Kuin (aqui atrás está uma obra da Rita [Sales] Huni Kuin). Nas nossas visões, nós enxergamos todas as cores, enxergamos as mesmas cores que qualquer outro ser humano, então por que vamos nos limitar aos pigmentos que estão no nosso território? A gente pode, sim, usar todas as tintas, todas as cores. O nosso olhar não se restringe apenas ao jenipapo e ao urucum. Não se restringe aos tons das terras. Mas, quando eles vêm, são muito bem-vindos, até porque eles são muito mais do que cor. Eles são proteção, são medicina, são memória, são espíritos vivos. Existem relações diferentes com esses materiais.”

Na foto, obra do coletivo MAHKU – Coletivo de Artistas Huni Kuin instalada próximo a entrada da mostra Véxoa – nós sabemos (Foto: Cortesia)

Vender tela, comprar terra
O movimento de “contracolonização” iniciado pelo Mahku data de 2011, quando o coletivo se formou para resgatar saberes roubados das gerações anteriores, submetidas ao trabalho nos seringais do Acre. “Os Huni Kuin, como diversos outros povos daquela região, sofreram com condições análogas àescravidão durante o ciclo da borracha. Eles eram proibidos de praticar sua cultura e, claro, não eram donos das terras onde viviam”, aponta Dinato, que tem uma dissertação de mestrado sobre o Mahku. As demarcações feitas nos anos 1980 e 1990 teriam trazido alguma justiça, mas sabe-se que no Brasil a restituição de terra, além de limitada e parcial, está permanentemente suscetível a invasões.

Portanto, além da função de resgate de memória e identidade, há claramente uma visão comunitária de futuro nas práticas do Makhu, na medida em que a verba angariada com a venda de murais, telas e painéis é destinada para a aquisição de terras em áreas próximas às áreas indígenas demarcadas no município de Jordão (AC). “Essas terras, que eram originalmente dos indígenas, são, através da ocupação ou compra, retomadas”, continua Dinato. “Assim, com seu lema de ‘vender tela, comprar terra’, o Mahku se insere nessa tradição. Mas é fundamental dizer que essas ocupações e compras não substituem as demarcações feitas pelo Estado. As demarcações precisam continuar.”

Yube Inu, Yube Shanu (Foto: Cortesia)

 

História do Cipó
YUBE INU DUA BUSË

Do livro Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva (2017, Dantes Editora, Itaú Cultural), que reúne estudos médicos com plantas, de pajés Huni Kuin:

Dua Busë morava com a família em uma maloca grande. Uma tarde ele saiu pra caçar e encontrou jenipapo na beira do lago.
Tinham muitas caças que estavam comendo o jenipapo, tinha veado, porco, anta… Dua Busë fez tocaia e ficou lá dentro esperando a caça.
Lá veio a anta para comer a fruta do jenipapo, quando chegou a anta juntou três frutas e jogou no meio do lago chamando alguém.
Veio uma mulher de dentro do lago toda bonita mesmo, trazendo pra anta uma cerâmica desenhada cheia de mingau de banana para a anta beber.
Mulher e anta namoraram e Dua Busë ficou olhando da tocaia.
Depois a mulher jiboia voltou para dentro do lago e a anta foi embora.
Dua Busë voltou para casa e não conseguiu dormir lembrando da mulher com a anta. No dia seguinte, às 5 da manhã, ele pegou a flecha e voltou para tocaia sem avisar a família. Ele fez a mesma coisa, pegou três sementes de jenipapo e jogou no lago. Saiu uma espuma do rio e logo depois saiu a mulher com o vaso de cerâmica com mingau de banana igual que fez com a anta!
Dua Busë se escondeu na hora, mas depois agarrou ela sem avisar e até o vaso quebrou. A mulher falava:
– Me solta! Quem é você?
Ela começou a se transformar em jiboia, transformar em murmuru (uma palmeira que tem muito espinho), onça.
Ele não soltou.Finalmente Dua Busë falou:
– Te vi namorando com a anta e quero te namorar também. Ela se transformou em gente e falou:– Vou namorar com você se você estiver solteiro.
Dua Busë entrou em um acordo, disse que não tinha mulher e queria casar com ela. A mulher jiboia fez remédio para Dua Busë, pegou medicina para ele, mergulhou com ele e saiu na aldeia do fundo do lago. Encontrou com o peixe arraia que já estava com a lança e o peixe “mandim”com flecha para matar Dua Busë.
A mulher falava que não era para matar Dua Busë, que ele era marido dela. Mais à frente encontraram puraquê, um peixe que dá choque, que trazia a borduna dele, mas a pedido da mulher o puraquê também se acalmou.
A aldeia do fundo do lago tinha tudo, maloca, roçado, plantas, legumes. Quando chegaram no limite do roçado, a mulher deixou Dua Busë lá esperando para avisar a família que estava trazendo um homem para casar com ela.
Os pais concordaram e ela foi buscar Dua Busë.Passou tempo e eles geraram dois filhos, uma filha e um filho.
Um dia Huã Karu, sogro de Dua Busë, que estava dentro do lago, começou a preparar ayahuasca. Ele tirou cipó, rainha e foi preparar o chá.
Dua Busë perguntou:
– O que é isso?– É um chá de cura, respondeu o sogro.
Huã Karu preparou o chá à tarde e, à noite, enquanto preparava o ritual, pediu para a filha avisar ao genro para ele não beber.
A filha foi avisar ao marido que não era para beber o chá.
– Se ele beber podem acontecer algumas coisas e talvez ele não vai aguentar.
Mas Dua Busë quis beber e finalmente ele bebeu…A esposa pediu para não beber, mas ele bebeu mesmo assim uma dose grande.
Quando estava chegando a força Dua Busë começou a agoniar e foi vomitar.
Quando ele estava vomitando, ele começou a ver a jiboia engolindo ele. Ele estava vendo o futuro.
Aí, quando o sogro viu falou:
– Bem que eu avisei que não era para ele beber. Chama ele que vou cantar para ele.
Quando o sogro começou a cantar, ele viu que a jiboia estava apertando. Dua Busë começou a gritar muito. Até que amanheceu o dia, fizeram medicina para Dua Busë tomar banho. Dua Busë ficou descansando até que um dia ele levantou para caçar. A mulher não queria deixar, mas ele foi mesmo assim.
Foi indo até que chegou no largadouro, o lugar onde chega o igarapé que alimenta o lago, e encontrou o Iskï, o bodó encantado.
O Iskï falou:– Seja bem-vindo, meu txai! Queria encontrar contigo mesmo.
Iskï estava sem cabelo e sem o rabo.
– Olha, txai, você está vivendo bem com a mulher jiboia; a sua mulher está com os seus filhos com fome. Eles me encontraram, tiraram meu nea rani, o cabelo do rabo, então melhor você voltar para sua terra, cuidar da sua família, porque eles estão sofrendo muito.
Vem, vou te ajudar!O Iskï foi e pegou a medicina, colocou no olho dele e falou:
– Pega meu cabelo e fecha o olho.
Saiu com ele descendo o rio até chegar no roçado da família de Dua Busë. Chegando lá, o Iskï jogou ele na terra. Quando virou, olhou e reconheceu o roçado da família. Ele foi entrando na terra dele… a família começou a gritar avisando que Dua Busë estava voltando, veio todo mundo, perguntando e levando ele para txitüte, a pequena rede de pajé, e ele ficou deitado lá, contou a história que aconteceu com ele e a família pediu para ele não sair da casa com medo da jiboia. Ele ficou vivendo com a família um tempo e depois de um tempo foi caçar.
A esposa do lago estava procurando ele com saudade e raiva.
Ele falou que ia matar algumas coisas para fazer caçada, ele não quis ir pelo lago e foi pelo lado da terra, viu o pássaro kushu, cujubim, e deu flechada. A flecha dele caiu na beira do lago, no sangrador do lago, aí flechou de novo e foi lá de novo.
Foi catar as flechas no lago e quando chegou para pegar as flechas encontrou com Bari Siri Ika, filha dele.
Depois chegou a filha pequena e mordeu o dedão do pé dele. “Sirï sirï sirï…” Ele não fez nada, ficou espantado, olhando. Com o canto da filha chegou o filho maior e atacou ele comendo até o joelho. Ele não falou nada. Daqui a pouco vem a mulher, tinha uma árvore no meio do lago. Dua Busë estava com o braço aberto pendurado na árvore e a mulher comeu até o peito. Aí Dua Busë começou a gritar. Chamando os seus parentes da comunidade.
– Venham, meus parentes, a jiboia tá me engolindo!
Seguraram Dua Busë e conseguiram tirar ele. Ele ficou com o corpo mole, ficou na rede e falou para seu cunhado:
– Quando eu morrer, me enterra. Passando seis meses pode me procurar na minha sepultura. Na parte direita vou virar cipó e na parte esquerda vou virar rainha. Tira o cipó, 1 metro mais ou menos, pega um pau e bate até sair a casca e depois cozinha. Cantando eu fico dentro do cipó e explico para você.

Foi explicando para o cunhado dele enquanto morria. Enterraram, passou seis meses e o cunhado dele foi visitar a sepultura. Nessa hora tinha nascido o cipó, nascido rainha. Tirou os dois juntos e fez como ele havia explicado. Fez o nixi pae, tomou e veio a miração. Teve muita explicação. Mostrando o futuro, presente e passado e a verdade. Assim nasceu o nixi pae e essa é a nossa história. (Una Shubu Hiwea, 2017, s.p)

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