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Postado em 26/02/2014 - 6:00
Meditação psicodélica a serviço do consumo
Luciana Pareja Norbiato

Os jogos do Facebook proliferam e geram cifras astronômicas, mas são armadilhas para o vício e o gasto compulsivo

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Legenda: Tela do jogo Farmville (imagem: reprodução)

No início, em junho de 2009, era o FarmVille, uma emulação mais complexa dos tamagochis dos anos 1990. No “joguinho de armar” da fazenda, o participante devia plantar verduras, criar animais e expandir sua propriedade. Era obrigatório voltar ao jogo em períodos definidos, dependendo da atividade a ser realizada. “Suas berinjelas estarão maduras em três horas, volte para fazer a colheita”, ou algo do tipo. Em caso de demora, a safra chegava até a apodrecer.

Em outra onda, o Mafia Wars chegou mais ou menos ao mesmo tempo e promoveu um banho de sangue virtual entre gangues rivais, com membros recrutados nas listas de amigos de cada jogador por meio de insistentes convites postados na linha do tempo. Dois anos depois, o Song Pop passou a promover disputas ao estilo “Qual é a música?” entre dois amigos por vez, relembrando gêneros de diversas épocas.

Sim, são eles, os jogos para Facebook, que crescem a passos de gigante, migraram para as demais redes sociais, como Google +, e ganharam versões para Android e iOS. A pesquisa Games Pop, do Ibope, revelou que 76% dos 18 mil entrevistados de todo o Brasil que usam celular, computador e tablet para jogar o fazem por meio das redes sociais. Outra pesquisa, a Game Mobile Brasil, da ESPM, mostrou que, de seus 823 respondentes, 71% jogam nas redes; desse número, 71% jogam diariamente.

Não dá para fechar uma quantidade exata de títulos hoje no mercado, vindos de majors da produção de games como Zynga (FarmVille e Mafia Wars) e King (Candy Crush Saga), entre outras. Muitos jogos de computador existentes anteriormente em sites de games ganharam uma versão “Saga” ou “With Friends” para as redes, aproveitando-se da viralidade e da fidelização que o modelo FB incorpora. A própria navegação dos jogos agrega, no desenrolar das fases, convites a amigos e compartilhamentos de pontuação disfarçados, que o participante não nota ao clicar. Em outros casos, como o Song Pop, o jogo só funciona se houver outro jogador para fazer dupla e, quanto mais pessoas o usuário convida, mais vezes consegue jogar. A fidelização vem em forma de bônus cedidos graças à participação diária. Para quem joga no tablet ou celular, os apps conectam-se via rede social e a competição entre amigos persiste.

Candy Crush Mania

Campeão atual disparado de popularidade, Candy Crush Saga reunia no último dia 23 de outubro, só no Facebook, mais de 50 milhões de usuários diários e mais de 100 milhões de usuários no mês entre aplicativos de várias naturezas (não só, mas na maioria, de jogos), segundo o site App Data. Surgiu em abril do ano passado, dissolvendo a percepção da realidade do jogador em um mundo lisérgico-fofucho de jujubas e bombons que explodem.

O visual vem embalado por uma musiquinha hipnótica, tão açucarada quanto as guloseimas de seu gráfico, além dos efeitos sonoros engraçadíssimos. “O ‘Divine!’ é uma delícia”, confessa a atriz Mika Lins, referindo-se à voz grave que parabeniza o jogador quando ele consegue uma grande sequência de explosões. Ela tem uma relação de amor e ódio com games sociais: “Na real, eu não gosto, acabo me viciando (rs). Satisfação garantida, como quando fumo um cigarro. Nunca paguei um real, vício do jogo envolvendo dinheiro é como droga pesada”. O mecanismo é simples: alinhar três docinhos ou mais para explodi-los e completar missões como transportar ingredientes até a base da tela, conquistar um número específico de pontos ou explodir toda a gelatina dos quadradinhos.

“Comecei a jogar através do convite de amigos no FB. O primeiro (e insuportável) foi FarmVille, que logo larguei. Muito chato”, declara o ator Otavio Martins. Largou o anterior, mas não outras opções. “Eu jogo Sinuca, Tranca e Criminal Case. Quando tenho tempo, chego a passar no máximo meia hora, normalmente só jogo uma partida. É ótimo pra passar o tempo e pensar no nada”, afirma.

De fato, a jogatina na rede social, por seu caráter de repetição, tem a característica de deixar a mente navegar despreocupadamente, o que pode ser um componente de alívio na rotina estressante do veloz mundo de hoje. Tem quem assista a novelas, tem quem jogue nas redes sociais. “Fiquei no Candy Crush, jogo em ‘esperas’: médico, dentista e esperando o sono chegar. Me apeguei à fase 125, já que não saio dela faz tempo. E agora apegada…”, conta a artista Raquel Kogan.

Com nível crescente de dificuldade e de tempo de resolução das fases, esses jogos têm componentes próprios para induzir ao vício e ao prejuízo monetário. Quando empaca em fases capciosas, o usuário é induzido a comprar recursos que facilitam a execução da tarefa proposta ou vida extra para que ele possa continuar jogando.

“Um belo dia, eu não conseguia passar de uma fase (do Candy Crush) e comprei um pirulito pra quebrar uma gelatina que faltava. No outro dia, comprei mais cinco movimentos pra terminar uma fase. No primeiro mês, gastei uns US$ 15 ou US$ 20, ok. Mas no mês passado tomei um choque: chegou a minha fatura e eu tinha gastado US$ 50! Aí parei total”, conta o jornalista Thiago Stivaletti. Parou de gastar, mas não parou de jogar, toda noite. “Exige uma concentração meio lúdica que esvazia todos os problemas da cabeça. É como uma meditação de nerd.”

Do lucro ao vício

Dos entrevistados desta matéria, apenas Stivaletti chegou a pagar para jogar, e por pouco tempo. Isso não reflete a realidade do mercado por trás das telas coloridas e nada inocentes. Um levantamento feito no ano passado pela empresa de pesquisas norte-americana Gartner apontou que, da receita global das redes sociais, estimada em US$ 16,9 bilhões, os jogos foram responsáveis por US$ 6,2 bilhões, ou seja, foram a segunda maior fonte de lucro, atrás apenas da publicidade (US$ 8,8 bilhões).

A Zynga, que rompeu a parceria com o Facebook confiando em poder manter a boa onda longe da rede social, amargou prejuízo de 31% com relação ao ano anterior em seu balanço do segundo trimestre de 2013, enquanto o Facebook anunciava crescimento no setor dos games de 7% no segundo quadrimestre deste ano. De olho no nicho, até a Disney lançou seu Piratas do Caribe em versão game para Facebook.

Por trás das cifras astronômicas está o limite tênue entre a diversão e o vício. Dos mecanismos utilizados para atingir o psiquismo do jogador, o principal é a redução de sentimentos como angústia e ansiedade. “Você não amplia sua capacidade de enfrentamento desses sentimentos, o jogo é uma forma de escape rápido”, explica Dora Sampaio Goes, psiquiatra do Programa de Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas. Diferentemente de relaxar diante da tevê, o jogo social tem o componente da continuidade de sua ação mesmo quando o usuário não está jogando, desde ações que levam tempo para ser realizadas até os pedidos de vida e de ajuda aos amigos. Os jogos produzem dopamina no cérebro em um espaço de tempo similar ao consumo de drogas, o que dá a sensação de prazer e bem-estar.

* Reportagem publicada originalmente na edição impressa #15