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Legenda: Hannibal (1982), de Jean-Michel Basquiat, em anúncio de leilão da Sotehby's veiculado nas maiores revistas de arte internacionais, como a ArtReview
Postado em 06/11/2015 - 8:26
Metáfora contra a corrupção
Obra de Jean-Michel Basquiat pertencente à coleção de Edemar Cid Ferreira vai a leilão na Sotheby’s de NY para pagar credores do Banco Santos
Paula Alzugaray e Luciana Pareja Norbiato

Algumas obras de grande importância da coleção de Edemar Cid Ferreira serão leiloadas na Sotheby’s de NY nas próximas semanas, entre elas Hannibal (1982), de Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Com preço estimado entre US$ 8 milhões e US$ 12 milhões, é a mais cara do conjunto à venda e entra no leilão noturno de arte contemporânea do dia 11 de novembro (quarta).

Hannibal foi encontrado em uma leva que passou pela fronteira norte-americana com valor declarado de US$ 100 cada. “Há pouco controle sobre o trânsito de obras para o exterior”, disse à seLecT o desembargador federal Fausto De Sanctis. Juiz responsável pelo processo de Edemar Cid Ferreira, foi dele a iniciativa de fazer um acordo com a Interpol para ficar atenta a possíveis obras da coleção do ex-banqueiro que pudessem ser enviadas para fora do Brasil.

Com a repatriação das obras feita pela justiça norte-americana, De Sanctis queria que elas fossem doadas a museus públicos, mas o Superior Tribunal de Justiça deu a posse à massa falida do Banco Santos, que vai vendê-las para pagar os credores. “Obras de Arte representam história, estética, reflexão, criatividade. Elas revelam uma sociedade, um momento, um movimento, a natureza, um lugar. Elas nunca deveriam ser vistas no aspecto monetário porque diminuiria sua importância que transcende esta visão. Seria simplista e egoísta”, disse o desembargador em discurso no ato da entrega das obras à justiça brasileira.

No site da casa de leilões Sotheby’s, não há nenhuma menção ao fato de as obras terem pertencido ao ex-banqueiro e serem provenientes de um processo judicial. Outros compradores estão listados, mas o histórico judicial não está lá. Segundo a instituição declarou a seLecT, “como na grande maioria das obras vendidas na Sotheby’s, o vendedor não é identificado na proveniência”.

O artista Stephen Torton, que construiu o suporte de Hannibal, lamentou a decisão da justiça. “Fui assistente de Basquiat e construí a peça. Sinto que ela realmente poderia ter sido um prêmio para o povo brasileiro e o sistema brasileiro de museus. Lamento que ela não tenha sido exposta e celebrada como uma metáfora contra a corrupção e a impunidade”, diz Torton à seLecT.

“Hannibal foi a primeira peça que construí para ele simulando objetos encontrados”, diz ele, que construiu 250 suportes para pinturas de Basquiat. “Ele me dava muita liberdade, nós trabalhávamos em silêncio. Um sinal de aprovação ou um sorriso sutil era tudo o que eu precisava para seguir trabalhando”, diz.

Torton foi assistente de Basquiat entre agosto de 1982 e junho de 1983, realizando junto com o artista a instalação mostrada na The Fun Gallery, em 1982, em NY. Ele esteve envolvido no projeto de uma retrospectiva sobre a obra do artista no CCBB Rio, em 2014, que não aconteceu. Por isso, se ressente pelo fato do público brasileiro não ter tido a chance de conhecer e desfrutar da obra de Jean-Michel Basquiat.

Discurso para Hannibal

Leia na íntegra o discurso do desembargador Fausto De Sanctis no ato oficial de entrega de Hannibal à justiça brasileira no Escritório da Procuradoria Federal dos Estados Unidos, em junho deste ano:

“Esta cerimônia de repatriação de duas obras de arte (de Jean-Michel Basquiat, estimada em U$ 10 milhões, e Togatus Romano, antes de Cristo, U$ 773 mil), exemplifica a confiança do Brasil no Sistema Internacional de Justiça, especialmente dos Estados Unidos. Tais Obras de Arte foram confiscadas como importação de propriedade à América porquanto teria havido declarações falsas e fraudulentas ou práticas de violação da lei alfandegária norte-americana. De acordo com as autoridades dos EUA, ambas as obras de arte foram declaradas, cada qual, pelo valor de U$100 com falsas notas fiscais com o objetivo de driblar as leis.

A Justiça Federal brasileira, a qual eu aqui represento, acreditou na eficácia da INTERPOL e das autoridades estrangeiras e buscou a ajuda de países amigos. Nosso trabalho visou reparar o crime com a repatriação das obras de arte.

Tais obras merecem a destinação para a qual foram requeridas: ir ao encontro do interesse social por meio do acesso público. Embora alegadamente adquiridas com os proventos do crime, possuem um inegável valor cultural que não deveria ser economicamente mensurável.

Obras de Arte representam história, estética, reflexão, criatividade. Elas revelam uma sociedade, um momento, um movimento, a natureza, um lugar. Elas nunca deveriam ser vistas no aspecto monetário porque diminuiria sua importância que transcende esta visão. Seria simplista e egoísta. Há uma única maneira de compensar vítimas: quando todas as pessoas são incluídas na reparação elas também o são reparadas porque proteção da arte para fins públicos beneficia a sociedade de uma maneira geral. O ano de 2010 foi o primeiro e histórico resultado de uma grande Cooperação Bilateral e Assistência em Matéria Penal.

Graças a um meticuloso trabalho de funcionários públicos federais, foi possível identificar as obras de arte que tinham sido desaparecidas e desviadas aos Estados Unidos, supostamente ocultados da Justiça Federal, com o objetivo de tornar possível a repatriação. Esta não poderia materializar eventual interesse escuso ao se permitir a venda e ou compra delas por meio de “laranjas”, empresas de fachada ou intermediários. Lavagem de Dinheiro não deveria ser cometida de novo.

Lembro-me vindo aos Estados Unidos para negociar com as autoridades americanas o melhor tratamento e destinação das obras confiscadas pela Justiça Federal brasileira. Embora um mecanismo formal, a Cooperação Internacional também se valeu de métodos informais, uma conversa olho a olho e com respeito de ambas as partes. A procuradora federal Sharon Levin foi quem realizou um trabalho brilhante.

Sou grato aos funcionários da Justiça Federal, à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal, à INTERPOL, ao Departamento de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça – DRCI, e aos Estados Unidos, que compreenderam a real importância deste inédito passo e dos fatos, ora expressado nesta cerimônia. Tornou-se possível a concretização da Convenção da UNESCO concernente à Proteção da Herança Natural e Cultural Mundial (Paris, 16 de novembro de 1972), ratificada pelos Estados Unidos em 07 de dezembro de 1973, pelo Brasil em 01 de setembro de 1977, e pela França em 27 de junho de 1975, viabilizando o ingresso no ordenamento internacional em 17 de Dez./1975.

Eu congratulo os Estados Unidos, o primeiro país a ratificar a citada Convenção contribuindo para torná-la uma realidade o mais rápido possível. Finalmente, eu gostaria de dar um especial obrigado para Seth Taylor, agente especial do setor de imigração (da Immigration and Custom Enforcement – ICE, do Departmento de Segurança Nacional, Department of Homeland Security), a David Rogath (dono de galeria de arte e quem comunicou a tentativa de venda das obras), a Sharon Levin (procuradora federal americana) e ao Departamento de Justiça dos EUA (Department Of Justice – DOJ), pelo diligente e excepcional trabalho nesta importante e histórica Cooperação Internacional que se viabiliza.

As obras de arte que estão sendo entregues hoje, o são, não para o Poder Judiciário, mas para as Pessoas do Brasil, e devem com Elas serem mantidas.”