A gana bandeirista de Getúlio Vargas com seu programa Marcha para o Oeste, de colonização dos “vazios demográficos” do território brasileiro, e a hipostasia modernizadora da construção de Brasília por Juscelino Kubitscheck, melhor adjetivada como colonizadora, dada a continuidade pelo “bandeirante moderno” em relação à marcha para o Oeste do seu antecessor. Eis a ponta do iceberg das relações nefastas entre o projeto modernista no Brasil e suas raízes deliberadamente firmadas no projeto colonial.
A ousada tese chega a público em livro que não descende de uma pesquisa atual de História do Brasil nem de uma investigação decolonial advinda de um departamento de Estudos Culturais ou Sociologia, mas de uma análise, empreendida por um estudioso de arquitetura, das páginas de uma revista de artes. Paulo Tavares escrutina os 84 números publicados ao longo dos 15 anos de existência da revista Habitat, com interesse particularmente clínico na gestão de Lina Bo Bardi, que a dirigiu desde a fundação, em 1950, até 1954.
A principal arma do arquiteto e pesquisador é a forma que escolheu para desconstruir a ideologia impregnada nas páginas de Habitat: uma intervenção visual e textual sobre fac-símiles da própria revista. Assim nasce Des-Habitat, que convoca para cada reprodução de um artefato indígena na publicação de vanguarda um arsenal de repertório crítico para comprovar a cumplicidade subjacente ali com a violência colonial que perpassa todo o projeto moderno. A indexação ilegítima de bens culturais vernaculares, indígenas e afro-brasileiros ao léxico do modernismo brasileiro, concluímos da leitura, é mais uma apropriação violenta e discricionária travestida de intelligentsia pela elite colonizadora, alinhada, à época, com o nacionalismo fascista italiano.
Em paralelo à expropriação de terras e bens naturais e ao cerceamento dos modos de vida da população indígena por um Estado desenvolvimentista é racista, vemos na política editorial de Habitat, como que espelhada, a expropriação de imagens e saberes dos povos originários do Brasil. Tavares encerra seu ensaio narrando detalhadamente a Operação Ilha do Bananal, que oprimiu e dizimou os Karajá, e o desfile de retratos etnográficos estampados na revista, sem qualquer contextualização sobre as condições sociais dos indígenas. Tudo muito purista e modernamente higienizado para consumo das elites.
Publicação
Des-Habitat,
de Paulo Tavares
n-1 Edições, 98 págs.