Nos séculos 19 e 20, os artistas que tinham oportunidade de visitar outros países para produzir eram, via de regra, homens brancos e europeus, devido a lógicas coloniais. Alguns poucos casos fugiram da norma de gênero, mas não escaparam das relações de poder geopolítico. Europeias viajantes que puderam vir ao Brasil apresentam uma clara ambiguidade: ora deflagram a posição social marginalizada das mulheres, ora representam o privilégio de ir e vir restrito aos nativos de nações colonizadoras. Hoje, a artista viajante ainda pode se sentir vulnerável, mas as práticas e as lógicas de deslocamento são outras.
A primeira vez que Patricia Leite saiu do Brasil foi a convite de Sara Ramo, que estava em residência na Cité des Arts, em Paris. A artista de Belo Horizonte teve como primeira reação o medo, atribuindo o sentimento, em parte, por ser mulher, gênero associado a concepções toscas como “sexo frágil”, mas também por características que considera típicas da condição de ser mineira, como a melancolia e o vínculo estreito com a casa e a cidade natal. “Eu tinha muito medo de sair sozinha na rua”, conta Patricia à seLecT. “A residência da minha amiga era na beira do rio. Então eu ia até o rio, caminhava e voltava pelo rio, com medo de me perder na cidade.”
Conforme se arriscava em caminhos além da beira do rio, a artista ia se agarrando a outro objeto que lhe dava segurança: a câmera fotográfica. “Aquilo era uma aventura para mim. Fotografar era uma forma de me acalmar”, diz. Em 2017, quando a galeria Mendes Wood DM se preparava para abrir um espaço em Bruxelas, na Bélgica, Patricia Leite recebeu o convite de passar meses em residência na casa histórica onde hoje funciona a galeria. Lá conseguiu desapegar-se do ateliê onde sempre pintou, em Belo Horizonte, e trabalhar em um espaço completamente novo. Hoje a artista vive com a família em São Paulo e usa as fotografias trazidas de Paris, Bruxelas e Veneza como matéria para seu processo pictórico.
A viajante contemporânea
Se o hábito da viagem, para Patricia Leite, foi um processo lentamente conquistado, há quem não fique em terra firme por muito tempo. Caso da paulistana Camila Rocha, que desde 2003 viaja de residência em residência, tendo passado por Finlândia, Suécia, Austrália, Índia, Brasil e Turquia. Camila desenvolve uma pesquisa acerca da flora de diferentes países. Como resultado, seu trabalho é uma vasta coleção de plantas comuns, ou não – a artista usa a palavra comum para distinguir as espécies tradicionais de plantas das que ela própria cria. “Todas são reais”, diz.
Na Finlândia, ela conheceu o artista turco Hüseyin Bahri Alptekin, que viria a ser o pai de seu filho, Marino. “A gente se apaixonou e uns oito meses depois eu estava me mudando para Istambul sem nem saber direito onde ficava no mapa”, conta Camila à seLecT. Tristemente, Alptekin faleceu em 2007, devido a um ataque cardíaco. “Desde então, não fiz mais residências, porque é complicado fazê-las quando você tem um filho que começa a ir para a escola” diz a artista.
Ainda assim, Camila Rocha não deixou de viajar, mesmo que por períodos mais curtos. No começo de 2019, participou de uma expedição pelo Rio Negro, no Amazonas, com a ilustradora botânica Dulce Nascimento. Apoiada pela Galeria Kogan Amaro, onde ela faz uma individual entre 14/9 e 12/10 deste ano, a artista percorreu, ao longo de 15 dias, os passos da viajante inglesa Margaret Ursula Mee, que veio para o Brasil em 1951.
30 anos na Amazônia
Nascida em 1909 em Chesham, Inglaterra, Margaret Ursula Mee estudou em escolas de arte e possuía um diploma nacional de pintura e design. No Brasil, rapidamente se envolveu com a flora amazônica e com causas ambientais relacionadas à conservação da floresta, tendo chegado a se engajar contra a construção da Rodovia Transamazônica, nos anos 1970.
De acordo com seus diários, realizou ao menos 15 expedições pela Amazônia, muitas acompanhada apenas de um guia, que conduzia um pequeno barco. Sua maior ambição era ilustrar a rara Flor da Lua, encontrada numa espécie de cacto, que desabrocha e morre em uma mesma noite de lua cheia, uma vez ao ano. Em 1988, quando finalmente conseguiu fazer o registro, encerrou suas expedições à Amazônia. No mesmo ano, retornou à Inglaterra e acabou morrendo em um trágico acidente de carro.
Porém, três semanas antes, Mee teve tempo de lançar, no parque Kew Gardens, o The Margaret Mee Amazon Trust, dedicado à preservação de suas obras, iniciativa que também levou à criação de um programa de bolsas para que artistas brasileiros possam viajar a Londres para estudar pintura botânica. Atualmente, o jardim britânico recebe um estudante de artes por ano pelo The Margaret Mee Fellowship Programme.
Pós-colonial
Enquanto o vínculo de Margaret Mee com o Brasil foi genuíno e indelével, as viajantes que vieram antes dela tiveram uma relação mais ambígua com o País. No período pós-colonial, eram corriqueiras as expedições com cientistas e artistas estrangeiros que procuravam documentar e representar costumes, flora e fauna brasileiros. Ainda hoje são celebrados artistas como o alemão Johann Moritz Rugendas e os franceses Jean-Baptiste Debret e Auguste-Marie Taunay. Mas pesquisas a respeito das figuras de Maria Graham, Marguerite Tollemache e Marianne North são menos frequentes.
Em comum elas têm, além da primeira letra do nome e do quase anonimato, o fato de serem inglesas. A história de suas aventuras brasileiras tem início no começo do século 19, com o apoio da Inglaterra para a fuga da família real de Portugal e a consequente abertura dos portos brasileiros aos ingleses.
Maria Graham chegou ao Brasil em 1821, acompanhando seu marido, o capitão Thomas Graham. O casal passaria rapidamente pelo Brasil e seguiria para o Chile, não fosse a inesperada morte de Thomas Graham. Sem o marido, a viajante seguiu em direção ao Sul e viveu um ano entre os chilenos, mas logo retornou ao Brasil.
Maria Graham foi uma das primeiras mulheres a fazer ilustrações das paisagens e das cidades brasileiras, a publicar um livro do gênero Literatura de Viagem e a fazer barulho com suas visões de mundo. O Diário de Uma Viagem ao Brasil e de Uma Estada Nesse País Durante Parte dos Anos 1821, 1822, 1823 (1956) aborda características coloniais locais e até arrisca reflexões acerca da condição sociopolítica de um Brasil em processo de conquista de sua independência.
De espírito libertário, Maria Graham ainda se aventurou, aos 48 anos, em um novo casamento. Após retornar a Londres, terminou seus dias com o título de Lady Callcott. Como mulher viajante, desafiou concepções tradicionais sobre os deveres domésticos da mulher e não se encaixou no lugar marginalizado que lhe era oferecido por uma sociedade patriarcal; por outro lado, como inglesa no Brasil, gozou de privilégios e nunca questionou sua posição imperialista e colonizadora.
Botânica solteirona
Em 1830, nascia também na Inglaterra Marianne North, filha de um membro do Parlamento inglês. Como era hábito, a jovem aprendeu a cantar, a tocar piano e a pintar. Ela começou a viajar aos 16 anos, acompanhando seu pai por países como Egito e Síria, e levava consigo um caderno de desenhos. Passou a se interessar por estudos de botânica e não se casou. Com quase 40 anos, ao perder o pai, decidiu dedicar-se a registros de plantas e flores. Marianne North então viajou por todos os continentes e viveu no Brasil entre 1872 e 1873. Minas Gerais foi o estado que mais lhe deixou marcas afetivas. Sua vivência pelo País resultou na publicação A Viagem ao Brasil de Marianne North 1872-1873.
As pinturas botânicas deixadas por ela compreendem registros de 727 gêneros e quase mil espécies de plantas de vários países, algumas até então desconhecidas. No entanto, sua produção foi por vezes desqualificada do ponto de vista científico. Diferentemente da tradição etnográfica, suas ilustrações mostravam as plantas contextualizadas, em seus ambientes naturais, em vez de destacadas sobre fundo branco.
Em sua produção brasileira transparece a ambiguidade própria das viajantes pós-coloniais: embora destemidas e arrojadas para seu tempo, suas impressões permanecem inevitavelmente eurocêntricas. Revelando predileção pelo país onde nasceu, Marianne North deixou seu legado para o Kew Gardens, de Londres, onde, desde 1882, uma galeria com 800 pinturas de North está aberta para visitação.
Amadora e doméstica
Outra inglesa viajante que visitou e documentou o Brasil foi Marguerite Tollemache. Um enigmático álbum de viagens de sua autoria chama atenção no acervo de iconografia do Instituto Moreira Salles (IMS), doado em 2008 ao lado de 1,5 mil itens da Coleção Martha e Erico Stickel. Marguerite Tollemache é a única mulher desse acervo e pouco se conhece sobre sua obra e história. Sabe-se apenas que era religiosa, culta, de origem nobre e nascida em 1818. Casou-se aos 27 anos – tarde demais para os padrões conservadores da época – com William Augustus Tollemache, com quem veio ao Brasil em 1853.
“Ter poucas mulheres em acervos como esse tem a ver com o fato de que elas viajavam como acompanhantes, não como as encarregadas para desempenhar um papel”, diz Julia Kovensky, coordenadora do acervo do IMS. Para a pesquisadora, é possível que muitas mulheres que acompanharam seus maridos em tarefas de viagem tenham colaborado com processos de expedições, mas não foram devidamente creditadas.
No século 19, uma das habilidades que as mulheres deveriam desenvolver era a pintura, mas suas produções não eram vistas como profissionais. “Marguerite Tollemache era o que chamavam de amadora, pura e simplesmente porque as mulheres não tinham autorização para ter formação oficial. Mas elas tinham formações domésticas, tinham tutores” conta Kovensky. Os 40 desenhos em grafite e nanquim do álbum que pertence ao IMS mostram, sobretudo, paisagens cariocas que revelam familiaridade técnica e muita habilidade, assim como a produção de todas as demais mulheres viajantes que por aqui aportaram.